Encontro com o precipício
Bianca Dias*
Como falar de um poeta tão obscuro e, ao mesmo tempo, de cortante clareza? Herberto Helder – nascido em 1930, na Madeira, uma ilha algures no Atlântico – é o maior poeta português desde Fernando Pessoa, da estirpe de Hölderlin ou de Rilke, dono de uma poética violenta que extrai enigma das coisas elementares.
Um sujeito que recriou sua existência numa invenção poética da própria biografia, permanecendo nas zonas de um cotidiano de onde não foi afugentado o maravilhoso, na repentina desordem luminosa, numa espécie de motim com poemas assombrosos em que sustenta que “é preciso intoxicar-se com a paixão do perigo, desenvolver-se dentro dessa paixão”. Poemas que guardam em si a nobreza do indizível e os olhos de leoas maternas – essas insuportáveis coisas que nos contemplam.
Minha própria origem se mistura à poesia de um dos maiores poetas portugueses do século 20. Encontrei, no diálogo com meus antepassados, um poeta abissal que me segurou pelas mãos: “há que se pensar com delicadeza / imaginar com ferocidade”.
Em prosa ou em versos vigorosos e magníficos, Herberto Helder fala da ilha natal, das experiências-limite, das deambulações europeias, dos companheiros de jornada (Hölderlin, Rimbaud, alguns surrealistas, alguns beats), mas está a falar sempre de outra coisa, contornando com delicadeza vulcânica aquilo que seria incontornável.
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Seu percurso nômade inclui ofícios como o de serralheiro, cozinheiro e meteorologista. A vida pulsante o leva a viajar por diversos países, retornando a Lisboa em 1960, onde trabalha como redator, tradutor e bibliotecário. Nos anos 1970, volta a viajar pela Europa já com seu nome sedimentado e com o mesmo prestígio do trio formado por Antonio Ramos Rosa, Sophia de Mello Breyner e Mario Cesariny, aos quais mais tarde se somaria Al Berto.
Não procurei por Herberto Helder. Foi uma topada corporal que estraçalhou meu mundo: ferida e curativo. Seu livro O corpo, o luxo, a obra abriu minha pele com o estilete da linguagem e encontrei em sua poesia a maneira pela qual decidi atravessar minha própria vida.
“A vida é um buraco negro com palavras ao redor” – falava ele da gênese, do abismo que há na matéria, no corpo, da loucura e da solidão numa poesia densa e brutal que paradoxalmente me fez enxergar na neblina.
Suas palavras chegaram como espasmo e abrigo, como convite hipnótico ao mergulho em minhas inquietações e perplexidades. Ao mesmo tempo em que me colocava em movimento, não me oferecia solução alguma para as aporias do destino.
Embora exista essa indisfarçável presença biográfica, Herberto Helder foi um misantropo radical: não dava entrevistas, não recebia ninguém, recusou honrarias e prêmios. Sua vida foi destinada à poesia e o que interessava – dizia ele – estava ali, na sua maneira única e devotada de aproximar-se da realidade através do poder da poesia de decompor a palavra do mundo.
Defensor de uma radicalização do discurso lírico, Herberto Helder subverte uma ideia de biografia como causa e efeito, contesta a cisão entre interior e exterior, fazendo de cada imagem que habita seus poemas uma possibilidade de deslizamento para outras imagens, numa exuberância textual em que cabem fragmentos diversos de vida, pulsação e anatomia. Em 1971 e 1972, viveu em Angola como repórter e sofreu um grave acidente de carro que marcou seu corpo e sua poesia. Nesse período, escreveu crônicas e artigos que faziam um curioso contraponto à ideia de um poeta místico, misterioso.
Falo, então, de uma topada com um sujeito surpreendente, de uma espécie de encontro com alguém “solar-subterrâneo”, que condensava em sua escrita – na prosa ou na poesia – elementos místicos, outros profundamente mundanos, astrologia, alquimia e cítrica ironia assinalando o ponto fulcral das imagens e colocando o próprio corpo em risco para fazer poesia.
Herberto dizia: “A pessoa é uma frase: astro rude cruamente encordoado entre as omoplatas”. Ou: “Como se a tua frase fosse um buraco brilhando até os pulmões, com o sangue e a língua na minha garganta”.
