Quando estava em frente à estação das barcas, na Praça 15, no Centro do Rio de Janeiro, o escritor Carlos Eduardo Pereira teve o estalo. Havia encontrado o ambiente apropriado para situar a história que há tempos tentava escrever, de um homem que retorna para casa em condições adversas. “Fiquei algumas horas por lá observando”, lembra o carioca. “Não era ainda um personagem cadeirante, mas fiquei pensando na encrenca que seria se eu tivesse que entrar ali, naquele momento, ou na hora do rush, numa daquelas embarcações e fosse parar do outro lado. Fazia sentido como imagem para o que eu buscava naquele momento.” Eis o ponto de partida da bem-sucedida travessia de Pereira em seu romance de estreia, Enquanto os dentes (Todavia Livros).
Pequeno e notável, o romance de 96 páginas narra as reminiscências, anseios e fissuras emocionais de Antônio, cadeirante negro de classe média, em sua iminente volta à casa dos pais. Boa parte da narrativa se concentra na travessia da barca rumo a Niterói, onde vive o pai de Antônio, identificado como Comandante. “O mar está mexido, o que faz com que a barca chacoalhe um pouco mais do que o normal, e o funcionário de colete acha por bem transferir a manobra de embarque do CDR (é assim que eles chamam o Antônio, de CDR), para os marujos vestindo outro tipo de colete, que já devem estar acostumados com a operação de transferência entre o barco e o cais, que também balança, quase tanto quanto, só que no sentido contrário”, narra Pereira.
Nascido e criado na Ilha do Governador, o professor de história e servidor público Carlos Eduardo Pereira tornou-se cadeirante em abril de 2010 após uma doença autoimune, espécie de versão agressiva da esclerose múltipla. “Comecei com algumas dificuldades de locomoção, que evoluíram em poucos dias para a paraplegia”, revela. Aposentado no trabalho, ele foi atrás de uma atividade para preencher o tempo subitamente livre, “algo que eu gostasse de fazer, mas que nunca houvesse tido oportunidade para desenvolver”. Fez graduação em produção de textos no Departamento de Letras da PUC-RJ em 2012. O resultado é o nascimento de um grande escritor, atento aos detalhes e fluente nas idas e vindas no tempo, no ritmo das ondulações do mar. Como define o experiente Cristovão Tezza na orelha, Enquanto os dentes tem “um narrador poderoso, é a bela estreia de um prosador completo”, ao apresentar o autor carioca. “Há uma quantidade grande de autores contemporâneos produzindo uma literatura inventiva e potente ambientada no Rio de Janeiro”, defende Pereira, citando três nomes: Alberto Mussa (do romance A hipótese humana), Marcelo Moutinho (do premiado livro de contos Ferrugem) e Julia Wähmann (do recém-lançado Manual da demissão). A seguir, uma entrevista com o autor carioca, com perguntas elaboradas também a partir de trechos do romance.
Qual a matéria-prima de Enquanto os dentes? Vivências, observações ou a imaginação?
A imaginação. Sempre pensei o projeto como algo essencialmente imaginativo. Os demais elementos – vivências, observações – são ferramentas para trabalhar essa matéria-prima, e não o contrário. A imaginação é capaz de transformar as experiências vividas em algo para além do concreto de todo dia, e com isso se abrem-se novas possibilidades de leitura, o que me interessa.
Quem é Antônio e por que escrever um romance sobre ele? Por que o tempo flui “de uma forma estranha” para o protagonista do livro?
Antônio é um sujeito comum, de origem popular. Alguém que se pode encontrar em qualquer esquina de uma grande cidade. E penso que é justamente esse o ponto: a gente tem mais é que falar sobre a gente, olhar um pouco mais para os lados e menos para cima. O tempo para ele flui da mesma forma que flui para todo mundo, as memórias embaralhadas em fluxo com o presente, tudo mais ou menos junto, meio caótico. O narrador é que estranha, é uma necessidade dele, precisa organizar minimamente as ideias como condutor da coisa toda.
