Por 11 anos dom Lourenço de Almeida governou a capitania das Minas Gerais, o riquíssimo tesouro da Coroa portuguesa, eixo de sustentação econômica do Império. Em 1721, o nobre lusitano chegou a Vila Rica com a missão de pôr nos eixos aquela região conflagrada, de gente rebelde e indignada com os impostos cobrados pelo rei. Viera substituir o desgastado conde de Assumar, responsabilizado pela crise causada pela Sedição 1720, em que Felipe dos Santos foi enforcado, esquartejado e (conta a lenda) arrastado por quatro cavalos pelas ruas de pedra.
Dom Lourenço cumpriu a missão: ampliou a arrecadação dos quintos do ouro, que, em 1735 (depois de sua partida), atingiria o recorde de 146 arrobas. Instalou a odiada Casa de Fundição (um dos motivos da rebelião contra Assumar), ganhou elogios em livros escritos posteriormente por José João Teixeira Coelho, Diogo de Vasconcelos e Charles Boxer, entre outros historiadores. Garantira à Coroa “paz e lucro” naquele palco de motins.
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Guardadas na Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra, em Portugal, as cinco peças, de autoria desconhecida, compreendem uma carta “revelando” ao governador o que se dizia dele; um romance satírico; um escrito em que Lourenço “alforria” os moradores das Minas Gerais da “escravidão” imposta por seus próprios desmandos; uma obra cômica em que se usa o Salmo 51 para apontar os pecados do governador; e, por fim, ofícios fúnebres, com direito até a epitáfio, dedicados ao mandatário – aliás, vivíssimo da silva na época de sua publicação.
Lourenço deixou o cargo em 1732. Ainda estava em Vila Rica quando os papéis circularam, divertindo o povo. Um deles, aliás, trata de seu enterro. Tudo indica que atravessaram o Atlântico na mesma nau que o conduziu de volta a Lisboa, remetidos a integrantes da Corte. O caderno Notícias de Lisboa informou aos leitores sobre a despedida em prosa e verso que “povos martirizados” dedicaram ao ex-governador.
Em seu livro, Adriana Romeiro, professora do Departamento de História da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), mostra que os “papéis injuriosos” de Vila Rica são fruto de prolífica tradição literária cultivada por Portugal e Espanha, herdada de trovadores medievais.
Por aqui, praticou-se com gosto essa literatura, presente em momentos importantes da história, como a Revolta de Beckman (Grão Pará e Maranhão, 1864-1865) e os Motins do Maneta (Salvador, 1711). No século 18, papéis anônimos denunciavam ouvidores e governadores no Rio de Janeiro e em São Paulo.
EMBOABAS Em Minas Gerais, pasquins marcaram presença na Guerra dos Emboabas (1708), nos chamados Motins do Sertão (1736) e no contexto da Inconfidência Mineira (1789). Sátiras e paródias tinham os poderosos e seus desmandos como alvo. Mas outra modalidade de papéis anônimos também fazia sucesso: espalhados por locais públicos da colônia, insultavam moradores, fofocavam sobre o vizinho, denunciavam vícios e comportamentos proibidos. Podem ser comparados às fake news contemporâneas ou a memes tão populares no “tribunal da internet”.
Lidos para analfabetos, esses papéis eram copiados a mão, divulgados pelas capitanias. Graças à oralidade, pasquins e panfletos se difundiram pela América Portuguesa, explica Adriana Romeiro em seu livro.
Adriana Romeiro adverte: é equivocado pensar que havia uma oposição política consolidada em Minas na primeira metade dos anos 1700. As sátiras de Vila Rica expressam a insatisfação pontual de grupos prejudicados por Lourenço de Almeida. Porém, os escritos proibidos comprovam a intensa vida política da época, na contramão da “paz” divulgada junto à Coroa, instalada na longínqua Lisboa.
“Os papéis satíricos expõem a existência de profundas lutas políticas no interior da sociedade colonial, convulsionada por tensões internas e dividida em facções e grupos”, ressalta a historiadora. Imposição de tributos, nomeação de governantes e crise de abastecimento alimentar, além de acirrar conflitos, criavam ambiente propício para o debate, observa. “Apesar de desqualificados como meio de ação política, não foram raras as vezes em que os pasquins obrigaram as autoridades a recuar ou modificar decisões, compelidas pela pressão de opiniões”, reforça a professora.
Lourenço de Almeida não foi exceção no Brasil colonial. No livro Corrupção e poder no Brasil (Autêntica), lançado em 2017, a própria Adriana analisou o comportamento de governadores enviados à colônia nos séculos 16 a 18. Enriquecimento ilícito foi regra.
“Marqueteiro” eficiente, Lourenço era pródigo em autoelogios nos relatórios enviados ao rei. Buscava se blindar, neutralizando adversários que denunciavam suas irregularidades à Corte, onde tinha inimigos respeitáveis. Basta dizer que o governador escondeu de Lisboa, por algum tempo, a descoberta de diamantes na região de Diamantina, pois lucrava com a venda de pedras no exterior. Era ligado a Inácio de Sousa Ferreira, dono de uma fábrica de moeda falsa. Manipulou a seu favor, por meio de testas de ferro, a arrematação de contratos referentes aos caminhos Novo, Velho e da Bahia, por onde passavam mercadorias, ouro e pedras. A Coroa chegou a anular esses acertos. Nada disso “passou batido”, como se diz hoje. Os papéis satíricos de Vila Rica são quase uma espécie de “crônica” das falcatruas e atrocidades cometidas por ele.
De volta a Lisboa, Lourenço de Almeida amargou o ostracismo, à margem da Corte. Morreu milionário, em 1750, mas sem o reconhecimento oficial de que julgava merecedor.
VILA RICA EM SÁTIRAS: PRODUÇÃO E CIRCULAÇÃO DE PASQUINS EM MINAS GERAIS
• De Adriana Romeiro
• Editora Unicamp
• 336 páginas
• R$ 60
• Lançamento em 12 de maio, às 11h, na Quixote Livraria e Café (Rua Fernandes Tourinho, 274, Savassi).