Sustentando um anonimato provocatório num mundo de exposição massiva, paradoxalmente revelou na poesia detalhes de sua vida. Era uma escrita exercida como caligrafia extrema do mundo, um texto apocalipticamente corporal que rompeu com uma tradição bem comportada da poesia portuguesa.
Disse, sobre o tempo que viveu na África: “Vi leprosos. Fui tocado por leprosos. Vi a guerra, a morte frontal – a minha morte – e vi desertos. Vi-me a mim próprio subindo, numa metamorfose exasperada, dos precipícios do pavor até as estritas regras da vida”.
De maneira alquímica escreveu a vida com poemas caudalosos, criando uma sucessão de imagens implodindo no interior da realidade. Origem, silêncio, escrita feita para devorar a biografia, para ser antropófago, canibal de seu próprio coração, para conservar o tremor no abismo do mundo, para combater pela palavra “esta força inóspita que corrói por dentro e extravasa pelo mundo como uma calcinação”.
Nunca deu entrevistas. Numa autoentrevista, disse da solidão planetária de um poema, sobre as turvações da inocência, sobre uma espessura inesperada e ardentes perguntas sem resposta. É nesse terreno movediço que ele se movimenta e, sob tensão criativa, escreve fabulosamente o mistério do mundo, perscrutando o enigma da água, uma água vasta e nua, uma água maternal, terror sagrado, absurdo: “o terrível possui a sua doçura oblíqua, uma lírica sumptuosidade, uma exaltação muito pura”.
Ele riu de todas as pretensões exegéticas com lucidez aguda, encontrou sua assinatura, seu nome próprio na poesia como uma maneira de lidar com uma perturbação que contaminava cada instante de sua vida. Na década de 1960, viajou para França, Holanda e Bélgica, lugares que se tornaram cenários dos contos Os passos em volta (1963), se interessou pelos textos cosmogônicos de tribos indígenas brasileiras e por um modo de viver que diz ter aprendido quando morou na África e chamava de “primitivo e essencial”.
Seus poemas são casas à espera de serem habitadas, conciliação de coisas inconciliáveis, escrita de uma língua materna carregada de poderes magníficos e terroríficos. O mundo começa e termina na sua poesia, ele é o tradutor de um idioma perdido que se queima em seu próprio lume. Erguendo-se fora e contra o ruído do mundo, fez raras fotografias acentuando o caráter extremo da poesia e sua inutilidade que pulsa nos desfiladeiros das coisas todas. Para o crítico Eduardo Paulo Coelho, “a única compreensão possível dos poemas de Herberto Helder é a dança da própria inteligibilidade que se faz palavra a palavra”.
Topar, então, sem aviso na língua e, como Herberto Helder, encontrar “a inocência como uma condição insubstituível do escândalo”, “respirar o ar proporcionado como pura levitação”. Escutar “as vozes demoníacas, o abismo junto à dança”, “a noite que vai se insinuando a toda altura e largura da luz”, cultivar “um estado clandestino na ditadura do mundo” e lembrar das respostas-mantras de Herberto Helder para si mesmo na autoentrevista que é um poema: “a inocência deveria ter-nos oferecido uma vida estupenda”. “Na verdade a inocência não existe, não existe o demoníaco, senão como partes dinâmicas de um poder”.
E, ao final, reconhece estar metido numa espécie de guerra santa ao afirmar de maneira sagrada: “a minha inocência é assassina”.
Um poeta que desaparecia no interior de sua obra e fez de tudo para erradicar a ideia de coincidir consigo mesmo. Foi cortador de legumes numa casa de sopa, viajou pela Europa, foi guia de marinheiros em bairros de prostitutas em Amsterdã, empacotador de aparas de papel. Viveu em cada uma dessas atividades uma poesia contínua.
Não respondia aos apelos do culto, parecia caminhar por um tempo imemorial, fora da nossa cronologia, no tremor secreto da palavra. Sua posição perante a poesia é, também, sua posição perante o mundo. Ao perfazer um poema escrevia um corpo para si: “Acordo de madrugada para ouvir a trepidação que se comunica de membrana a membrana, da madeira à carne. Divago pela casa, embriagado pela minha própria hesitação, pela curiosidade e cuidado a mim mesmo, e a incerteza das minhas falas, movimentos da obscuridade para fora, para a luz, o que espelho verbal que me responde nos lampejos do rosto devolvido atonitamente. Tudo trabalha à minha volta, íntimo, carregado. A terra pulsa sob um arco extenuamente liso. Enfrento este sonho da terra. O meu poder é obscuro. Desalojo dos labirintos da ciência uma fala essencial, cultivada pela ingenuidade. Empunho essa arma inocente, com ela atravesso o meu ser dúbio, o vocabulário das contradições. Talvez eu mesmo comece aqui, neste momento ignorante, onde se faz uma claridade inexplicável”.
