Uma bienal como “uma revolta contra a cultura predominante baseada no ‘centralismo’” e “um espaço de resistência contra o planejamento autoritário”. Assim os curadores da Bienal de Arquitetura e Urbanismo Shenzhen (Shenzhen/Hong Kong Bi-City Biennale of Urbanism/Architecture, ou simplesmente UABB) apresentam a última edição do evento, que começou em dezembro e segue até março. Importante exposição internacional que reúne artes visuais, arte urbana, arquitetura, experimentos urbanos, workshops, seminários e escolas temporárias, o evento é a principal bienal da Ásia e se apresenta como a única do gênero no mundo.
De fato, o assunto desta edição é essencialmente urbanismo e, mais especificamente, a importância dos bairros informais de Shenzhen, a cidade chinesa famosa por ter explodido metrópole em uma geração. Reza a lenda que Shenzhen era uma vila de 30 mil habitantes em 1979 e, hoje, sua população é de 12, 15 ou 20 milhões, dependendo da estatística.
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Anos depois, nenhum país do mundo estaria imune aos frutos desse experimento: aqui nasceu a política de “capitalismo de Estado” chinês, aqui foi instalado um parque industrial que se transformaria na “fábrica do mundo”, daqui saiu um modelo de desenvolvimento que, depois, se espalharia por outras SEZ e, aqui, muito provavelmente, foi fabricado algum componente dos eletrônicos que você usa.
“Sem origem, sem história, sem cultura.” Shenzhen é hoje uma típica cidade do Sul e da Costa Leste, as regiões mais prósperas do país. Combinação improvável de dois modelos de planejamento – o modernismo de estilo soviético e o utilitarismo de mercado –, é a cidade homogênea do milagre chinês, não muito distinguível de suas compatriotas e, usualmente, desprezada como um fenômeno capitalista sem nenhuma identidade.
Shenzhen, sede da gigante de equipamentos para telecomunicações Huawei, tem áreas verdes generosas, metrô extenso e eficiente, arranha-céus emblemáticos, ruas com comércio e serviços, paisagismo bem cuidado, ônibus elétricos etc. Tudo funciona bem. Para os poucos turistas estrangeiros que se aventuram pela cidade, há parques temáticos enormes, os dois mais famosos sendo o Window of the World, com 130 miniaturas de atrações turísticas nos cinco continentes, e o Splendid China, com miniaturas nacionais. Também há prédios assinados por arquitetos renomados, como a Bolsa de Valores de Shenzhen (OMA), o Centro de Arte Contemporânea (Coop Himelblau), o OCT Loft (Urbanus) e o recém-inaugurado Victoria & Albert Museum (Fumihiko Maki).
URBAN VILLAGE Mas o que importa é que a UABB deste ano não é uma celebração dessa arquitetura. É uma discussão sobre uma questão pouco conhecida fora da China: os bairros escondidos onde vive a maior parte dos imigrantes das grandes cidades chinesas, conhecidos pelo oxímoro de urban village, ou chengzhongcun.
Num país, em princípio, socialista, não há política de habitação social que contemple o enorme fluxo de trabalhadores e camponeses que se mudam para as grandes cidades diariamente. A solução coube ao setor privado: são essas vilas, ou bairros hiperdensos, que abrigam a maior parte da população flutuante da cidade. Pouca gente sabe que o milagre econômico do delta do rio das Pérolas se deu não somente pela abertura às oportunidades de Hong Kong, mas também porque há um mecanismo perverso, porém, autorregulador, que amortece as falhas das políticas centrais e combate o planejamento de cima pra baixo com reações de base.
Nos dizeres dos três curadores da bienal – Liu Xiaodu, Hou Hanru e Meng Yan –, “a urban village é um modelo alternativo de cidade contemporânea”. São espécies de cidades-chegada, que acomoda o fluxo exponencialmente crescente de novos shenzheners. Responsáveis por um sexto da mancha urbana, condensam quase metade dos habitantes. Em outras palavras, elas acomodam 45% da população em uma área que corresponde a apenas 16,7% da cidade.
Como um território à parte, autogovernado e conformado por um processo orgânico longe das políticas top-down características do modelo estatal centralizador, são espaços verdadeiramente inclusivistas e diversos. “Sob pressão de forças externas, elas se formaram espontaneamente e cresceram continuamente. A urban village é a última fronteira da campanha de requalificação urbana de Shenzhen, e também a linha de referência para um desenvolvimento urbano equilibrado.”
