Professor da UFMG cria modelos que regeram as maneiras de refletir no país

Em Filosofia no Brasil: legados e perspectivas, Ivan Domingues faz uma extensa pesquisa sobre a intelectualidade

por Pablo Pires Fernandes 27/10/2017 11:25


“O Brasil nunca criou uma filosofia própria”, argumenta Ivan Domingues, autor de Filosofia no Brasil: legados e perspectivas – Ensaios metafilosóficos, que será lançado hoje, às 14h, com debate na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Para o professor da UFMG,  o país sempre teve e aplicou “filosofias transplantadas”, seguindo correntes, escolas e se afiliando a modelos externos. “Hoje fazemos filosofia globalizada, mas isso é o mundo de hoje. Agora, filosofia própria? Ainda não”, diz, ressaltando acreditar na possibilidade da autonomia de um pensamento brasileiro.

Domingues, que teve formação em Paris e Oxford, cita a grandeza de autores da literatura – Machado de Assis e Guimarães Rosa –, que alcançaram a dita universalidade e o ajudaram a pensar a filosofia no país. “A pergunta é se teríamos na filosofia o nosso Machado, o nosso Guimarães, o nosso Kant. O país é uma potência, tem na música, na cultura e na sociologia, e por que não na filosofia? Então, claro que é possível.” Ele sustenta em certa universalidade do pensamento, sem perder traços culturais específicos. “O universal inclui o local, o particular. Não está falando em pensamento único, igual”, explica. “É desse tensionamento que nasce a filosofia, entre o local e o universal.”

Com a intenção de colaborar para a reflexão e estabelecer percursos da filosofia praticada no Brasil, Domingues investiga o passado e cria modelos para caracterizar as linhas de pensamento em nossa história. “O livro tem essa proposta em que eu cruzo a história intelectual e a metafilosofia”, define. Ele conta que o gênero metafilosofia não é muito comum, mas defende a importância de fazer uma reflexão filosófica sobre a própria filosofia, as práticas e as experiências existentes


Ele conta que seu interesse pelo tema é bastante antigo, mas que, por questões inerentes à carreira de estudioso e professor, sempre adiou a proposta. “Sempre estive às voltas com as questões do país, as iniquidades do Brasil, a questão da distribuição de renda, as desigualdades. Eu fazia filosofia, mas tinha uma sensibilidade apurada para pensar a questão social, a economia, a política e também a sociedade. Isso veio me acompanhando ao longo do tempo.”

A origem do novo livro remonta a outra pesquisa, que resultou no livro O continente e a ilha – Duas vias da filosofia contemporânea (Loyola, 2009), esgotado e que receberá nova edição revisada em breve. O professor explica que faz a comparação entre duas maneiras e tradições de se fazer filosofia. A primeira é a europeia, sobretudo as escolas alemãs e francesas, que seguem “na extensão da história da filosofia, apoiada na tradição, as escolas de pensamento, nas correntes, com sentido de história e de cultura, muito atenta à tradição, inclusive a tradição deles próprios”. A segunda é a tradição anglo-americana, produzida na Inglaterra e nos Estados Unidos, que confere menor importância à história e à tendência de “fazer filosofia na extensão da lógica”. “São análise de argumentos, que se tornam jogos lógicos, cheios de postulações, em que se verifica se o argumento se sustenta à análise”, diz, referindo-se ao empirismo inglês e ao pragmatismo norte-americano.

Depois da publicação, foi questionado sobre a filosofia no Brasil, à qual dedicava um pequeno espaço no livro. “Fiquei com isso na cabeça, pensar o Brasil e ver como o país entra nessa discussão. Comecei a me ocupar mais do Brasil e abrir minha agenda, mas logo eu vi que não poderia fazer a mesma coisa, tinha que fazer bem diferente.”

Para tal, voltou a empregar a metafilosofia, que propõe “uma reflexão filosófica sobre a natureza da filosofia e a experiência do filosofar”, cruzando-a com a história intelectual, que faz parte da história da cultura. “Não quis ficar preso à história das ideias, queria pensar a filosofia a partir da experiência intelectual brasileira, aqui nos confins do mundo, periférico, observar a filosofia importada, as influências – francesa, alemã, inglesa e, depois, americana, que é muito grande hoje. Então, peguei a história intelectual como parte da história da cultura, mas para pensar a intelectualidade filosófica como grupo, corporação.”

Diante da empreitada, Domingues conta que foi necessário ampliar contexto e empregar pensadores de várias áreas. Ele mesmo pergunta: “Mas, você teve ajuda?”, para responder: “Claro, não está em jogo inventar a roda. O que eu fiz foi trazer isso para a filosofia”.

