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Escritor mineiro Ricardo Aleixo lança em BH 'Pesado demais para a ventania'

É na fissura e na tensão entre o que existe e o que poderá vir a ser que nasce a poesia de Ricardo Aleixo, belo-horizontino que vive no Bairro Campo Alegre. Agora, aos 57 anos, vê crescer seus filhos no mesmo lugar onde nasceu e cresceu. Amanhã, porém, seu novo rebento é Pesado demais para a ventania, primeira antologia poética, que terá lançamento às 16h na Crisálida Livraria e Editora, no Edifício Maletta. Os versos de Aleixo passeiam por áreas tão distantes quanto são as temporalidades evocadas, com referências às tradições e à ancestralidade afro-brasileiras, mas também ligadas ao presente, que urge como os poemas falados em suas performances.
- Foto: Editora Todavia/Divulgação
De Campo Alegre, ele diz ser capaz de alcançar o mundo, pois leva a “campoalegria” para onde viaja o sentimento de estranhamento que o mantém alerta para captar poesia por onde anda. Afirma com convicção que não se interessa pelo lugar de fala, mas pelo lugar de falha, onde a poesia habita. Ele rejeita se prender a quaisquer determinismos e busca constantemente ouvir sua voz interior que lhe impulsiona para a arte. Dói às vezes, ele diz. Sem muita disciplina, não se preocupa em buscar a finalidade no que faz, mas está ciente da necessidade de criar e das possibilidades transformadoras da arte.


ENTREVISTA/Ricardo Rleixo

Nesta antologia, muitos dos poemas fazem referência a uma ancestralidade, a um tipo de memória constituída e também a uma memória projetada. Como são essas relações com a ancestralidade na sua poesia?
Tem isso mesmo.
Bom, tem um leque de relações possíveis com a ideia de ancestralidade, que passa tanto a noção mais básica da relação com a família, a minha mãe, que é muito marcante no meu projeto de escrita, o meu pai e a minha irmã. É uma família leitora, que sempre cultivou o fetiche da letra, da palavra escrita, falada, contada. Então, é esse o meu universo e a porta de entrada com a relação com a palavra. A relação com as minhas filhas e meus filhos já é a relação da ancestralidade projetada. É esse futuro que não se pode prever, mas que você pode conectar com o passado do qual veio. Tem outro nível que chamo de fazer as pazes com a Minas Gerais, que é outro nível de ancestralidade. Talvez seja o livro mais mineiro que já fiz por não temer cantar isso e enaltecer isso que tantas vezes foi um ponto conflituoso para mim e continua sendo.
A mineiridade e as mineiridades continuam sendo um ponto que eu ataco sempre que posso. Mas, depois de tanto de tempo de vida, na arte e na cultura, viajando por lugares em que as portas são abertas pelo fato de eu ser de Minas, acho que tenho direito a começar a usar isso.

Na sua poesia, há muitas referências a lugares, Belo Horizonte, Minas ou bairros. Como é esta ideia de pertencimento e o movimento do local para o universal?
Brinco com o nome do meu bairro, que é o Campo Alegre. Fiz disso um conceito, a “campoalegria”, para jogar com um braço do meu temperamento que é a possibilidade de ficar muito bem sozinho e no mesmo lugar, ficar horas fazendo a mesma coisa, posso passar dias sem pôr os pés fora de casa. E, ao mesmo tempo, sou de rua. Quer me deixar bem, me solta num Centro velho qualquer de qualquer cidade, eu me sinto muito à vontade nesses lugares. E meu trabalho me leva a viajar muito, pelo Brasil e pelo exterior, lugares em que eu não imaginava estar algum dia. E, como forma de superar a timidez pessoal e superar as dificuldades de estabelecimento de contato, eu me valho da campoalegria, é uma espécie de Campo Alegre estendido.
Sertão é o mundo inteiro, Campo Alegre é o mundo inteiro. Então, ao mesmo tempo, eu não pertenço efetivamente a lugar nenhum, sou estrangeiro em todos os lugares, mas há uma vontade de afrontar isso e de não levar tão a sério também, de não ficar preso a determinismos de nenhum tipo