Ao se referir à Marinha, o narrador reproduz discurso de um capitão de mar e guerra. “Pode ser difícil, mas molda o caráter. Acredite, aqui se forjam homens de verdade.” A vivência nas Forças Armadas é pouco representada na literatura nacional? O que há de mais marcante nessa vivência e como ela pode contribuir para uma obra literária?
Sim, acredito que essa vivência seja pouco explorada, num país, por exemplo, em que o serviço militar é obrigatório. Geralmente, um sujeito se junta às Forças Armadas quando é ainda muito jovem, e por um período relativamente extenso. Renuncia-se a muita coisa, ao mesmo tempo em que há também suas recompensas. Vivem-se experiências únicas, muito próprias de uma comunidade fechada. Com normas próprias, linguagem própria. E o restrito é material interessante na literatura. Nós, como leitores, temos a oportunidade de viver situações a que nem todos são submetidos, o que é ótimo.
Em determinada passagem do livro, há a referência a seis tipos de movimento das embarcações, “considerando-se os diferentes estados do mar”. O que o mar representa para Antônio? E o que a Baía de Guanabara significa para os moradores do Rio e de Niterói?
O pai de Antônio é da Marinha, foi uma infância inteira à sombra dessa realidade. O problema é que ele tem questões de relacionamento não resolvidas com esse pai. Então, a escola na Marinha, ou os momentos difíceis de uma adolescência passada numa escola na Marinha acabam servindo de representação desses problemas com o pai. E Rio e Niterói são cidades que precisam administrar sua relação, que é também problemática, com a Baía de Guanabara. As questões relacionadas à poluição, o custo disso à preservação do meio ambiente, à sustentabilidade, questões relacionadas à mobilidade urbana, à circulação de bens, ao comércio, ao turismo, à segurança pública são pontos de tensão constante. Na minha leitura, existe uma conexão entre os problemas pessoais dos personagens, o que o mar representa para eles, e os problemas dos cidadãos do Grande Rio na sua incapacidade de construir uma relação minimamente razoável com a baía.
“...Porque crioulo tem que manter o pelo curto, e Antônio tecnicamente é mulato, já que o Comandante é branco e a mãe, preta.” Por que foi importante, nessa passagem, a referência à cor da pele do personagem? Acredita que isso deve sempre ser explicitado em romances brasileiros ou é possível criar histórias sem tais condições?
É, sim, perfeitamente possível criar histórias sem abordar determinados temas. Um barato da literatura é que, nela, absolutamente tudo é possível. Meu posicionamento pessoal é que assuntos socialmente relevantes devem estar presentes nas narrativas literárias, desde que pertinentes à trama. No caso de Enquanto os dentes se discute o racismo, o machismo, a homofobia, intolerância, a luta de classes, que, felizmente, são pautas importantes na sociedade contemporânea brasileira, mas nenhum desses aspectos é atacado diretamente. E isso porque me interessa tratar dos conflitos familiares, de dificuldades de relacionamento interpessoal que são de todos, não apenas de determinados grupos.
O movimento dos barcos é acompanhado, em determinado momento, pela descrição do movimento da cidade, “movimento progressivo, seguindo uma ideia de urbanismo vertical”. Podemos dizer que os movimentos também são do tempo, com a alternância do presente e o passado de acordo com o ritmo das lembranças de Antônio?
Uma leitura possível para o romance é que ele fala de movimento, ou de se manter em movimento. Pareceu-me razoável que a forma do texto esboçasse essa ideia. Um texto contínuo, sem quebras em partes ou capítulos, com uma espécie de fluidez temporal, avanços e recuos no tempo, sem maiores avisos, talvez combine com a motivação de um personagem que precisa, mas não quer, seguir em determinada direção. A lógica dos dois passos para frente e um para trás, driblando obstáculos reais e imaginados, até chegar num determinado ponto. Acaba sendo trajeto e também trajetória.
“Na dança, a intuição estava acima da técnica.” E na literatura? O que, em Enquanto os dentes, é técnica e o que é intuição?