Nantou é o nome da urban village onde foi realizada esta bienal. No século 19, a vila era a sede administrativa da região, que também incluía Hong Kong, Macau e Zhuhai. Hong Kong se tornou independente de Pequim depois da Guerra do Ópio, em 1840, e, desde então, a importância política da vila foi se enfraquecendo. A mais antiga das urban villages de Shenzhen, Nantou tem ruínas de 1.700 anos que coexistem com o passado pré-revolucionário do século 20, a herança maoísta e o sistema econômico de uma SEZ.
Há de tudo nas suas agitadas vielas: restaurantes, oficinas, cortiços, templos, escolas, fábricas e centenas de handshake buildings, ou prédios residenciais de 10 andares, assim apelidados porque, de tão próximos um do outro, dá pra cumprimentar o vizinho pela janela. O curioso é que esta espécie de tampão habitacional que recebe os imigrantes de braços abertos é também um dos poucos bairros cujos terrenos e edifícios pertencem exclusivamente ao setor privado. Como numa imagem invertida das favelas da América Latina, aqui, a informalidade coincide com as poucas terras que escaparam das garras do Partido Comunista Chinês. Lá, a informalidade dos Barrios e dos Pueblos Jóvenes (favelas da Venezuela e Peru), geralmente ocorre em terrenos públicos; aqui, nas terras de propriedade dos aldeões.
Fios elétricos, dutos hidráulicos, roupas dependuradas e bugigangas nas janelas são vistos por todo lado, apesar de, no final, essa paisagem emaranhada estar bem mais integrada na cidade formal do que uma favela no Brasil, por exemplo. Passa-se de uma chengzhongcun (uma vila na área urbana) para a cidade oficial sem qualquer tensão social, sendo que a onipresença da bienal nos quatro cantos da vila só facilita essa integração. E aos ouvidos de um viajante, a cacofonia de Nantou soa como música, depois dos ruídos troados pelos shoppings e condomínios que dominam o cenário da Shenzhen planejada.
Comuna Muito antes do decreto da SEZ, centenas de milhares de camponeses trabalhavam nas paisagens agrárias produtivas e nos núcleos comerciais do delta, como afirma a arquiteta Juan Du, professora da Universidade de Hong Kong e autora de Urban villages and the making of communities. Durante o Grande Salto Adiante (1958-1960), de Mao Tsé Tung, as terras de Nantou foram coletivizadas pelo Estado em uma comuna agrícola. Mais tarde, as vilas se fundiram e as questões fundiárias se complicaram. “As urban villages conseguiram sobreviver por tanto tempo devido à ambiguidade da propriedade de uso da terra”, explica a pesquisadora.
Meng Yan, um dos curadores, explicou melhor essa questão fundiária: “As terras rurais originais, de propriedade coletiva, foram desapropriadas e convertidas em terras do Estado. No final, os aldeões perderam suas terras agrícolas, mas ficaram com os terrenos de suas casas agrupadas em pequenos núcleos urbanos. Quando viram a nova pressão de imigrantes e a subsequente demanda por aluguel de habitações, eles mesmos iniciaram a construção de edifícios residenciais”.
Foi então que os aldeões, agora donos de terrenos cujo modelo de ocupação só permitia sobrados de dois pavimentos, transformaram suas casas próprias em edifícios de 10 andares voltados para o mercado de aluguéis. Para tirar o máximo proveito de seus lotes, eles construíram para cima e para os lados, resultando nos handshake buildings. E foi por isso que, a partir de 1980, a população de imigrantes passou a ser gradativamente maior do que a população de aldeões, que, aos poucos, foram deixando as urban villages, enriquecidos com o aluguel de suas propriedades.
Equlibrando-se num lugar impreciso entre o caos e a ordem, o legal e o ilegal, a solução e o problema, Nantou escapa dos ditames do temível Departamento Central de Propaganda, órgão estatal que decide o que a imprensa não deve dizer em seus boletins distribuídos diariamente. Daí a pouca presença desses enclaves urbanos na mídia tanto ocidental quanto chinesa e, consequentemente, a forte pressão imobiliária para que as vilas cedam lugar ao mercado imobiliário que assolou todo o país, deixando um legado de torres e shoppings. Com isso, todo o passado arquitetônico de cidades inteiras foi apagado, o que muito colabora para o estado de vazio espiritual vivenciado pela sociedade chinesa contemporânea.