Diante dessa sua errância, como vê a questão do lugar de fala?
Eu brinco, mas não brinco. É um assunto muito sério pra mim. Estou mais interessado sempre no lugar de falha. Lugar de fala não me diz muito. O lugar de falha, sim. O lugar de falha tanto é o Campo Alegre quanto é a poesia, quanto é fazer poesia que reverbera em vários lugares do Brasil e do mundo a partir do Campo Alegre. O lugar de falha é, por excelência, a poesia. Essa língua estrangeira que não tem como entender. Alguém dizer que entende poesia é algo muito pretensioso.
Mas você sente e você abre, a partir da poesia, a possibilidade de captação e de entendimento de outros sinais que se entrecruzam no mundo. E sem isso não existe arte, não existe cultura, não existe política nem vida. Acho importante o lugar de fala. A acusação que o lugar de fala faz em relação a qualquer hegemonia é fundamental, tem que existir, mas não num sentido que aquele se torne um outro lugar ideal. Ideal é que todos os lugares possam ser relativizados o tempo inteiro. Então, por mais pertinência que vejo nesse conceito, ele não me serve a nada, nem enquanto poeta, nem cidadão brasileiro, negro, torcedor do América, não me serve para nada.

Além de lugares, seus poemas trazem muitas referências, de artistas, escritores e livros. Como é essa sua releitura e relação um pouco subversiva com cânones?

Essa falha, por exemplo, falha como ponto de partida. Imagina uma falha geológica, uma fenda, que está ali e é dali, nas condições daquele lugar, a partir delas, que alguma outra fala se coloca. E aí, tudo me serve. Não tenho razão nenhuma para pensar, com relação ao meu projeto poético, que o que traz um Augusto de Campos tem mais pertinência e força do que o que traz Clementina de Jesus.
Habitam lugares diferentes da minha sensibilidade. Mas, no momento da criação, não dá para parar para pensar de onde veio cada um. O que é a falha e o que seria o projeto. Augusto poderia ser uma escolha racional e a Clementina poderia ser uma escolha atávica, mas é muito mais embaralhado na minha cabeça e como chego em cada um.

Certa vez, você mencionou que gosta de se colocar diante da poesia com uma espécie de estado de primeiridade, ou primeireza, para usar um conceito de semiótica. Como é isso?

A primeiridade, ou a primeireza, que gostei mais, tem uma função que talvez não possa ser aceita como classificação. Mas, exatamente por não se instaurar como a definição de uma função, é que me agrada. É como pensar o brincar para as crianças. Nós adultos podemos falar que existe uma função do brinquedo e do brincar. Mas, para a criança, só existe o brincar e o brinquedo. Eu me permito dizer que a minha aproximação a qualquer signo, a qualquer forma, a qualquer elemento que possa me levar, seja a fruição estética, seja a possibilidade de composição a partir dali, tem que se dar a partir dessa visada que é desarmada, que é despretensiosa e, ao mesmo tempo, carregada dessa compenetração que só as crianças são capazes. Aquela velha história que se ouve a cada noite, aquele brinquedo que se desmonta para se montar de novo. Então, essa primeireza é como uma forma de limpar o terreno para não se sabe bem o quê. Tem a ver com essa ideia de o menino ser o pai do homem, no sentido de que tem um caminho aí já instaurado e sempre por se instaurar, que assegura essa primeireza como lugar de falha, que também pode não dar em nada.

