“Um filho da puta de quatro costados, mas o maior judeu desde Jesus Cristo.” Exageros à parte, a definição do chefe da missão da Cruz Vermelha norte-americana na Rússia para Leon Trótski (1879-1940) mostra a dualidade de admiração e desprezo que envolveu o líder russo, um dos intelectuais mais brilhantes e controvertidos do século 20, cuja trajetória mudou o curso da história.
Essa e muitas outras declarações polêmicas e passagens contundentes da vida épica do revolucionário estão na obra Trótski, uma biografia, do professor de história da Rússia na Universidade de Oxford (Inglaterra), Robert Service.
Com pesquisa de fontes em vários países, Service sustenta que seu livro é a primeira biografia completa de Trótski escrita fora da Rússia por um autor que não é trotskista. Segundo ele, o próprio Trótski escreveu “um vívido conjunto de memórias” e outros biógrafos deixaram de fazer muitas das perguntas incômodas e necessárias a respeito dele. “As ideias e a atividade dele merecem ser reexaminadas, pois são importantes para a nossa maneira de compreender os últimos 100 anos da história russa e mundial”, afirma o autor.
Este é exatamente o ponto forte da biografia de Service, que desnuda o mito, reconhece sua importância e genialidade, fundamentais para a vitória dos bolcheviques sobre a monarquia de Nicolau II e outros inimigos internos e externos em 1917, mas põe o dedo nas feridas, nos graves equívocos que o levaram ao exílio e à morte trágica ao subestimar Josef Stalin (1878-1953) e ao sacrifício do povo russo.
“Trotski teve uma vida extraordinária, deslocou-se como um luminoso cometa pelo céu da política”, reconhece Service.
Para analisar a trajetória de Trótski, lembra Service, é preciso sempre levar em conta sua época e seu meio. Ele nasceu numa geração conhecida pelo radicalismo revolucionário em meio a uma decadente monarquia czarista. O caminho da revolução era da violência, de execuções sumárias. Ele e seus camaradas bolcheviques agiram em circunstâncias de profunda perturbação em toda a sociedade. Ao lado dos mencheviques e outros revolucionários, derrubaram a monarquia e montaram um governo provisório, mas se desentenderam e abriram caminho para outra sangrenta guerra civil.
E por que a revolução na Rússia era mais difícil do que na Europa? Trótski tinha uma explicação: o povo russo não tinha recebido um legado cultural do Império Romano e do Renascimento.
O comportamento social independente, que tinha sido crucial para o desenvolvimento capitalista e a resiliência civil na Europa e na América incipiente, foi impedido de criar raízes na Rússia dos Romanov.
O HOMEM
Trótski desde cedo pareceu ser predestinado para uma vida heroica. Filho de um fazendeiro bem-sucedido do interior da Ucrânia (região então chamada de Nova Rússia), nasceu em 26 de outubro de 1879 como Leiba Bronstein (só adotou seu famoso pseudônimo aos 23 anos, que seria referência ao seu carcereiro na Rússia czarista). Trótski jamais escondeu sua descendência judaica, mas abominava costumes judeus. Rejeitado em casa, se tornou internacionalista, ateu e socialista.
Como adepto do ideário de Karl Marx (1818-1883), ficava constrangido com a riqueza de seus pais e se dedicou a uma educação sólida entre sete irmãos.
Era um menino bonito e robusto, com olhos penetrantes de um azul vívido. Entre idas e vindas da pós-vida estudantil foi conhecer, em Londres, Vladimir Ilyich Ulyanov, que se tornou Lênin (1870-1924) e desde então se tornaram “gêmeos siameses” da política russa, com medidas implacáveis contra inimigos, inclusive apelando ao terrorismo de Estado. Sem os dois não haveria revolução.
Lênin em Moscou e Trótski comandando os combates do Exército Vermelho pelo interior da Rússia derrubaram os Romanov. Em seguida, derrubaram o governo provisório instalado em maio de 1917, criaram o Partido Operário Social-Democrata Russo (POSDR) e derrotaram os mencheviques e socialistas revolucionários.
OS ERROS
Em um país destruído pela guerra e com muita hostilidade ao comunismo, devido à pobreza e à fome de camponeses e à ameaça de invasão de potências estrangeiras pós-monarquia, Lênin e Trótski resistiram bravamente, mas acabaram alimentando um inimigo maior: o camarada Stalin.
Depois da morte de Lênin, em 1924, Trótski e Stalin se enfrentaram. Desde o princípio, Trótski errou ao menosprezar Stalin, que era, em sua definição, “um pigmeu intelectual” que não sabia debater e jogava sujo, vivia de fraudes. Mas o maior embate entre eles era de fácil compreensão. Trótski era internacionalista, queria a revolução permanente e em todo país onde fosse possível. Enquanto viajava pregando a revolução, Stalin assumiu o controle da máquina burocrática do POSDR.
Stalin se aproveitou do medo que os russos, inclusive os próprios bolcheviques, tinham de Trótski se tornar sucessor de Lênin para condená-lo e expulsá-lo para um exílio definitivo.
Foram mais de 15 anos de exílio desde a Sibéria até o México, onde depois de muitas intrigas, ataques e contra-ataques a Stalin e um caso rumoroso com a pintora Frida Kahlo, Trótski foi finalmente traído e assassinado com um golpe de picareta no crânio pelo falso admirador Ramon Mercader, um obscuro agente enviado por Stalin em 1940.
PIOR INIMIGO
Assim Service conclui sua biografia: o homem que tinha uma rígida postura pessoal, que incluía um irreparável vestuário, com o inseparável pincenê, sem o qual se dizia desarmado, detestava palavrões e abominava o alcoolismo dos camaradas e queria um mundo mais igual. “Mas, em nome da revolução, sem qualquer sentimentalismo, negligenciou sua família, abandonou sua primeira mulher no exílio na Sibéria com duas filhas”. A segunda foi Natália Sedova, que o acompanhou na luta política e com quem teve dois filhos.
“Trótski foi um ser humano excepcional e completo. Quanto ao seu brilhantismo literário e analítico, nunca houve qualquer dúvida. Depois de ser expulso da URSS, foi tão somente graças aos seus escritos prolíficos que ele pôde sustentar a si mesmo e à sua família com razoável conforto.
A explicação de Trótski sobre o que havia acontecido desde a queda da monarquia dos Romanov criou raízes nos trabalhos históricos do Ocidente.” Para Service, “mais do que qualquer bolchevique eminente, Trotski manteve a visão de um mundo futuro em que cada homem e cada mulher teriam a oportunidade de autorrealização a serviço do bem coletivo e a proclamou de forma apaixonada até seu último dia de vida”. Mas era arrogante, autoritário, perdia-se em diatribes, não sabia ouvir, ignorou todos os sinais da sua derrocada. Na verdade, “foi o pior inimigo de si mesmo”.
TRÓTSKI, UMA BIOGRAFIA
. Record
. De Robert Service
. 770 páginas
. R$ 94,90