Sam Shepard (1943-2017) escolheu a forma do romance, que não havia usado antes, para encerrar uma trajetória altamente reconhecida como autor de peças teatrais e de contos. O esforço final resultou no livro Aqui de dentro, editado pela Estação Liberdade, com tradução de Denise Bottmann. A narrativa condensa estilos e temas que, com suas estranhezas, estiveram presentes em sua obra.
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O pai é um veterano da Segunda Guerra Mundial. O narrador rememora o momento em que ele, aos 13 anos, assiste ao pai tendo uma relação sexual com a garota Felicity, de 14. Em pouco tempo, também ele passa a ter um caso com a adolescente. Esse é o fio condutor que Shepard costura os fragmentos que vão de narrativas curtíssimas aos diálogos teatrais e a uma escrita próxima da poesia.
“Aqui de dentro é um atlas se amalgamando, marcado pelos saltos das botas de um andarilho que trilha instintivamente, de olhos abertos, as distâncias de suas estradas misteriosas”, assinala a cantora e escritora Patti Smith, que escreveu o prefácio do livro e foi uma das várias paixões de Shepard. Ela o chamava de “meu caubói com jeito de índio” e contou a bela história deles no livro Só garotos.
Os diálogos do narrador com a Garota Chantagem são impagáveis e remetem a Samuel Beckett (autor que muito influenciou Shepard), com seus silêncios, indeterminações e situações de espera infinita. Aos 20 anos, a “chantagista” é a parceira atual do narrador aos 70. “Me perguntaram sobre a família. Falei que não tinha. Pais mortos. Irmãs longe. Filhos espalhados”, conta o narrador, ao meio a mais delírio na cama de um hospital.
Num ponto alto do livro, ele e a Garota Chantagem se encontram em um set de filmagem. O autor dá a pista de que o narrador pode ser ele mesmo. A descrição é dos bastidores de Álbum de família (2013), no qual Shepard interpretou um alcoólatra que se mata e deixa para trás uma história familiar de horrores. “Conhecia isso . Não precisava ensaiar. A minha vida inteira era um preâmbulo”, observa o narrador.
Shepard teve uma carreira ímpar no cinema, como ator e roteirista. Seu livro Crônicas de motel foi a base para o filme Paris, Texas (1984), de Wim Wenders, escrito em parceria com L. M. Kit Carson. Já estão lá elementos que se consolidam anos depois em Aqui de dentro: narrativa inicial difusa, silêncios, paisagens desérticas, solidão dos quartos de hotel e trágica história de família.
A lição de Franz Kafka é bem assimilada por Shepard: “As sereias têm uma arma ainda mais assustadora que o canto – o silêncio”. A cada passo dado, a escrita parece mais esconder do que revelar. Lição esta que é também de Beckett, que influenciou o início vanguardista de Shepard nos pequenos teatros de Nova York dos anos 1970. Ele e Patti Smith moravam no mítico Chelsea Hotel.
A obra de Sam Shepard tem um estilo muito particular no cenário da literatura norte-americana, uma das ricas e interessantes a partir do século 20. Peças, contos e agora este romance fundem realismo, memórias e situações absurdas que o colocam entre os principais autores dos Estados Unidos. E a concorrência não é simples em um campo literário que tem Philip Roth e Toni Morrison.
AQUI DE DENTRO
De Sam Shepard
Estação Liberdade
208 páginas
R$ 39
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