À frente da porta principal, em posição de destaque na sala, canecas de chope. O pai as guardava como troféus. Provinham dos festivais do Rotary, do Lions, do Madureira Esporte Clube. Uma tradição suburbana, como o piso de caco ou a cadeira trançada.
Essas imagens permaneciam submersas, porém. No fundo do oceano que, dentro da gente, só cessa de produzir água na efeméride da morte, recobrindo tudo.
Ressurgem na foto de Lia. Ela segura minha mão enquanto caminha, no vigor hesitante dos dois anos de idade. A cabeça está levemente virada para o alto e os olhos, expressivos, miram meu rosto.
“Vamos pra casa da Lia, papai? Tô cansada”, ela pediria, minutos após aquele instantâneo em Copacabana. A frase que o tempo moerá, até não sobrar letra alguma.
“Vamos, sim”.
Ao entrar em casa, sozinho, penso nas coleções que fiz quando menino. Selos, adesivos. Na escuridão dos oceanos em suas regiões menos perscrutáveis. Onde Lia um dia também mergulhará, à procura dos cacos de um espelho. Sempre fugidios.
Quem sabe o que se assentará sobre os chaveiros e as canecas, irremediavelmente cobertos? Uma gravura do signo de Câncer? Uma prosaica bandeira, de mesa, do Império Serrano? Os óculos de armação preta?
Cogito o futuro e “a pequena área da vida me aperta contra o seu vulto”, como ocorreu a Drummond em visita à Itabira natal. Então a foto de Lia, novamente. A atenção detida nos movimentos do pai, que a conduz nos dedos entrelaçados em meio à multidão da Avenida Atlântica.
Na lentidão da rotina, a ampulheta corre, firma o lastro subterrâneo. E, em silêncio, Lia me transforma em memória.
*Marcelo Moutinho é autor dos livros Ferrugem (Record, 2017), Na dobra do dia (Rocco, 2015), A palavra ausente (Rocco, 2011), Somos todos iguais nesta noite (Rocco, 2006) e Memória dos barcos (7Letras, 2001), além do infantil A menina que perdeu as cores (Pallas, 2013)..