Maria Esther Maciel teve dois sonhos. O primeiro foi a criação de uma revista literária. Está realizado. Depois de cinco meses de reuniões com seus parceiros, o número inicial de Olympio será lançado amanhã na Livraria da Rua, na Savassi. O outro, também concretizado, veio depois de uma noite de sono na qual imaginou J. M. Coetzee, Nobel de Literatura em 2003, em uma palestra na UFMG. Acordou no dia seguinte disposta a ter o autor de Desonra no primeiro número da revista.
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Por que Olympio?
Há, nesse nome, um componente afetivo e literário, ao mesmo tempo. Ele foi escolhido em homenagem a José Olympio Borges, meu companheiro e cúmplice de muitos anos, que morreu em 2013. Ele era um homem que transitava, com desenvoltura, em múltiplos campos do conhecimento, tinha um especial apreço pelas artes e era um leitor voraz, cultivando uma biblioteca magnífica.
Como Olympio se insere na trajetória das revistas literárias em Minas Gerais? Quais os momentos mais marcantes dessa produção?
Minas, que sempre teve uma tradição literária vigorosa, também se destacou como um celeiro de revistas literárias, desde o século 19. Foi, entretanto, com os modernistas do início dos anos 20 do século passado que essa tradição adquiriu traços singulares e instigantes. Carlos Drummond foi um dos poetas que contribuíram para isso, ao fundar A Revista, que teve três números. Leite Criôlo, Edifício, Vocação, Tendência e Complemento foram outras revistas mineiras importantes que surgiram em sintonia com os movimentos literários de inovação do país e do mundo. Cada grupo de escritores e artistas criava sua revista, segundo os princípios criativos, políticos e culturais que seus integrantes defendiam. Isso perdurou por muitos anos. Ainda no início dos anos 2000, essa tradição estava viva, graças à revista Palavra, cujo editor, José Eduardo Gonçalves, está agora na equipe da Olympio.
Como se dará o desenvolvimento da ideia da transversalidade nas edições?
Tomamos a literatura como o ponto de cruzamento com outras artes e áreas do conhecimento, tempos e nacionalidades diferentes. A ideia é promover as interseções. Daí nossa preferência por escritores múltiplos, que transitam em outras esferas artísticas e intelectuais; artistas que buscam sua matéria prima no universo literário; pensadores que buscam uma articulação criativa e não dogmática entre política, filosofia, história e literatura. Neste número de estreia, temos, por exemplo, Maureen Bisilliat, uma fotógrafa inglesa radicada no Brasil, que realizou grande parte do seu trabalho visual a partir de Guimarães Rosa, Graciliano Ramos, Adélia Prado e Jorge Amado. Temos contribuições de escritores veteranos e iniciantes, incluímos alguns textos híbridos, feitos da interseção de gêneros e línguas. Se grande parte dos colaboradores é de Minas, há também vários de outros estados brasileiros e de outros países, sendo alguns de nacionalidades também híbridas, como a ensaísta argentina radicada em Belo Horizonte, a historiadora mexicana de cidadania americana que fala de beija-flores e migrações humanas, o Nobel sul-africano de ascendência holandesa que vive na Austrália, etc. Tudo isso faz parte de nossa proposta de transversalidade.
O que os moveu a criar uma revista literária?
Foram muitos fatores.
Como revalorizar a força da palavra em tempos de predomínio da imagem?
Reconhecer a importância da palavra é apostar na ideia de diálogo, na potencialidade que ela tem de fazer emergir sentidos múltiplos, ideias, conceitos e também imagens. Palavra é troca, reciprocidade, compartilhamento. Vivemos um tempo de extremo aceleramento e dispersão, de imposição de imagens e símbolos, de muita mediação pela tecnologia. Escrever, ler, conversar, criar ambientes, canais e oportunidades para a troca de ideias, cultivar o prazer da escuta, todas essas práticas e iniciativas são exercícios de reflexão, de desaceleração das urgências, de reorganização de nosso tempo. Uma revista de literatura como a Olympio, com textos (ficcionais ou não) imersos em significados e interpretações, exige um certo esforço de concentração e de valorização do tempo para a sua fruição. A palavra aqui tem primazia, mesmo quando atravessa outras artes ou está atravessada por estas.
