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12 poemas para Marielle Franco

A morte de Marielle Franco completa 30 dias. Acreditamos que sua voz continuará ecoando por meio de tantas outras vozes e, por isso, entoamos o canto de liberdade pelo qual ela partilhou sua vida, usando uma de nossas armas:  a poesia. A convite do Pensar, unimo-nos a outras poetas mulheres mineiras, com quem somamos, para fazer estas páginas-homenagem.
Para gritar, cada uma a seu modo. "Precisamos gritar" para que não caia no esquecimento mais uma violência contra a mulher. Marielle está presente e acorda nossa palavra poética, ainda que sangre versos duros e tristes.  Mas, como escreve Conceição Evaristo: "A noite não adormece nos olhos das mulheres".
Adriane Garcia e Thais Guimarães                   


Recado
AnaElisa Ribeiro

astuta a morte,
que prega peças;
quantas vezes ouviste,
quando foste criança,
menina, não mexas no vespeiro!

mas a todas as meninas pretas
dizem as mesmas tolices;
e a todas as meninas, afinal.
até o dia em que,
incomodados com tanta ousadia,
executam-nas a céu aberto,
devolvendo-as ao silêncio.

tua voz, no entanto, semeia
e o silêncio jamais será o mesmo,
cravejado de mil gritos.


Revoada
Silvana Guimarães


sangrar o amor em nome do ódio numa emboscada
machista racista escravocrata - atalhar uma vida -

sofrer com o trabalho forçado no tribunal da memória
cochilar sobre arames farpados nunca mais dormir

conviver com minhas faces tremulando nos jornais
- estandartes da esperança renovada ad infinitum -

suportar meu corpo tomando posse de outros corpos
agigantando-se neles à cata de tolerância & justiça

: agora sou uma flor negra & altiva que a morte
regenerou e transmigrou em inúmeros pássaros

pólen néctar colibri minhas palavras espalham-se
ao vento e esse ardor você não pode emudecer
                                                                    

Dos perigos de comer com o olhar
Nívea Sabino

Desqualificada
em vida

Uma fruta
que
pouco importa
o sabor da polpa

A casca
que envolve o fruto
afasta


Mariana de Matos
          
 quando se derruba uma mulher preta                                              ,ou seja,  
quando se atira em uma vela acesa
a chama no chão avança e encosta no corpo preto inflamável da mudança  

revela                                               que o que era a preta amanhã será era  
e a partícula incandescente que desprende do corpo em brasa
faz do que foi símbolo da espera                                movimento de espada       


Direitas
Líria Porto

mulheres
mirem-se no espelho de amélias marcelas
carminhas
respaldem o grande
o rico homem branco
e nem pensem nas marielles nas beneditas
nas jandiras
estas devem ficar nas senzalas
caladas e debaixo de relho

(as que falem por pobres e pretos
silenciamos à bala)


Elegia para Marielle Franco
Simone Teodoro


Mana,
não nos disseram que este era mundo de O'Brien,
sombriamente imaginado por Orwell e simbolicamente
representado pela bota de soldado pisoteando um rosto

Mana,
teu grito contra os fuzis dos ratos de botas
se impõe na longa insônia de março

Quiséramos que nossos poemas fossem couraças
que emperrassem, do mal, a máquina
que implodissem, do ódio, a arquitetura
Mas nosso lirismo não logrou paralisar os dedos no gatilho

Este é o mundo de O'Brien e a bota prefere os rostos negros, femininos, lésbicos

Mana,
mesmo assim
do teu corpo imolado
do teu corpo metáfora
brotará extensa relva
E aprendi com Lundkvist, um poeta, que a relva responde a cada ameaça crescendo.



Lisa
Alves

Não possuía escapes - lacraram todos os orifícios de evasão.
As flores de dentro tornaram-se rudes e secas.
Até o ar ficara denso.
Nem regalia de afundar-se ao chão,
nem michas por debaixo das portas (Portas?),
nem correio, nem leiteiro, nem vozes (veludas vozes),
nem sirenes e nem a cantiga do bem-te-vi.
Ela era toda silêncio.


