Conheci o João Dumans quando ele trabalhava no Cine Humberto Mauro, em Belo Horizonte. Eu acreditava piamente que seu futuro era ser crítico de cinema. Respeitava suas opiniões. Mesmo assim, nosso contato era bem esporádico. Durante alguns anos, não trocamos nem ao menos um oi. Mas, no final de 2014, meio que do nada, chegou e-mail – que começava com um esperado “há quanto tempo!” – me convidando para a exibição de A vizinhança do tigre, filme que contava com sua colaboração no roteiro e na montagem. O que mais me deixou curioso vinha a seguir: “Indico também dois filmes que farão parte da mesma mostra: Branco sai, preto fica, do Adirley Queiroz, e Ela volta na quinta, do André Novais. Na minha opinião (tendenciosa e comprometida), a reunião desses três filmes num mesmo festival é um dos acontecimentos cinematográficos mais importantes do ano no Brasil.
Pelo tom, senti que deveria levar aquela declaração bem a sério. Ela anunciava o aparecimento de algo importante e que só poderia crescer forte. Não tinha ouvido falar dos diretores, pois andei um tempo sem acompanhar as novidades dos festivais de cinema ou do cinema brasileiro/mundial em geral. Vi os filmes. Concordei com o João: a existência daqueles filmes era realmente um excelente acontecimento, parecia mesmo um “movimento” auspicioso. Mas fiquei quietinho, esperando as próximas produções, para ver onde aquilo ia dar.
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Rodado em MG, o premiado 'Arábia' estreia em apenas uma sala de BH12 poemas para Marielle Franco'Existe um declínio dos ideais e uma resignação grande'', diz filósofo Adauto NovaesNo cinema, esperando a sessão começar, ao reencontrar o João comentei citando aquele e-mail: “Deu certo, não deu?”. Fiquei sem saber o que sentir: é para ficar alegre ou triste com o ter dado certo?. Estranha sensação de ver essa consolidação de uma escola cinematográfica “de periferia”, no momento em que o país “oficial” tomou um outro rumo, completamente diferente daquele que gerou essa “escola” (fala-se de uma “escola de Contagem”) de filmes. Seus diretores são certamente herdeiros de outra época, parecem exilados ou extremamente deslocados no Brasil atual, como se habitassem universo paralelo, o do país que poderia ser e deixou de ser.
TRISTEZA Quando Arábia terminou, eu continuava a não saber se estava triste ou alegre. O filme é uma grande vitória, tanto política quanto estética, um passo seguinte digno para A vizinhança do tigre (que já amadureceu como, indubitavelmente, uma das melhores obras artísticas brasileiras deste século).
Será? A própria existência e qualidade daquele filme, feito pelas pessoas que fizeram aquele filme, não é prova de que algo mudou para melhor, de que não há como voltar atrás diante do que foi conquistado? Todas essas novas escolas e todos esses novos olhares de produção audiovisual brasileira não podem mais ser ignorados. Todos esses coletivos que passaram a fazer cinema nestes últimos 20 anos não vão mais ficar parados, passivos. Mas que caminhos vão criar para continuar a produzir, agora que o “mundo” mudou?
Volto a ficar alegre, pensando que serão múltiplos caminhos, abertos na marra. João estava certo: esses novos filmes “periféricos” são absolutamente diferentes entre si. Mesmo a diferença entre A vizinhança do tigre e Arábia é instrutiva a esse respeito. Não há uma única “periferia”, nem uma única experiência periférica. Essa multiplicidade social se reflete em representações estéticas também múltiplas.
Primeiro, o mais óbvio: nunca as periferias ou bairros pobres/populares (e suas personagens) apareceram desse jeito tão cru em nossas telas. Não estou aqui para dizer que só gente da periferia consegue produzir as imagens “verdadeiras” desses lugares e pessoas. Aprecio olhares “de fora”, que muitas vezes conseguem perceber aquilo que quem é “de dentro” não enxerga, inclusive por causa da “proximidade”. As visões desses novos cineastas foram treinadas certamente pelo estudo de muitas outras cinematografias, brasileiras ou estrangeiras, “de arte” e “comerciais”. Mas acrescentaram algo de novo ao intenso debate anterior.