HISTORIADORES Segundo ele, foi determinante o fato de ter lido muito sobre o Brasil e conhecer a obra dos chamados pensadores nacionais – Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freyre, Caio Prado Jr., Celso Furtado e Raimundo Faoro –, mas também recorrendo a escritores e nomes das mais diversas áeras, destacando o “auxílio” prestado pelo crítico Antonio Candido. No entanto, são dois historiadores franceses que lhe serviram de base para a estrutura de Filosofia no Brasil – Jean-François Sirinelli, que escreveu sobre o surgimento do intelectual republicano na França; e Jacques Le Goff, que mostra o surgimento dos intelectuais enquanto corporação na Idade Média.

A obra contextualiza historicamente a intelectualidade brasileira, mas sempre em busca da matriz filosófica. “Mesmo na análise econômica ou sociológica, era o crivo da filosofia que estava comandando tudo, fiz um tour de force para encaixar a filosofia nesse contexto, ajustar o modelo às necessidades da filosofia.” Transpondo as referências francesas para a realidade do país, Domingues criou modelos, sempre tendo em mente a especificidade da nossa história. “Apliquei a metodologia dos tipos ideais do Max Weber, que tem uma vantagem que não são modelos matemáticos, são histórico-culturais. A lógica presta alguma ajuda, mas você não resolve a coisa só com a lógica. Tem uma lógica modal, que ajuda um pouco nesses modelos, mas, basicamente, você está lançando mão de técnicas de reconstrução, modelagem. Prestei homenagem ao Weber. Aí construí os tipos, é uma construção lógica a partir da matéria histórica”, detalha.

A partir desses modelos, Domingues investigou a história do país e chegou a cinco tipos que ilustram períodos distintos. O primeiro é o intelectual da colônia, basicamente representado pelo jesuíta. “Foi o jesuíta quem comandou a vida intelectual e educou a colônia, o pouco de filosofia que existia vinha dos jesuítas. Tinha carmelita, tinha franciscano, mas nunca com a potência, a proporção e a escala dos jesuítas.”

O professor explica que foi essa corporação da Igreja a responsável pela criação de colégios e seminários ao longo da costa brasileira – o de Minas, em Mariana, foi o último a ser fundado. Ao longo de mais de 200 anos, a prática filosófica estava praticamente restrita a esse grupo, com um pensamento único, segundo Domingues descreve no livro, definindo o tipo ideal como “o intelectual orgânico da igreja”. “Esse intelectual exercia a atividade do ensino como apostolado intelectual, eles eram sacerdotes, estavam em missão de catequese, mas a filosofia deles era importada, era ibérica. Veio da Espanha e de Portugal, é a Segunda Escolástica, que é uma escolástica requentada.”

Padre Vieira Neste caso, a figura mais emblemática é padre Antônio Vieira, “um gigante”, nas palavras do professor. “Prestei uma grande homenagem ao Vieira, recuperei um debate que ele teve em Roma, para onde foi fugindo da Inquisição. É uma figura emblemática”, garante. “Mas Vieira não é filósofo e eu precisava achar um filósofo”, conta Domingues sobre o processo de pesquisa. Ele explica que, após a expulsão dos jesuítas do país, em 1759, por ordem do Marquês de Pombal, quase todos os documentos foram queimados e são raros os registros. “Mas sobrou, por sorte, um exemplar de uma tese de doutorado defendida no Colégio da Companhia de Jesus do Rio de Janeiro.” A partir desse documento, Domingues definiu o exemplo filosófico: o padre Francisco de Faria.

No livro, o autor estende o período do Império até o fim da República Velha, em 1930. A estrutura rural, com monopólio agroexportador e o latifúndio, continuou. A escravidão terminou na lei, mas manteve a estrutura – até hoje, inclusive”, justifica. Para representar o tipo ideal de intelectual, Domingues formulou a figura do “diletante estrangeirado egresso do direito”, que teria como modelo Joaquim Nabuco. “A nossa intelectualidade veio basicamente do direito e, já que não tinha faculdade de filosofia, isso trouxe um traço diletante e marcado pelo direito”, explica, lembrando que a elite brasileira estudava em Coimbra.

Em busca do correspondente filosófico da época, o professor escolheu o sergipano Tobias Barreto, pertencente à Escola de Direito de Recife. “Ele era um tremendo estrangeirado, ligado ao pensamento alemão, ao direito, teve influência de Hegel, mas sobretudo Kant e Schopenhauer. É surpreendente, um caso extraordinário. Ele era mulato, venceu o preconceito do tempo, casou-se com a filha de um coronel, aboliu a escravatura da fazenda do sogro, o que causou indisposição com muita gente”, narra Domingues. Segundo menciona no livro, o enterro de Tobias Barreto foi apoteótico, com bandas de música e muita gente.

