Ao escutar o termo pela primeira vez, fui tomada por indagações. O Estado tem o direito de apagar períodos da história pessoal e coletiva? Decisão judicial pode eliminar a circulação de informações sobre fatos sociais ocorridos com determinada pessoa porque isso pode gerar dor e prejudicar o indivíduo? Ao suspender a circulação de decisões documentadas e noticiadas, o Estado funciona como censor da história da sociedade? Como fica o direito à informação? São perguntas pertinentes, pois o tema é dos mais polêmicos, podendo afetar toda a cidadania por estar relacionado, em última instância, ao patrimônio da memória coletiva.
No Brasil, inexiste dispositivo legal que tipifique o “direito ao esquecimento”. Mas a tese para o seu acolhimento se constrói lentamente, já sendo, inclusive, tema de trabalhos de conclusão de cursos de direito e dissertações de mestrado. Na Câmara dos Deputados, projeto de lei prevê aos cidadãos o “direito de requerer a retirada de dados pessoais que sejam considerados indevidos ou prejudiciais à sua imagem, honra e nome, de qualquer veículo de comunicação de massa”. Em 2013, o Conselho de Justiça Federal (CJF) dispôs em enunciado da 6ª Jornada de Direito Civil que “a tutela da dignidade da pessoa humana na sociedade da informação inclui o direito ao esquecimento”. No mesmo ano, com relatoria do ministro Luiz Felipe Salomão, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) reconheceu o direito de não ser lembrada de uma pessoa sem envolvimento no caso da Chacina da Candelária, mas sempre citada em reportagens sobre o massacre ocorrido no Rio de Janeiro em 1993.
Relembro que as primeiras menções formais ao chamado “direito ao esquecimento” surgiram na Alemanha pós-Segunda Guerra, sociedade que ainda expiava responsabilidades pelas barbaridades praticadas contra milhões de seres. O que nos leva a projetar se, subjacente às origens remotas do dispositivo legal, há algum resquício de certo desejo coletivo de não se voltar ao passado, expressando dificuldade de lidar com traumas. Na Corte da União Europeia, o preceito foi aplicado pela primeira vez em 2014 contra o Google, mas já há quem aponte uma tendência de recuo na aceitação desse tipo de demanda.
HIPÓTESE PARA REFLEXÃO
Feito o levantamento genérico do estado da questão, proponho ao leitor que vislumbre cena hipotética, mas possível de vir a ocorrer, que ilustra as preocupações quanto ao tema:
Imaginemos que uma pessoa na faixa dos 35 anos, até então sem fama prévia, seja denunciada por crime de assassinato. As informações sobre o caso circulam pelas páginas de veículos de informação, e, principalmente, pelas telas de celulares, smartphones, laptops. A ação resulta em condenação e prisão. Cumprida a sentença, passados 10 anos, a personagem solicita o “direito ao esquecimento”.
Reivindica ao Judiciário que proíba a circulação nas mídias de informações sobre o processo em que esteve envolvida, pois a rememoração dos fatos passados, alega, lhe causa sofrimento e provoca prejuízos em sua reinserção pública. Poderosa banca de advogados obtém vitória, a decisão lhe é favorável. A partir de determinada data, nenhuma menção sobre o episódio em questão pode ser acessada em qualquer meio de divulgação e nos sites de busca que alimentam a internet.
Tempos depois, aos 60 anos, a figura, que até então não tinha se envolvido com política representativa, se candidata a cargo eletivo. A campanha constrói a narrativa da liderança e do comedimento, mas a sociedade fica impossibilitada de conferir tal discurso, impedida de conhecer em detalhes sua trajetória. Afinal, o veredicto do esquecimento exclui o acesso ao seu comportamento anterior.
Somos seres históricos, nossas biografias são formadas por acertos e erros, pelo reconhecimento de nossos feitos e também pela maneira como reagimos às injustiças praticadas contra indivíduos e instituições. Se o dispositivo for adotado, haverá uma “limpeza de biografias”? Pensando em escala, de posse desse entendimento, muitos, com a ajuda do “Estado editor”, poderão ajeitar seus perfis, à moda do que ocorre no Instagram e Facebook, quando projetamos somente a imagem que desejamos. Penso que muita gente condenada em primeira instância, portanto, que passou por processo na esfera pública, mas foi absolvida nas demais instâncias, poderá entrar com ações pedindo para ter o episódio esquecido. Nesse caso, um direito mais amplo, que é o direito coletivo à informação, esse sim registrado na Constituição, será ferido.
