Há cerca de 120 anos, o Brasil tomava conhecimento da completa destruição de um povoado instalado no sertão nordestino liderado por um “fanático religioso” conhecido por Antonio Conselheiro. De acordo com o tom oficial do governo brasileiro, o massacre deveria ser comemorado pela população da recém-instalada República, uma vez que a vitória do Exército nacional representou a supremacia da ordem e do progresso sobre o atraso e o misticismo que ainda resistia nos rincões do país.
Em seus relatos enviados diretamente do local dos conflitos – que anos depois seriam publicados na célebre obra Os sertões – o jornalista fluminense Euclides da Cunha tornou famoso o episódio da história brasileira que, talvez, teria caído na vala comum das manifestações populares reprimidas com violência pela elite, quase sempre com apoio do Estado. Mas até que ponto a descrição do líder de Canudos, a quem Euclides tratou como “alguém dotado de debilidade mental” e “incapaz de dotes literários” fez justiça à realidade do homem que tremeu a jovem República?
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A análise de Lima aborda a forma como Conselheiro via Deus e a religião, como ele falava sobre os problemas sociais do sertanejo, das dificuldades da população pobre em aceitar a decretação de novos impostos pelo regime republicano e de suas pregações, que atravessaram vários estados nordestinos por quase 20 anos – até que em 1893 ele viesse a estabelecer o povoado do Belo Monte.
Peregrinação pelo sertão e surgimento de Canudos
Antonio Vicente Mendes Maciel, o Antonio Conselheiro, tinha 62 anos em junho 1893, quando, seguido por milhares de famílias nordestinas – entre elas negros e índios que haviam perdido suas terras –, decidiu parar suas peregrinações de duas décadas pelo sertão para construir um povoado. O cearense de Quixeramobim teve boa educação, aprendeu ler e escrever, inclusive latim, e foi enviado para um seminário cristão. Antes de concluir os estudos, com a morte de seu pai, teve que assumir o comércio (e as dívidas) da família, abandonando a carreira religiosa. Desde cedo teve acesso à leitura de obras religiosas e de filosofia, como de Tomás de Aquino e Santo Agostinho.
Além de trabalhar como comerciante (função que não teve sucesso), Antonio atuou também como professor primário e advogado, privilegiando a defesa de pobres, muitas vezes deixando de cobrar pelos serviços. Seu casamento foi motivo de polêmicas, muitas delas pouco esclarecidas. Foi acusado de assassinar sua esposa, mas absolvido. Também existem relatos de que ele teria sido traído e até flagrado a esposa com um sargento de polícia e, por isso, teria iniciado sua peregrinação pelo Nordeste.
Já considerado “fora da lei” desde os anos 1870 por fazendeiros dos estados nordestinos que viam cada vez mais trabalhadores deixarem lavouras para seguir com o grupo de Conselheiro, a instauração da República fez com seu grupo passasse a ser visto cada vez mais como um perigo para o país. Em uma nação moderna não haveria espaço para seguidores de um líder religioso. Por outro lado, a crítica aos altos impostos cobrados de uma população que mal tinha com o que se alimentar ganhava cada vez mais adeptos por onde Conselheiro passava.
No início de 1893, em Masseté, na Bahia, seguidores de Conselheiro entraram em conflito com a polícia local, após destruir tábuas que calculavam o pagamento de impostos. Eles expulsaram os policiais e se recusaram a deixar o recolhimento dos tributos. Foi o primeiro conflito com as forças do Estado. No mesmo ano, o grupo se instalou às margens do Rio Vaza-Barris, em Canudos, e foi fundado o povoado de Belo Monte. A restauração da monarquia não foi bandeira dos rebeldes, que buscavam apenas superar a pobreza.
Em pouco tempo, o povoado já tinha casas, ruas, uma igreja e recebia diariamente centenas de pessoas que fugiam da miséria de vários lugares do país.
No final de 1896, o governo da Bahia passou a ser pressionado por fazendeiros locais a combater Canudos e a primeira tropa foi envidada para destruir os “rebeldes”. A milícia baiana foi enfrentada pelos seguidores Conselheiro e sequer chegou perto do povoado. Outras duas tentativas de acabar com a cidade criada no sertão baiano também foram rechaçadas. O presidente Prudente de Morais foi tachado de fraco e cresceu nas cidades do Rio de Janeiro e de São Paulo o discurso de que a “rebelião de Conselheiro” queria derrubar a República e voltar com a monarquia.
A pressão por uma atuação federal decisiva levou à quarta e última expedição a Canudos, com cerca de 10 mil soldados, acompanhada pessoalmente pelo ministro da Guerra. O ataque começou em julho e durou até o início de outubro, quando os últimos moradores foram dizimados. As casas do povoado foram queimadas e cerca de 20 mil pessoas morreram no combate – grande parte mulheres e crianças. Cerca de mil conselheiristas foram degolados ou decapitados durante o último ataque a Canudos.
A morte de Conselheiro, como grande parte de sua vida, também é permeada por mistérios e versões. Alguns sobreviventes contaram que ele morreu em 22 de setembro com ferimentos de uma granada. Outros relatos apontam que ele foi vítima de disenteria, talvez causada por gangrena em um ferimento na perna.
ANTONIO CONSELHEIRO POR ELE MESMO
• De Pedro Lima Vasconcelos (org.)
• É Realizacões
• 760 páginas
• R$ 139,90