No primeiro número, há textos inéditos no Brasil de J. M. Coetzee e Georges Perec. Como se deu a escolha dos dois autores e como foi o processo para contar com este material?
Bem, pode soar engraçado e até inverossímil, mas a escolha de Coetzee aconteceu graças a um sonho. Eu havia assistido à leitura feita por ele do texto “A velha e os gatos”, na abertura de um congresso sobre estudos animais, na Holanda, em 2013. Numa das noites da semana em que o grupo dos “olympianos” começou a discutir a pauta para o primeiro número, sonhei que o escritor sul-africano fazia uma palestra na UFMG. Na manhã seguinte, intrigada, associei a cena à abertura do congresso holandês e me lembrei do texto dele sobre gatos. Num lampejo, veio a ideia de incluir uma tradução desse conto na revista. Escrevi para o organizador do congresso, com quem tenho mantido uma interlocução por conta de minha pesquisa sobre animais na literatura, e pedi o contato do Coetzee, a quem escrevi logo em seguida solicitando autorização para publicar o texto. Ele respondeu, dizendo que sua agente entraria em contato conosco para tratar do assunto. E assim conseguimos os direitos para a tradução. Quanto ao Perec, um autor que nós quatro admiramos, tudo se deu porque o Leo Gonçalves tinha feito uma tradução do texto e resolvemos publicá-la, visto que era de um livro ainda inédito no Brasil. Aí, entramos em contato com a responsável pelo acervo do escritor na França e o incluímos na pauta.
O primeiro número de Olympio traz trechos das memórias de Silviano Santiago. O que revelam os trechos selecionados? O que Silviano representa, como escritor e ensaísta, para a literatura brasileira?
Silviano está em processo de escrita de suas memórias. O que ele generosamente nos ofereceu foi a possibilidade de conhecer os capítulos iniciais de seus escritos, a serem publicados apenas a partir de 2019. São trechos em que o escritor mineiro revisita sua infância, sua família, a cidade natal (Formiga) e muito daquilo que marcaria o homem e o escritor em suas futuras travessias. É um percurso fascinante, como se pudéssemos identificar ali a gênese de um personagem único, que é o próprio autor falando de si. Um autor da estatura do Silviano sabe muito bem que memória também é ficção, invenção, é edição. Ele é um mestre da literatura híbrida, aquela que propositalmente mistura os cartuchos da ficção, do ensaio e da autoficção. Podemos ler suas memórias também como mais uma de suas complexas narrativas, mas com prazer renovado pelas revelações do menino, pela poesia das descobertas e pelo fascínio que tudo isso exerce sobre o adulto que se revisita. Penso que nada há a acrescentar sobre Silviano Santiago, um intelectual fundamental para a literatura contemporânea brasileira. Poucos, como ele, foram tão longe e com tal profundidade no exercício de seu ofício múltiplo – o de escritor, professor e ensaísta aberto a vários campos do conhecimento.
Como avalia o momento da literatura brasileira contemporânea? Que papel desempenhará Olympio neste cenário?
É um cenário bastante heterogêneo, no qual se mesclam dicções, estilos e linguagens diversas. Nele, emergem, a cada momento, novos sujeitos culturais, sociais, políticos e sexuais, que desafiam as hierarquias legitimadas. Não há o que não haja na literatura brasileira contemporânea. O propósito da Olympio é trazer à tona o que de mais instigante atravessa toda essa heterogeneidade.
OLYMPIO
• Revista literária
• 96 páginas
• R$ 38,50
• Lançamento
Amanhã, das 11h às 15h.
Livraria da Rua (Rua Antônio de Albuquerque, 913, Savassi,
(31) 3500-6750).