Seus últimos livros assinalam uma inflexão marcada por uma ainda mais nítida dimensão autobiográfica, em que retoma algo da tragédia que foi a perda da mãe aos 8 anos, que o poeta sintetiza com fina e brutal delicadeza nos versos de O sorriso louco das mães no livro A colher na boca: “no sorriso louco das mães batem as leves gotas de chuva”. A figura materna associada à beleza, à loucura e à morte é uma imagem recorrente em sua lírica.
Um ano antes de morrer escreveu A morte sem mestre, como se soubesse que aquelas seriam suas últimas palavras. Sua poesia, segundo o escritor português Antonio Cabrita, é um coração que tem que ser comido com a mão. Ele soube encontrar a dimensão do sublime, num arrebatamento em que o demasiado humano se projeta, numa escrita cósmica que vai buscar a luz no arcaico, nos antepassados, na história e na cultura, na mitologia e na religião.
A beleza extraordinária de seus textos é, em si mesma, um ato poético de transfiguração do mundo e uma abertura para que o sujeito em sua solidão existencial e anímica possa ter contato e dialogar com o transcendente.
Em sua poesia não há separação entre o belo e o terrível. A morte sem mestre é um exercício dilacerante de extraordinária coragem. E, mesmo quando a morte se coloca cronologicamente próxima, ele se recusa a ser roubado por ela, prefere desnudá-la um tanto sordidamente através da gloriosa matéria humana do que sustentar o mito que a pretende neutralizar.
Para Octavio Paz, a obra do poeta é sua biografia e, portanto, nenhuma fotografia nos dará uma imagem tão fiel de Herberto quanto suas palavras. Assim ele escreve uma vida pela arte/na arte/na poesia. Talvez baste uma coisa mínima, viva, uma coisa sub-reptícia, um esbarrão incontornável, a dimensão trêmula de um poema que, segundo ele, “de fora parece um objeto, tem suas qualidades tangíveis, não é porém para ser visto, mas para manejar”.
Perto do coração selvagem
Sabrina Sedlmayer *
A poesia de Herberto Helder exige do leitor que a leia de/vagar. Tal sinalização, deve-se alertar, é o título de um poema de sua autoria, mas também uma espécie de aviso aos náufragos, um lembrete para aqueles que se sentem à deriva quando o leem e anseiam por uma chave interpretativa que os conforte. Mas não há chave, apesar de muitas vezes o poema ser construído como uma casa, com portas e janelas abertas, para que adentremos em cumplicidade compartilhada nos corredores arqueados das palavras: “Falemos de casas como quem fala da sua alma” ou em outro momento, ”falemos de casas, do sagaz exercício de um poder tão firme e silencioso como só houve no tempo mais antigo”.
Autor de uma escrita caudalosa, espraiada, sinestésica e rigorosamente executada, talvez seja a voz mais desafiante (e imensa, acrescentariam os leitores lusos), das literaturas de língua portuguesa do século 20 após a explosão heteronímica chamada Fernando Pessoa. Cultivou durante mais de cinco décadas a convicção de que escrevia apenas e somente um único poema, “o poema contínuo”, e que levaria a vida inteira para fundá-lo.
O seu método não é fácil de identificar nem de analisar. Talvez porque Herberto Helder seja, a um só tempo, poeta do exemplo e da exceção. Exemplar na criação inventiva de imagens, exemplar na paixão pelo poder encantatório das palavras, exemplar no zelo que cuidou da sua persona. Misantropo, desde 1968, respondeu ao burburinho do mundo com o seu silêncio; recusou prêmios, nunca ofereceu entrevistas, reescreveu e imprimiu alterações substanciais nos poemas já publicados, retirou vários livros do mercado editorial, não aceitou reedições de quase todas as suas obras quando vivo, e se tornou fundamentalmente exemplar porque dedicou a vida integralmente ao exercício poético. Não é em vão que um dos seus livros se intitula justamente Herberto Helder ou o poema contínuo.