Mesmo quando acontecem flagrantes injustiças na esfera policial e da comunicação, como o conhecido caso da Escola de Base, ocorrido em São Paulo, se o “direito ao esquecimento” proibisse a busca digital desse episódio, a sociedade estaria impossibilitada de conhecer o ocorrido. Como aprenderemos a não repetir aquelas falhas se a história for construída apenas com a divulgação daquilo que é filtrado, considerado positivo ao envolvido no fato? Na legislação atual, os proprietários da escola poderiam pedir reparação, indenizações, mas não amputar o fato da vida social, da memória do povo. Há legislação suficiente para ser aplicada em casos de calúnia, difamação e abusos ao direito de imagem.
Sabemos serem a memória e a história sujeitas a reescritas. Para que isso ocorra, dados precisam estar disponíveis. A disseminação de um “direito ao esquecimento” poderá gerar lacunas importantes na compreensão e na interpretação da vida em sociedade. Pensando no sujeito individual, temos consciência da dureza que deve ser enfrentar a ira das redes sociais, lidar com a cacofonia que se estabelece quando um tema incendeia o mundo digital. Contudo, não será amputando a cadeia de informação e divulgação do que foi documentado que chegaremos a regulações sobre esse universo.
Esse tipo de ação censória-excisória podia surtir efeito quando o mundo da comunicação seguia os padrões advindos desde a Revolução Industrial – empresas com hierarquias, em que editores assumiam a responsabilidade pelo publicado.
A massa de dados que navega no ciberespaço é cada vez maior, a ponto de teóricos como o filósofo Byung-Chul Han dizerem que vivemos em uma sociedade pornográfica porque tudo pode ser exposto. Isso configura a grande mudança de paradigma e o complicador técnico para ações de controle como a da proposta mutilatória do esquecimento. Quando ocorre algum fato que afeta a sociedade, durante certo período de tempo, a informação sobre esse acontecimento circula em diversas plataformas e é possível ser armazenada por muita gente. Mesmo que, por força de uma lei, não venha mais a ser indexada em grandes sites, quem garante que ela não retornará em conversas de redes digitais privadas, como grupos de WhatsApp, cuja amplitude é cada vez maior?
Sendo assim, quantos grupos poderão disseminá-la? Quem controlará esse acesso? Como a Justiça fará para organizar tal ação repressora dentro da arquitetura das redes? Outro dado complicador: em um mundo em que as fronteiras da comunicação se diluem, entram em convergência, a base territorial dessa proibição pouco efeito surtirá. Os dados poderão navegar em outros estados.
Em La revolución silenciosa (Die stille revolution, no original), a professora de filosofia da tecnologia da Universidade de Westminster, Mercedez Bunz, lembra que a história da técnica cultural também se pode narrar, em uma variante emocional, como uma história do medo. Segundo ela, “não se vê como um progresso o fato de que o conhecimento hoje pode ser gerenciado inclusive sem organizações” e isso provoca confusão, intranquilidade e ânsias de controle. O esforço para criar uma lei do esquecimento, na qual o Estado, em especial na pessoa de 17 mil juízes de primeira instância, se arvora com o poder de “editar” a história, interferindo no debate público, soa como reação medrosa às profundas transformações provocadas pela sociedade digital.
Graça Ramos é jornalista, mestre em literatura brasileira e doutora em história da arte
Democracia e o poder do algoritmo
Lucas Negrisoli*
Quando a internet foi criada, muito se disse a respeito de sua capacidade de dar voz a um número enorme de cidadãos, alcançando um sonho democrático e que o princípio de igualdade seria inerente à nova mídia. Quase 30 anos depois do nascimento da world wide web, esse princípio se mostrou tão ingênuo quanto falso. Historicamente, os projetos de democratização e de distribuição de riqueza ou conhecimento têm sido desmontados pela lógica do capitalismo globalizado.
