Às vésperas de mais uma Copa do Mundo, em que novamente o Brasil tentará o tão sonhado hexacampeonato, o romance A cobrança (Record), do pernambucano Mário Rodrigues, transforma esse fato em ficção, colocando o esporte e a política no centro do enredo desse magnífico livro.
Depois da disputa sem gols no tempo normal entre Brasil e Alemanha na final da Copa do Mundo de 2018, disputada na Rússia, o campeão será conhecido nos pênaltis, que, naquele momento, mostra os alemães à frente do placar, por já terem convertido as cinco cobranças. Saúva, volante e capitão da seleção brasileira, é o responsável pelo último pênalti da rodada, o quinto do Brasil. Se ele fizer, empata o jogo, e coloca a canarinha no páreo pelo título. Se perder, no entanto, leva o país novamente para o buraco negro futebolístico que foi alçado quatro anos antes, pelo mesmo time, em uma goleada vexaminosa em casa. Ou seja: o céu e o inferno na ponta da sua chuteira.
A estrutura do romance funciona em três tempos narrativos distintos que vão se cruzando: a ida do atleta até a marca do pênalti, com milhões de brasileiros depositando nele todas as esperanças para manter o time vivo na disputa pela taça; os episódios políticos da Era Collor; e a história do personagem principal, a partir do seu nascimento em 1988, mesmo ano da última Constituição. São linguagens distintas para cada momento. Enquanto o jogador se encaminha para o centro da grande área, a vida dele vai sendo repassada em fluxo de consciência e se entrelaçando com as outras histórias da trama.
No ano seguinte ao nascimento do jogador, em 1989, Fernando Collor era eleito democraticamente pelo povo após o regime militar. Nos primeiros dias de governo, o presidente resolve extinguir órgãos e empresas públicas, além de confiscar os depósitos e as cadernetas de poupança dos brasileiros, através de um malfadado plano econômico. Algo que impacta diretamente a vida do pai de Saúva, que, além de ter as suas economias confiscadas pelo governo e de ficar também sem emprego, acaba de ser abandonado pela mulher com o filho pequeno. Cada capítulo vai sendo precedido por fragmentos do Artigo 5º da Constituição como um mantra irônico: “Todos são iguais perante a lei”.
Para Saúva, a noção de pátria não existe, porque mesmo ele tendo conquistado muitas alegrias nos gramados, atingindo o ápice da carreira, também perdeu muita coisa, sobretudo a inocência, por conta das agruras do pai já falecido, que sempre depositou nele a esperança por um futuro melhor. O jogador é um personagem rico em toda a sua complexidade. Ele questiona o seu papel dentro daquele campo e não quer ser o herói de nada, rechaçando o título de salvador de uma pátria desigual, corrupta, que joga os pobres para o segundo plano. “Não vou cobrar um pênalti, apenas. Cobrarei traições, mentiras, confiscos, demissões, violências, corrupções, fugas, humilhações, misérias. Meu chute será uma ejaculação”.
O momento derradeiro da penalidade é a representação da fuga, do exorcismo dos próprios demônios, mas também da vingança. Até o título do livro traz essa dubiedade. A cobrança de algo que lhe ficaram devendo. O pagamento simbólico por anos de injustiças e derrocadas pessoais está ali na sua frente, representado num único e poderoso ato: o chute ao gol. A sua glória particular. A grande chance se vingar contra a pátria que malogrou a sua história. A representação do futebol como ato político: converter ou chutar para fora?
Que Mário Rodrigues não seja um profeta. Mas se a realidade resolver imitar a ficção, que seja com as suas mesmas qualidades de criação. O autor comprova nesse romance, parafraseando Arrigo Sacchi, técnico vice-campeão do mundo em 1994 pela Itália, que das coisas menos importantes da vida, o futebol, sem dúvida, é a mais importante delas.
Ney Anderson é jornalista e editor do site de literatura Angústia Criadora (www.angustiacriadora.com)
A Cobrança
De Mário Rodrigues
Record
208 páginas
R$ 37,90