Fico tentado a dizer que tudo: tudo no Enquanto os dentes é intuição, e tudo técnica também. Porque uma coisa vem da outra. Funciona mais ou menos assim: a gente persegue uma intuição (ou intuições, claro) e dá um jeito de escrever sem muito freio essas intuições, depois esquece, no dia seguinte volta ao que escreveu e fica relendo e reescrevendo, relendo e reescrevendo (muitas vezes com alguma pesquisa nesse meio), até parecer minimamente razoável. E não é raro que, ao final desse processo, o que era uma página inteira vire um único parágrafo, ou o que era apenas uma frase se transforme em duas páginas inteiras. Pode ser também que não sobre nada.
O que muda na sua literatura do ponto de vista de um cadeirante?
Eu não escrevia antes de me tornar cadeirante, portanto, não tenho essa referência anterior no meu trabalho. O que posso dizer é que a perspectiva é outra. Procurei transferir para o narrador, por exemplo, algo dessa diferença de ponto de vista. Ninguém percebe, mas no livro não há sequer um nome de rua, de praça, de bairro. O Rio de Janeiro do Antônio cadeirante é um outro Rio de Janeiro, um pouco deslocado daquele de antes do acidente que sofreu. E isso acontece talvez porque o próprio Antônio passa a ser outro, observando (e interagindo com) uma cidade que é a mesma, e ao mesmo tempo é outra.
“As famílias felizes se parecem entre si. Já as infelizes são infelizes cada uma à sua maneira”, escreveu Tolstói. Quais são as impossibilidades e as infelicidades da família de Antônio? Como elas espelham as infelicidades das famílias brasileiras?
Essa família, pelos últimos vinte e poucos anos, vem sofrendo os efeitos de uma separação física. Antônio busca alguma espécie de vida autônoma, enquanto seus pais seguem juntos, apesar de parecer afetivamente afastados um do outro desde muito antes. Cada um dos três vem acumulando seus ressentimentos. Chega uma hora em que eles são forçados a lidar com essas emoções contidas, vão ter que dar um jeito. Vivemos num mundo de pouco diálogo. Determinadas intransigências me parece que são sustentadas além de um limite, causando mais isolamento e mais isolamento.
Enquanto os dentes é uma história contemporânea no Rio de Janeiro. A violência é contida, muito mais entranhada nos personagens do que exteriorizada em descrições de tiroteios, assaltos etc. Como a violência, onipresente na realidade, afeta a ficção?
A violência das grandes cidades brasileiras de hoje, que está nas ruas e aparece todos os dias no noticiário, já aparece todos os dias no noticiário. Portanto, acredito que a ficção pode ocupar um outro espaço. Ao abordar essa nossa realidade, e o Rio de Janeiro, infelizmente, é um cenário mais do que apropriado para isso, a literatura, por meio da linguagem e demais recursos estéticos, tem a chance de reconfigurar a violência como estamos acostumados a ver. E, assim, com essas novas abordagens, das ações violentas, dos lugares onde ocorre a violência, das circunstâncias envolvidas, a manifestação artística acaba provocando novas reflexões sobre o assunto.
Trecho
“Algum tempo depois do acidente, os dois perderam contato. Antônio tentou tocar a vida sozinho. Aprendeu com os profissionais da reabilitação que era possível manter a rotina, bastavam algumas pequenas adaptações e tomaria banho sem ajuda de ninguém, poderia pegar um ônibus na rua e até mesmo dirigir. Teria como se trocar por conta própria, vestir as calças, os sapatos, a cueca, seria um indivíduo autônomo, apto a trabalhar no que quisesse. Ele costumava ouvir de um tenente na escola que era um dos alunos de maior endurance na turma. “Pra quem não sabe, endurance é uma expressão muito usada pelos marines, que poderíamos traduzir livremente como capacidade de suportar privações”, o tenente sempre explicava em seguida. Ele era fã dos americanos e achava que o aspirante Da Silva daria um baita fuzileiro naval. Antônio foi gastando sua alma de fuzileiro, só que chegou uma hora em que foi obrigado a refugar. Enquanto os dentes da boca deram conta, ele mordeu, sustentou a vida que havia construído tijolo a tijolo, só que agora não dá mais. Agora ele sabe que acabou.”