Ao mesmo tempo, Herberto Helder é exceção porque é raro: “Sou lento, sou fechado”. Nasceu na Ilha da Madeira, viveu em Portugal, país que o crítico italiano Roberto Vecchi acertadamente analisou, nos encalços teóricos de Eduardo Lourenço, como uma “exceção Atlântica”. A trajetória argumentativa do livro de Vecchi pode ser sinteticamente colocada assim: um povo que acredita ser possuidor de uma história de exceção vive um estado de exceção permanente, sem interrupção. E esse viver utópico não é nada ingênuo. Se foi a primeira nação autônoma da Europa e de lá surgiu a incontornável epopeia Os lusíadas, Portugal posteriormente sustentou um colonialismo e uma guerra colonial que se arrastaram por séculos, convenientemente apoiado em mitos fundadores da história nacional, mascarando a violência através dos discursos luso-tropicalistas e de crioulidade.
Vale lembrar que a palavra “exceção”, para o pensador italiano Giorgio Agamben, tem um lugar simétrico à palavra “exemplo”, sendo que a primeira é definida como exclusão inclusiva, e a segunda, como inclusão exclusiva. Em movimento sempre dinâmico, exemplo e exceção funcionam como polos oscilatórios, daí compreender como se construiu, ao longo dos séculos, a narrativa de um país excepcional que fora, com o tempo, transformado na exceção “da” e “na” história. Tal ponto é importante para entender como Herberto Helder, desde os livros iniciais, se posicionou contra o que seja moderno, racionalista, investigativo e utilitarista. Numa curiosa autoentrevista, sublinha:
“Sente-se um tremor secreto na palavra, desde a origem, desde as invocações e as imprecações dos feiticeiros, dos xamãs, dos hierofantes; esse tremor desaparece de súbito e um dia reaparece; sempre assim ao longo da história da palavra; deve-se ao surrealismo, numa época sem tremor, ter dito que ele existia; alguns surrealistas, não muitos, nunca são muitos, tinham os pés colocados sobre a linha sísmica que atravessa a terra, e vê-se que tremiam dos pés à cabeça, a sua palavra tremia na boca furiosamente enfática.”
Helder leu o Surrealismo tardiamente, lá pelos anos 1950, não como movimento estético e sim como possibilidade de experimentação, de liberdade de criação. A tradução, exercício importante durante toda a sua vida, opera uma sinuosa reescrita que visa justamente à atualização de vozes de outros poetas que em temporalidades distintas, culturas diversas, partilharam elementos acerca de um específico saber poético.
Como poeta que não traduz, mas muda as palavras para o português, estabelece diálogo com textos outros e não se restringe ao espaço de uma memória nacional ou de um imaginário imperialista e mítico português. Detém-se na poesia ameríndia – asteca, quíchua, yuma, sioux, omaha, navaja, na dos índios das Montanhas Rochosas, na dos peles-vermelhas – como também na dos esquimós, tártaros, japoneses, indonésios, árabes-andaluzes e mexicanos do ciclo nauatle.
A sua prática tradutória parece recusar a noção de literatura como discurso historicamente demarcado no espaço e no tempo ao ignorar parte considerável da poesia moderna oriunda da civilização europeia. Escolhe poetas e poemas não em termos utópicos de uma circunscrição de uma única língua portuguesa, mas vozes que heterodoxalmente mesclam lucidez com desvario.
No pequeno prefácio da singular antologia Edoi lelia doura, Herberto Helder conta duas histórias: uma japonesa e outra afrocarnívora. A segunda, para um leitor familiarizado com a sua escrita, é capaz de dizer quase tudo acerca da sua máquina lírica. Trata-se de uma narrativa sobre uma tribo que sepultava os mortos no côncavo de grandes árvores. Baobá era o nome da árvore e também do povo. Alquimia, devir, transmutação: todos esses termos são passíveis de ser dados ao processo metamórfico entre a carne humana e o esquema orgânico da matéria. Explica o antologista: “pelo nome tirado de si e posto na alquimia, a tribo investia-se nas transmutações gerais: a morte levava o nome, e o nome, activo e tangível, crescia na terra”.