A tônica de qualquer sonho democrático – ou que se estende a essa pretensão – é sabida desde o início do pensamento da Idade Moderna: em diferentes momentos históricos, alentou-se o desejo de que o poder, antes nas mãos de grupos aristocráticos ou oligárquicos, pudesse ser substituído por um projeto de poder compartilhado e mais igualitário. Este ideal foi perseguido com a Revolução Francesa de 1789, com a Revolução Russa de 1917, com a instituição do mercado livre no início do século 20. Em todos os casos, emergiram caminhos que vislumbravam a oportunidade de mudança e de maior acesso ao poder de determinação política e social dos cidadãos.
Mas, a práxis funciona na gaveta da tragédia, e o que fora um sonho de expansão do poderio popular acaba apenas trocando os nomes em jogo nas oligarquias. O que antes foi guilhotina e terror, depois fome e a falência de um sistema e, em paralelo, o descontrole da besta incendiária do mercado, agora é a internet.
O sonho de democracia que a world wide web trouxe foi se transformando em misto de controle e comercialização da privacidade durante os seus 28 anos de vida. Em entrevista ao portal americano Spiegel Online, quando se comemoravam os 25 anos de existência da internet, seu criador, Tim Berners-Lee, declarou preocupação com os rumos que a tecnologia havia tomado. “Todo o nosso trabalho de colaboração e envolvimento com o projeto está, de alguma forma, sob ameaça. A internet se tornou tão poderosa, é uma tecnologia que vive no cotidiano de quase tudo que fazemos… tendo isso em vista, há uma forte tendência que os governos, as grandes corporações e empresas tentem controlá-la”, alertou. Dois anos depois, Tim Berners-Lee declarou ao portal GeekWire que estamos “constantemente à beira de descobrir que chegamos ao ponto de uma empresa controlar tudo o que todos consomem na internet”.
A preocupação do pai da world wide web, porém, não é exclusiva e, muito menos, recente. Em 1999, o fundador do Creative Commons e atual professor de direito na Universidade de Harvard, Lawrence Lessig, teorizou sobre as formas de regulação “legislativa” na web em seu livro Code and other laws of cyberspace (Código e outras leis do ciberespaço, em português). Em sua publicação, Lessing argumenta que há um paralelo na práxis dos sistemas de lei e os códigos de programação que formatam a internet, como se a maneira de coordenar e definir a conduta dos usuários da rede fosse, como é a legislação no ambiente cotidiano, feita pelas linhas de programação dos desenvolvedores. “Code is law” (“Código é lei”), postulou o pesquisador. A questão, entretanto, que paira sobre a obra de Lessing pode ser resumida em um de seus questionamentos no livro: “Se o código é lei, então, a verdadeira questão que nós devemos encarar é: quem deveria controlar o código?”.
O problema da internet como democracia, porém, começa a entrar em pauta mais frequentemente quando as redes sociais – em especial o Facebook, comandado por Mark Zuckerberg – começam a se transformar em agregadores de conteúdo. O que antes era um trabalho “ativo” de descoberta dos usuários, que passeavam entre um mar de links e páginas, hoje tem se configurado em um acesso que tende a ser concentrado nas mãos de empresas específicas.
A professora Joana Ziller, do programa de pós-graduação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e pesquisadora do Núcleo de Pesquisa em Conexões Intermidiáticas (NucCom), argumenta que o “sonho de democracia” que nasceu das redes é alvo de dúvida. “Em primeiro lugar, não sei se a internet foi um lugar muito diferente do que é hoje. Talvez essa percepção seja fruto da maneira com a qual a gente a enxergou”, comenta. Para Ziller, é evidente que a web trouxe, em si, a possibilidade de algumas práticas mais democráticas que ainda não eram possíveis – “aquela coisa de que ‘todos falam para todos, qualquer pessoa com acesso à internet pode ser uma pessoa que produz conteúdo’. Coisa que, nos meios de comunicação mais tradicionais, não existia”, conta. Porém, a pesquisadora ressalta que esse “potencial mais democrático” fica em questão quando a herança militar e empresarial muito forte da web é posta em perspectiva. “Assim como diversas outras tecnologias de comunicação, temos por um lado esse potencial democrático desde o princípio, por outro, também temos essa marca forte de uma cultura de controle militarizada e corporativa. De certa maneira, servem desde o princípio para contrabalançar a mudança que as redes prometiam”, ressalta. Ziller acredita que a imagem de liberdade imposta à web veio de uma ingenuidade creditada à novidade, “algo que tem essas origens não poderia ser tão livre como acreditávamos”, argumenta.