Por exemplo: sua recusa de uma direção de arte “embelezadora”. Em muitos filmes anteriores, feitos geralmente por gente de outros bairros da cidade e outras classes sociais, geralmente, havia uma tendência para o pitoresco, para o artesanato. A periferia urbana era representada por uma vila antiga do subúrbio, casas com azulejos coloridos nas fachadas. Pobres rurais viviam em casinhas de sapê, mulheres com vestido de chita, lenço no cabelo, dormindo em redes, comendo comida “típica”, ouvindo música não pop. Desapareciam shortinhos, tops, camisetas piratas da Abercrombie (ou de campanhas de políticos), sofás ou TVs de plasma comprados na Casa & Vídeo. “Eles”, os pobres, precisavam ser os guardiões de nossa autenticidade perdida, para público de festival de cinema aplaudir.
PRECARIEDADE Talvez, no cinema, eu tenha visto essa periferia “real” antes, retratada dessa maneira, em cenas dos filmes de super-heróis bate-bolas de Felipe Bragrança ou naquele documentário Santa Cruz, de João Moreira Salles, e poucos outros.
A câmera faz enorme esforço para não julgar nada (mesmo sabendo que nenhum plano é inocente, e que nunca vai ser possível mostrar tudo): não está ali para separar o belo do feio. Está totalmente familiarizada com aquele mundo ao redor. Mesmo quando inclui novidades de um outro artesanato, como as próteses e adaptações para a vida em cadeira de rodas na Ceilândia, cidade-satélite do presente/futuro de Branco sai, preto fica. Ou o aparelho para medir pressão arterial ou as sessões de vídeos do YouTube em Ela volta na quinta. Ou a recusa de rúcula em Arábia. Ninguém ali é bobo, desinformado, coitadinho. Gosto especialmente das cenas de música em A vizinhança do tigre: o metal vira passinho e depois rap. Tudo misturado, apaixonado. Quem pode dizer qual a música verdadeira ou a mais autêntica naquela “comunidade”? A câmera, mais uma vez, não quer julgar nada. Mesmo quando condena o que está errado no mundo todo.
EXPERIÊNCIA Outro elemento comum nesses filmes, talvez complementar a essa maneira (talvez maneirista) peculiar, quase impossível, de ser realista: um tomar partido com enorme gosto pelo “infraordinário” (vide Georges Perec) ou a busca militante, evidentemente intransigente, pelo “o transordinário na experiência humana ordinária” (vide o discurso de posse de Guimarães Rosa na Academia Brasileira de Letras, que completou recentemente 50 anos). Isso está em Affonso/João e em Ardiley, mas fica totalmente comovente no amor pelo cotidiano nos filmes do André, em que a família do diretor atua como os melhores atores que há. Mesmo no curta Quintal, tudo que ocorre de extraordinário e absurdo é vivido e registrado como se fosse o mais banal dos acontecimentos comuns.
Pensando nisso, volto a ficar alegre. E triste. Voltando também a ter dúvidas sobre o futuro dessa “escola” (ou de todas as escolas). Essas obras são presentes para o Brasil: aumentam nossa capacidade de entender a nossa complexidade, com outros novos olhares, atentos para detalhes que antes “ninguém” via, e que podem ser pistas valiosas para repensarmos nossos lugares no mundo. Não sei se o país hoje reconhece essas (ou se reconhece nessas) boas dádivas. Não sei nem se percebe o que ganhou (fruto de muito esforço). Torço para que esse novo cinema não se transforme apenas em sucesso de festivais e mostras “paralelas”. Tomara que toda essa gente que começou a lançar filmes recentemente invente rápido novas estratégias para produzir e incentivar o aparecimento de novos olhares em muitos outros lugares. Que a periferia não volte a ser apenas periférica.
* Hermano Vianna é antropólogo, autor de O mistério do samba (Zahar, 1995) e O mundo funk carioca (Zahar, 1998). Este artigo foi publicado em 25 de novembro de 2017 no blog do autor e foi gentilmente cedido ao Pensar..