ENQUANTO OS DENTES
. De Carlos Eduardo Pereira
. Todavia Livros
. 96 páginas
. R$ 39,90
Pequeno e notável, o romance de 96 páginas narra as reminiscências, anseios e fissuras emocionais de Antônio, cadeirante negro de classe média, em sua iminente volta à casa dos pais. Boa parte da narrativa se concentra na travessia da barca rumo a Niterói, onde vive o pai de Antônio, identificado como Comandante. “O mar está mexido, o que faz com que a barca chacoalhe um pouco mais do que o normal, e o funcionário de colete acha por bem transferir a manobra de embarque do CDR (é assim que eles chamam o Antônio, de CDR), para os marujos vestindo outro tipo de colete, que já devem estar acostumados com a operação de transferência entre o barco e o cais, que também balança, quase tanto quanto, só que no sentido contrário”, narra Pereira.
Nascido e criado na Ilha do Governador, o professor de história e servidor público Carlos Eduardo Pereira tornou-se cadeirante em abril de 2010 após uma doença autoimune, espécie de versão agressiva da esclerose múltipla. “Comecei com algumas dificuldades de locomoção, que evoluíram em poucos dias para a paraplegia”, revela. Aposentado no trabalho, ele foi atrás de uma atividade para preencher o tempo subitamente livre, “algo que eu gostasse de fazer, mas que nunca houvesse tido oportunidade para desenvolver”. Fez graduação em produção de textos no Departamento de Letras da PUC-RJ em 2012. O resultado é o nascimento de um grande escritor, atento aos detalhes e fluente nas idas e vindas no tempo, no ritmo das ondulações do mar. Como define o experiente Cristovão Tezza na orelha, Enquanto os dentes tem “um narrador poderoso, é a bela estreia de um prosador completo”, ao apresentar o autor carioca. “Há uma quantidade grande de autores contemporâneos produzindo uma literatura inventiva e potente ambientada no Rio de Janeiro”, defende Pereira, citando três nomes: Alberto Mussa (do romance A hipótese humana), Marcelo Moutinho (do premiado livro de contos Ferrugem) e Julia Wähmann (do recém-lançado Manual da demissão). A seguir, uma entrevista com o autor carioca, com perguntas elaboradas também a partir de trechos do romance.
Qual a matéria-prima de Enquanto os dentes? Vivências, observações ou a imaginação?
A imaginação. Sempre pensei o projeto como algo essencialmente imaginativo. Os demais elementos – vivências, observações – são ferramentas para trabalhar essa matéria-prima, e não o contrário. A imaginação é capaz de transformar as experiências vividas em algo para além do concreto de todo dia, e com isso se abrem-se novas possibilidades de leitura, o que me interessa.
Quem é Antônio e por que escrever um romance sobre ele? Por que o tempo flui “de uma forma estranha” para o protagonista do livro?
Antônio é um sujeito comum, de origem popular. Alguém que se pode encontrar em qualquer esquina de uma grande cidade. E penso que é justamente esse o ponto: a gente tem mais é que falar sobre a gente, olhar um pouco mais para os lados e menos para cima. O tempo para ele flui da mesma forma que flui para todo mundo, as memórias embaralhadas em fluxo com o presente, tudo mais ou menos junto, meio caótico. O narrador é que estranha, é uma necessidade dele, precisa organizar minimamente as ideias como condutor da coisa toda.
Ao se referir à Marinha, o narrador reproduz discurso de um capitão de mar e guerra. “Pode ser difícil, mas molda o caráter. Acredite, aqui se forjam homens de verdade.” A vivência nas Forças Armadas é pouco representada na literatura nacional? O que há de mais marcante nessa vivência e como ela pode contribuir para uma obra literária?