A voz e o corpo têm muita importância no seu trabalho. Como é esse dar vida à palavra, essa presentificação da palavra?
Presentificação da palavra é o termo mais adequado, me parece, para falar da poesia em situação de performance. Porque a voz é uma materialidade, é uma fisicalidade, e é um ato de violência também porque ela se coloca onde nada havia. Ela lhe dá algo, mas não lhe dá nem mesmo a chance de conferir a continuidade desta presença. Estou lhe falando, lhe dou algo. Pode ser a palavra mais amorosa, mas ela, uma vez que não lhe deixa alternativa de defesa – ao contrário da visão, que você pode fechar os olhos e se recusar a ver –, não pode se recusar a me ouvir. Você vai ter que se virar, conforme possa, para fazer a liga entre isso que ouviu do poeta e aquilo que já tinha ouvido. Daí a importância da ideia de verso, você reverter algo, voltar a algo. Mas não há volta, não há como voltar a nada, também não há progresso. Então, presentificação é a palavra mais adequada para falar do ato vocal associado à poesia, porque ele, mais do que nos convidar, nos obriga a um aqui agora irrepetível. A um presentismo. Por mais que você habite outros tempos, você tem que ser do agora.

Você atua como músico, artista visual, ator. Como é esse trânsito pelas várias artes? É indistinto?

Gosto muito do filme O prisioneiro da passagem, de Hugo Denizart, sobre Arthur Bispo do Rosário. Na colônia, ele recebe uma mulher com a filha, e a mulher fala para a filha: “Olha que bonito o que ele faz, mas ele não faz para vender, faz para ele mesmo”. O Bispo resmunga qualquer coisa. Ela diz: “Estou falando que o senhor faz estas coisas bonitas, mas não faz para vender”. Aí o Bispo fala: “Eu só faço porque a voz manda”. De algum modo, eu também só faço porque a voz manda. Só que a voz, às vezes, manda eu fazer sem que eu saiba que voz é essa. Mas sempre tem uma voz que manda, que até pode ser a minha própria voz. Porém, sabendo sempre que aquilo não é um fim último. Nunca penso em nada como um fim, de isso vai virar aquilo. A gente vive num universo em que tudo tem que ter uma finalidade definida como uma quantificação, quanto custa, para quantas pessoas etc. O que é um sofrimento porque sou catapultado a fazer certas coisas e demoro muito até entender que produto vai sair desse processo.

 

 

POEMAS DO LIVRO PESADO DEMAIS PARA A VENTANIA

 

 

Álbum de família

Meu pai viu Casablanca três vezes (duas
no cinema e uma na TV). Meu avô
trabalhou na boca da mina. Meu bisabô
foi, no mínimo, escravo de confiança.



Outro, outra pessoa

Era visível que ela me tomava por outra
pessoa. Pediu: venha um pouco mais para

a luz. Aqui está bem?, perguntei. Aqui é
minha ilha, respondeu. Calei um sim,

parado sob o círculo de luz para onde ela
pedira que eu viesse. Já me sentia outro,

outra pessoa, embora ainda não soubesse
exatamente quem, que outra pessoa.




Re:provérbio

quem nunca comeu farelos
aos porcos se misturando
que atire a primeira
pérola




Queridos dias difícieis

Queridos dias difíceis,
acho que já deu -- embora

eu considere prematuro
um definitivo adeus.

Querendo, voltem. Minha
casa é de vocês. Agora,

pensem bem se será mesmo
saudável nos testarmos em

novos convívios tão longos
(também não sou fácil) como

foi desta vez. Menos mal se
vierem em grupos -- tantos,

em tais e tais períodos do mês.
Topam correr o risco? Vão resistir

até o fim? Podem vir, eu insisto.
Mas primeiro contem até três.

 

 

 

 

 

 

PESADO DEMAIS PARA A VENTANIA
• De Ricardo Aleixo
• Todavia
• 200 páginas
• R$ 39,90 (livro) e R$ 27,90 (e-book)

LANÇAMENTO
Amanhã, às 16h, na Crisálida Livraria e Editora (Edifício Maletta, Rua da Bahia, 1.148, sobreloja, Centro, (31) 3222-4956).

 

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