A pesquisadora destaca que, apesar de uma certa “desilusão” com a ideia da internet como ator primordialmente democrático existir, a forma como as pessoas interagem com seu meio é diversa e ainda possibilita a resistência. “É preciso olhar para o contexto em que a gente vive sem romantização. O Facebook ou o Google são empresas e estão preocupados em aumentar os lucros. Mas, por uma série de questões, aumentar os lucros depende de um pouco de controle de boatos, de manter o ambiente deles mais habitável. Esses atores querem encontrar um meio-termo, uma regulação que não afete o capital deles”, explica.
Apesar de muito se especular sobre o futuro, Ziller crê na necessidade de voltar o olhar para o passado “Há 10 anos, dizia-se que estaríamos em um ambiente no qual os óculos leriam o mundo para a gente, as TVs seriam em três dimensões, que andaríamos apenas em carros elétricos. Algumas das previsões ganharam, sim, força de alguma maneira, entretanto, grande parte não. É um campo de apostas frágeis”, comenta. As apostas mercadológicas no futuro das tecnologias, de acordo com a pesquisadora, são feitas “com base em um consumidor dócil”, mas Ziller se mostra otimista ao afirmar que não somos absolutamente dóceis como consumidores. “Ainda há espaço para a resistência.”
O postulado de Lessing sobre a codificação toma corpo quando um dos temas mais comentadas da tecnologia ganha cada vez maior relevância: o algoritmo. Definido por unanimidade como uma “progressão finita de regras”, que trabalham a fim de manter ou aperfeiçoar um certo sistema lógico, o algoritmo é o ator em maior destaque nas previsões apocalípticas em relação às redes sociais. Para Ziller, porém, estamos ainda em um momento em que esse “conjunto legislativo” das redes está em desenvolvimento e há a possibilidade de se moldar uma convivência saudável. “Engraçado que, quando falamos de algoritmo, nenhum dos lados está satisfeito. A extrema-direita acusa o Google e o Facebook de serem de esquerda; a esquerda aponta o excesso de controle. As empresas sempre se dizem neutras. É uma situação curiosa. Precisamos, sim, ter consciência da força dos algoritmos e do papel que eles representam na vida contemporânea. Mas, é preciso lembrar que esses sistemas não funcionam centralizados, cada empresa, cada plataforma tem o seu”, explica. Para ela, os algoritmos são diferentes e conversam pouco entre si. “São, para a nossa sorte, ainda pouco desenvolvidos. É aquela coisa de quando você compra um tênis pela internet e uma peça publicitária do mesmo fica aparecendo para você durante meses. Estivesse o algoritmo no nível de inteligência que clamam, isso não ocorreria. Esse tipo de situação mostra que o nível de controle e vigilância nas redes, ainda que muito grande, é desigual e desarticulado. Não podemos pensar que está tudo perdido, que tudo está entregue”, ressalta.
O ponto mais sensível em torno dos algoritmos, porém, é quando, em vez de um direcionamento de mercado, eles começam a hierarquizar pensamentos e acontecimentos políticos. Publicações e sites que tendem a um certo progressismo – ou afloram um ativismo mais agressivo – são comumente colocados à margem das mídias sociais e dos buscadores. O jornalista britânico Jonathan Cook, que trabalhou com parte dos materiais disponibilizados por Julian Assange, do WikiLeaks, declarou em sua coluna no site Counterpunch que “está se tornando cada vez mais claro que o Facebook, como plataforma, está interferindo na disseminação de informação de ativistas mais progressistas. O Google mudou seus algoritmos a fim de que os resultados das pesquisas em seu sistema sempre coloquem abaixo portais de esquerda, escondendo-os de vista”. Por outro lado, empresas como o Twitter têm sido frequentemente acusadas de derrubar contas de ativistas à direita. A questão que paira, no fim, é a mesma que Lessing levantou 18 anos atrás: “Se o código é lei, então, a verdadeira questão que nós devemos encarar é: quem deveria controlar o código?”.
* Estagiário sob a supervisão do editor Pablo Pires Fernandes
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