Reação
Bruna Kalil Othero


do alto da sua torre de marfim
tão branca e tão classe média

você acha que manda no mundo
escreve calúnias na wikipédia

não adianta chamar o papai
não dá mais pra ser salvo

agora engole os xingamentos
que você está bem no alvo

suas palavras machucam
armas também

disse, armada,
pro homem de bem


Fernanda Fatureto

Da história instrumental dos que são feridos
por alguma injustiça remota,
qualquer que seja a retórica,
os inocentes serão julgados pelo marco
de um parágrafo escrito em tinta preta
sobre um papel perverso que destila o ódio
em suaves prestações.
À espera de um grito que cure
o ressentimento do mundo
ou mesmo ressalte o caráter transitório
da ideologia:
Pátria partida e nenhum elo que a una
novamente.
Uma mulher é silenciada no país da escravidão.


Gatilho
Adriane Garcia e Thais Guimarães

Escarcéu:
Acari é aqui

Complexo do Alemão
a metáfora da nação

50 mil
por um fuzil

Quanto vale a vida
nessa guerra?

Quem não paga o quinto
vai pro inferno

(a multa pelo atraso
é sangue)

Parece ficção
a facção política:

Assassinados
mais de 100 ativistas

Proteção só tem quem
paga duas vezes

Matar a menina que grita
coração-cabeça

Matar antes que ela cresça:
a menina-estrela

Pra cada lugar de fala
quatro balas

Rastilho de pólvora
se espalha


O fazer do melro
Simone de Andrade Neves


A gradual escava do prego
desfaz do melro a parede  

No trabalho de descama
a graúna acessa tijolos
completando o rodeio
à amarra da gaiola que a prende.
Há silêncio?

Nova voz ecoa da tribuna
ao sopé do morro
mãos
suspendem o sustenido
em quarenta e seis mil tons
projeta olvido canto
aves e fazeres

ah, as barricadas invisíveis
e o agir do silêncio.



Silvana Guimarães
(Belo Horizonte/MG). Poeta.

Editora da revista Germina e do site Escritoras Suicidas. Publicou em várias coletâneas, entre elas, 1917-2017 – O século sem fim (2017) e Hiperconexões – Realidade expandida Vol. 2 (2014).

Mariana de Matos
(Governador Valadares/MG). Poeta. Artista visual. Publicou Poesia pra pixo (2017); Meta (2016); Meu corpo é um esconderijo (2014), entre outros.

Nívea Sabino
(Nova Lima/MG). Poeta.
Educadora-social e slammer. Publicou Interiorana (2016).

Ana Elisa Ribeiro
(Belo Horizonte/MG). Poeta. Professora universitária. Publicou Xadrez (2015), Anzol de pescar infernos (2013), Fresta por onde olhar (2008), entre outros.

Líria Porto
(Araguari/MG). Poeta. Professora. Publicou Olho nu (2017), Cadela prateada (2016), Garimpo (2014), entre outros.

Simone Teodoro
(Belo Horizonte/MG).
Poeta. Publicou Movimento em falso (2016) e Distraídas astronautas (2014).

Fernanda Fatureto
(Uberaba/MG). Poeta. Publicou Ensaios para a queda (2017) e Intimidade inconfessável ( 2014).

Simone de Andrade Neves
(Belo Horizonte/MG). Poeta. Advogada. Publicou Corpos em marcha (2015), Dor andorinha (2015) e O coração como engrenagem (1994).

Lisa Alves
(Araxá/MG). Poeta. Publicou Arame farpado (2015).

Bruna Kalil Othero
(Belo Horizonte/MG). Poeta.
Publicou Anticorpo (2017) e Poétiquase (2015).

Adriane Garcia
(Belo Horizonte/MG). Poeta. Publicou Só, com peixes (2016), O nome do mundo (2015) e Fábulas para adulto perder o sono (2014).

Thais Guimarães
(Ceará/radicada em MG). Poeta. Publicou Jogo de cintura (1984) e Jogo de facas (2016), entre outros..