Se essa história serve para ilustrar o método criativo do poeta e a sinuosa reescrita que visa à atualização de vozes de escritores que, em temporalidades distintas, culturas diversas, partilharam elementos acerca da poesia, é também pertinente para apontar a genealogia de escritores que formam a árvore carnívora de Herberto Helder. A via a que recorre o poeta para o estabelecimento do diálogo com textos outros – que denomina “vozes comunicantes” –, que nos remete imediatamente aos “vasos comunicantes”, de André Breton, não se restringe à criação de uma linhagem de uma memória nacional.
Parte considerável da crítica helderiana já salientou a dimensão trans-histórica, não periodológica do elenco de poetas traduzidos selecionados por uma espécie de escolha ético-poética: Blake, Artaud, Michaud, Hermann Hesse e Lawrence são traduzidos lado a lado aos poemas do Velho Testamento e do Egito Antigo. Em todos os seus cinco livros de tradução, a saber, O bebedor noturno, Magias, Ouolof, Poemas ameríndios e Doze nós numa corda, acentua-se a predileção pela escolha de culturas que sofreram abusivamente colonização e cujos poemas são, no presente, uma espécie de resto, rastro.
Ao afirmar que desconhece línguas, que é movido por um prazer deambulatório, amor projetivo, e as mudanças dos poemas serem apenas “explosões velozmente laboriosas”, Helder, além de apontar afinidades entre línguas, constrói sobrevida.
Nesse país que acreditou se alojar “onde a terra se acaba e o mar começa”, o poeta não parece desejoso de recuperar algo que se perdeu, mas de, reiteradamente, propor mudança, intervenção, ao abrir vias, viagens não teleológicas, para o ontem ser diferente no hoje. Na obra poética de Helder nunca encontramos coro às litanias nem lamurias imperialistas. Tal como Hermann Hesse, autor que traduziu para o português, cujo célebre romance O lobo da estepe trazia, via o narrador Harry Haller, o discurso selvagem capaz de se rebelar contra os ditames da civilização eurocêntrica, do capitalismo famigerado e sua histeria técnica, HH (percebam como o poeta português se filia, também pelas iniciais do nome próprio ao autor alemão e ao seu personagem, o qual poderíamos, com liberdade imaginativa, agrupar também a indomável e insubmissa Hilda Hilst, que, como eles, sempre escutou o coração selvagem) reconfigura a luta entre o velho e novo e refinando as metamorfoses e transfigurações do corpo:
“Era uma vez um certo Harry, chamado Lobo da estepe. Andava sobre duas pernas, usava roupas e era um homem, mas não obstante era também um lobo das estepes. Havia aprendido uma boa parte de tudo quanto as pessoas de bom entendimento podem aprender, e era bastante ponderado. O que não havia aprendido, entretanto, era o seguinte: estar contente consigo mesmo e com sua própria vida.”
Em um dos contos publicados no início da carreira, um dos raros exemplares, Os passos em volta, que foi reeditado sem cortes e alterações radicais como em todos os outros livros de poesia e um dos melhores livros de contos da língua portuguesa) talvez encontremos uma pista de como é a luta entre o lobo e o homem:
“Há felizmente o estilo. Não calculas o que seja? Vejamos: o estilo é o modo subtil de transferir a confusão e a violência da vida para um plano mental de uma unidade da significação. Faço-me entender? Não? Bem, não aguentamos a desordem estuporada da vida. E então pegamos nela, reduzimo-la a dois ou três tópicos que se equacionam. Depois, por meio de uma operação intelectual, dizemos que esses tópicos se encontram no tópico comum, suponhamos, do Amor ou da Morte. Percebe?”
Amor, morte, sangue, mãe, noite, casa, criança são alguns dos tópicos comuns que HH visita e reconfigura reiteradamente em sua poética. A ensaísta Silvina Rodrigues Lopes, lucidamente denominou-os de “nós” por serem capazes de enovelamentos que estancam, mesmo que fugazmente, o devir incessante que é a escrita helbertiana. Essa poesia que pensa com delicadeza, mas imagina com ferocidade, nos lembra que o estilo é o homem. E que diante da violência e desordem que é a vida, vale dar tempo ao poema.
*Professora e pesquisadora da Faculdade de Letras da UFMG