“Por incontáveis anos as armas tinham vertido luto no chão de Moçambique. Estes textos me surgiram entre as margens da mágoa e da esperança”, escreve Mia Couto na apresentação de Estórias abensonhadas. Quando a coletânea de contos foi lançada, em 1994, o autor moçambicano celebrava o fato de seu país ter entrado em um período de paz depois de quase 30 anos de guerra. Por isso, não surpreende que, quando perguntado em Araxá sobre o que desejava para o próprio futuro literário, respondeu: “Paz. Que o meu país não passe novamente por um período de destruição. Isso é mais importante do que os meus próximos livros”. Homenageado na sexta edição do Festival Literário de Araxá (Fliaraxá), o vencedor do Prêmio Camões em 2013 mostrou-se paciente e gentil ao cumprir sua agenda e atender o público. Na noite do último sábado, ao lado da atriz Bruna Lombardi, ele emocionou a lotada Sala Minas Gerais do Tauá Grande Hotel ao falar sobre seu ofício e ao ler poemas de antologia lançada no Brasil pela Companhia das Letras no ano passado. Mia Couto deixou a impressão de que, se um dia o Nobel voltar a lembrar da língua portuguesa como fez ao premiar Saramago em 1998, ele será o agraciado. E, se isso não ocorrer, pior para o Nobel. A seguir, algumas das palavras encantadas de Mia, proferidas durante suas intervenções e em entrevistas na cidade mineira.
O amor e a literatura
“Não sei se a literatura tem um papel, uma missão. É a mesma coisa perguntar: qual é o papel do amor? Não tem; não é uma coisa funcional. Mas ele cumpre missões dependendo do momento, assim como a literatura.”
O escutador
“A literatura pode criar uma familiaridade com o outro, sobretudo, em períodos de disputas acirradas como o que o Brasil está atravessando, quando o outro passa rapidamente a ser um inimigo; se ele não tem a mesma visão de mundo, a mesma opinião, ele se torna alguém que você não escuta. E eu acredito que a literatura pode trazer essa vontade de escutar o outro. No fundo, a literatura nasce dessa escuta. Eu escrevo porque escuto. Sou um escutador, antes de tudo.”
Reencontros e descobertas
“Foi através de professores e professoras que eu descobri que o livro não é exatamente um objeto. O que está no livro não são palavras, não é literatura, são pessoas. E essas pessoas nos fazem reencontrar nos próprios, fazem descobrir nós mesmos e ter esse desejo de sair de nós para fazer uma viagem para o outro. E isso é fundamental, não como uma coisa literária, mas para ser feliz.”
Ponte
“O escritor não faz livro, faz uma ponte com os outros. E faz o que faz porque não sabe: minha ignorância é minha maior competência.”
Mineiridade
“Certa vez me falaram que seu eu fosse brasileiro, certamente seria mineiro. E eu questionei o motivo. Aí me responderam: ‘Porque você nunca responde o que te perguntam’.”
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“Meu pai nunca me disse ou a algum filho para ler um livro, mas a forma como ele nos ensinava sobre a vida era só poesia. Ele vivia poeticamente.”
Difícil descrição
“Tenho dificuldade de trabalhar a escrita de forma diferente, só como funcional, como mera descrição.”
Humildade
“Só sou escritor por que escuto os outros, o que inevitavelmente me força a ser mais humilde.”
Biólogo
“Não sou só escritor. Sou biólogo, também sou uma pessoa séria.”
Evolução?
“Uma vez alguém disse e eu concordei: ‘O mundo está a melhorar. Mas a melhorar muito mal’.”
Caymmi
“A primeira vez que tive contato com o Brasil foi através de uma canção de Dorival Caymmi. Aquela língua me pareceu, ao mesmo tempo, tão familiar e tão estranha.”
Guimarães e João Cabral
“Guimarães Rosa e tantos outros escritores brasileiros fizeram parte da minha formação. João Cabral de Melo Neto foi meu grande mestre, me ensinou a trabalhar o peso da palavra. Devo muito a este país.”
O que importa
“As coisas mais importantes do mundo são as que a gente reencanta.”
O que somos
“Somos feitos por histórias.”
Colaborou Ana Clara Brant
Mudança de idade
Para explicar
os excessos do meu irmão
a minha mãe dizia:
está na mudança de idade.
Na altura,
eu não tinha idade nenhuma
e o tempo era todo meu.
Despontavam borbulhas
no rosto do meu irmão,
eu morria de inveja
enquanto me perguntava:
em que idade a idade muda?
Que vida,
escondida de mim, vivia ele?
Em que adiantada estação
o tempo lhe vinha comer à mão?
Na espera de recompensa,
eu à lua pedia uma outra idade.
Respondiam-me batuques
mas vinham de longe,
de onde não chega o luar.
Antes de dormirmos
a mãe vinha esticar os lençóis
que era um modo
de beijar o nosso sono.
Meu anjo, não durmas triste, pedia.
E eu não sabia
se era comigo que ela falava.
A tristeza, dizia,
é uma doença envergonhada.
Não aprendas a gostar dessa doença.
As suas palavras
soavam mais longe
que os tambores noturnos.
O que invejas, falava a mãe, não é a idade.
É a vida
para além do sonho.
Idades mudaram-me
calaram-se tambores,
na lua se anichou a materna voz.
E eu já nada reclamo.
Agora sei:
apenas o amor nos rouba do tempo.
E ainda hoje
estico os lençóis
antes de adormecer.