Sim, acredito que essa vivência seja pouco explorada, num país, por exemplo, em que o serviço militar é obrigatório. Geralmente, um sujeito se junta às Forças Armadas quando é ainda muito jovem, e por um período relativamente extenso. Renuncia-se a muita coisa, ao mesmo tempo em que há também suas recompensas. Vivem-se experiências únicas, muito próprias de uma comunidade fechada. Com normas próprias, linguagem própria. E o restrito é material interessante na literatura. Nós, como leitores, temos a oportunidade de viver situações a que nem todos são submetidos, o que é ótimo.
Em determinada passagem do livro, há a referência a seis tipos de movimento das embarcações, “considerando-se os diferentes estados do mar”. O que o mar representa para Antônio? E o que a Baía de Guanabara significa para os moradores do Rio e de Niterói?
O pai de Antônio é da Marinha, foi uma infância inteira à sombra dessa realidade. O problema é que ele tem questões de relacionamento não resolvidas com esse pai. Então, a escola na Marinha, ou os momentos difíceis de uma adolescência passada numa escola na Marinha acabam servindo de representação desses problemas com o pai. E Rio e Niterói são cidades que precisam administrar sua relação, que é também problemática, com a Baía de Guanabara. As questões relacionadas à poluição, o custo disso à preservação do meio ambiente, à sustentabilidade, questões relacionadas à mobilidade urbana, à circulação de bens, ao comércio, ao turismo, à segurança pública são pontos de tensão constante. Na minha leitura, existe uma conexão entre os problemas pessoais dos personagens, o que o mar representa para eles, e os problemas dos cidadãos do Grande Rio na sua incapacidade de construir uma relação minimamente razoável com a baía.
“...Porque crioulo tem que manter o pelo curto, e Antônio tecnicamente é mulato, já que o Comandante é branco e a mãe, preta.” Por que foi importante, nessa passagem, a referência à cor da pele do personagem? Acredita que isso deve sempre ser explicitado em romances brasileiros ou é possível criar histórias sem tais condições?
É, sim, perfeitamente possível criar histórias sem abordar determinados temas. Um barato da literatura é que, nela, absolutamente tudo é possível. Meu posicionamento pessoal é que assuntos socialmente relevantes devem estar presentes nas narrativas literárias, desde que pertinentes à trama. No caso de Enquanto os dentes se discute o racismo, o machismo, a homofobia, intolerância, a luta de classes, que, felizmente, são pautas importantes na sociedade contemporânea brasileira, mas nenhum desses aspectos é atacado diretamente. E isso porque me interessa tratar dos conflitos familiares, de dificuldades de relacionamento interpessoal que são de todos, não apenas de determinados grupos.
O movimento dos barcos é acompanhado, em determinado momento, pela descrição do movimento da cidade, “movimento progressivo, seguindo uma ideia de urbanismo vertical”. Podemos dizer que os movimentos também são do tempo, com a alternância do presente e o passado de acordo com o ritmo das lembranças de Antônio?
Uma leitura possível para o romance é que ele fala de movimento, ou de se manter em movimento. Pareceu-me razoável que a forma do texto esboçasse essa ideia. Um texto contínuo, sem quebras em partes ou capítulos, com uma espécie de fluidez temporal, avanços e recuos no tempo, sem maiores avisos, talvez combine com a motivação de um personagem que precisa, mas não quer, seguir em determinada direção. A lógica dos dois passos para frente e um para trás, driblando obstáculos reais e imaginados, até chegar num determinado ponto. Acaba sendo trajeto e também trajetória.
“Na dança, a intuição estava acima da técnica.” E na literatura? O que, em Enquanto os dentes, é técnica e o que é intuição?
Fico tentado a dizer que tudo: tudo no Enquanto os dentes é intuição, e tudo técnica também. Porque uma coisa vem da outra. Funciona mais ou menos assim: a gente persegue uma intuição (ou intuições, claro) e dá um jeito de escrever sem muito freio essas intuições, depois esquece, no dia seguinte volta ao que escreveu e fica relendo e reescrevendo, relendo e reescrevendo (muitas vezes com alguma pesquisa nesse meio), até parecer minimamente razoável. E não é raro que, ao final desse processo, o que era uma página inteira vire um único parágrafo, ou o que era apenas uma frase se transforme em duas páginas inteiras. Pode ser também que não sobre nada.
O que muda na sua literatura do ponto de vista de um cadeirante?
Eu não escrevia antes de me tornar cadeirante, portanto, não tenho essa referência anterior no meu trabalho. O que posso dizer é que a perspectiva é outra. Procurei transferir para o narrador, por exemplo, algo dessa diferença de ponto de vista. Ninguém percebe, mas no livro não há sequer um nome de rua, de praça, de bairro. O Rio de Janeiro do Antônio cadeirante é um outro Rio de Janeiro, um pouco deslocado daquele de antes do acidente que sofreu. E isso acontece talvez porque o próprio Antônio passa a ser outro, observando (e interagindo com) uma cidade que é a mesma, e ao mesmo tempo é outra.
“As famílias felizes se parecem entre si. Já as infelizes são infelizes cada uma à sua maneira”, escreveu Tolstói. Quais são as impossibilidades e as infelicidades da família de Antônio? Como elas espelham as infelicidades das famílias brasileiras?
Essa família, pelos últimos vinte e poucos anos, vem sofrendo os efeitos de uma separação física. Antônio busca alguma espécie de vida autônoma, enquanto seus pais seguem juntos, apesar de parecer afetivamente afastados um do outro desde muito antes. Cada um dos três vem acumulando seus ressentimentos. Chega uma hora em que eles são forçados a lidar com essas emoções contidas, vão ter que dar um jeito. Vivemos num mundo de pouco diálogo. Determinadas intransigências me parece que são sustentadas além de um limite, causando mais isolamento e mais isolamento.
Enquanto os dentes é uma história contemporânea no Rio de Janeiro. A violência é contida, muito mais entranhada nos personagens do que exteriorizada em descrições de tiroteios, assaltos etc. Como a violência, onipresente na realidade, afeta a ficção?
A violência das grandes cidades brasileiras de hoje, que está nas ruas e aparece todos os dias no noticiário, já aparece todos os dias no noticiário. Portanto, acredito que a ficção pode ocupar um outro espaço. Ao abordar essa nossa realidade, e o Rio de Janeiro, infelizmente, é um cenário mais do que apropriado para isso, a literatura, por meio da linguagem e demais recursos estéticos, tem a chance de reconfigurar a violência como estamos acostumados a ver. E, assim, com essas novas abordagens, das ações violentas, dos lugares onde ocorre a violência, das circunstâncias envolvidas, a manifestação artística acaba provocando novas reflexões sobre o assunto.
Trecho
“Algum tempo depois do acidente, os dois perderam contato. Antônio tentou tocar a vida sozinho. Aprendeu com os profissionais da reabilitação que era possível manter a rotina, bastavam algumas pequenas adaptações e tomaria banho sem ajuda de ninguém, poderia pegar um ônibus na rua e até mesmo dirigir. Teria como se trocar por conta própria, vestir as calças, os sapatos, a cueca, seria um indivíduo autônomo, apto a trabalhar no que quisesse. Ele costumava ouvir de um tenente na escola que era um dos alunos de maior endurance na turma. “Pra quem não sabe, endurance é uma expressão muito usada pelos marines, que poderíamos traduzir livremente como capacidade de suportar privações”, o tenente sempre explicava em seguida. Ele era fã dos americanos e achava que o aspirante Da Silva daria um baita fuzileiro naval. Antônio foi gastando sua alma de fuzileiro, só que chegou uma hora em que foi obrigado a refugar. Enquanto os dentes da boca deram conta, ele mordeu, sustentou a vida que havia construído tijolo a tijolo, só que agora não dá mais. Agora ele sabe que acabou.”
ENQUANTO OS DENTES
. De Carlos Eduardo Pereira
. Todavia Livros
. 96 páginas
. R$ 39,90