A mudança e a profissionalização são ressaltadas no modelo seguinte, surgido a partir da Missão Francesa no Brasil, que fundou o Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP), quando o país já apresentava estrutura urbana e industrial. “Na experiência intelectual, perde a vez o diletante e começa a surgir os primeiros profissionais de história, sociologia, psicologia e também filosofia, que era meio minguada, mas tinha.”

Nesse ponto, Domingues toma dois intelectuais para explicitar dois caminhos que se evidenciariam a partir dos anos 1970. De um lado colocou Jean Maugüé, que chefiou o Departamento de Psicologia da USP e viveu oito anos no país. O autor descreve Maugüé como “um intelectual de horizontes largos, culto, erudito, humanista”. Em oposição, escolheu Martial Gueroult, que representa perspectiva mais tecnicista. “O que veio depois, na linha da filosofia técnica, é o especialista, que abre o caminho que vai levar ao expert das ciências duras. E nos anos 1970, com a Capes e o CNPq, o Brasil passa a fabricar em massa esse intelectual especialista mecanizado.”

O quarto modelo apresentado pelo pesquisador é o do intelectual público, que alia atividades políticas à prática da filosofia. Ele cita Marilena Chaui e José Arthur Gianotti como exemplos, mas optou por prestar homenagem ao mineiro Padre Vaz (Henrique Cláudio de Lima Vaz), que desempenhou papel fundamental na criação da Juventude Universitária Cristã (JUC) e da Ação Popular (AP), grupos da esquerda cristã que atuaram contra a ditadura militar nas décadas de 1960 e 1970. “Mostrei essa face pública do Vaz. Depois ele foi condenado ao silêncio obsequioso, veio parar aqui em Belo Horizonte e se mudou, se afastou, mas continuou atuante, as pessoas vinham atrás dele. Recuperei essa história.”

Por fim, o último modelo criado por Domingues é “o filósofo cosmopolita globalizado”. “É o ápice, o modelo, o sonho de consumo de todo mundo”, afirma. Ele o descreve como um intelectual de “horizontes largos, próximo do sábio antigo, não exatamente fundado sobre uma história real desenvolvida ou passada em nossos meios”. O professor afirma que esse tipo, no entanto, não se cumpriu no Brasil, daí a ausência de nomes. E faz uma crítica ao modelo vigente, que tem a figura do scholar como padrão predominante de tradição norte-americana. “É o especialista, que faz filosofia profissional, técnica, que vai se limitando, gosta de escrever mais artigos e menos livros”, aponta. Para ele, a ascensão do scholar “significa a derrota do pensamento criativo, significa a vitória do pensamento técnico”.

FIGURAS MODELARES

>> Francisco Faria

Há poucas informações sobre Faria. Sabe-se, ao certo, que ele foi o orientador de uma das poucas teses defendidas no Brasil colonial. Tal tese fora intitulada de Conclusões de metafísica sobre o ente real, defendida em 1747 no seminário dos jesuítas do Rio de Janeiro, de autoria de um certo João Francisco Fraga. O cartaz da defesa dessa tese pode ser visto na biblioteca da Faculdade Jesuíta de Belo Horizonte. Franciso Faria foi professor no seminário jesuíta durante anos, tendo também sido eleito presidente da Academia dos Seletos, em 1752. Após a expulsão dos jesuítas da colônia, retornou a Portugal, onde teria falecido em 1769.

>> Tobias Barreto
Tobias Barreto foi um filósofo, poeta e jurista brasileiro do século 19. Nasceu em 7 de junho de 1839, na cidade sergipana de Vila de Campos do Rio Real – que atualmente leva o nome do filósofo – tendo falecido em 27 de junho de 1889, em Recife. Inicialmente influenciado pelo espiritualismo francês, rompe com este e passa a defender o naturalismo alemão. Buscando combater a influência francesa no Brasil, funda, na cidade pernambucana de Escada, um periódico inteiramente escrito em alemão, o Deutscher Kämpfer, o qual existiu por 10 anos. Foi o patrono da cadeira 38 da Academia Brasileira de Letras.

>> Martial Gueroult
Importante historiador francês da filosofia, Gueroult nasceu em 1891, tendo falecido em 1976. Formou-se na prestigiosa École Normale Supérieure. Na década de 1930, fez parte da famosa Missão Francesa, que foi incumbida de estabelecer as bases acadêmicas da recém-fundada Universidade de São Paulo (USP), ao lado de nomes como Lévi-Strauss, Monbeig e Braudel. Após sua passagem pela USP, lutou na Segunda Guerra Mundial. Após o fim da guerra, foi professor no Collège de France, substituindo Étienne Gilson, outro importante historiador francês da filosofia. Gueroult foi responsável por uma renovação na interpretação de Descartes.

>> Jean Maugüé
Outro importante membro da Missão Francesa, Maugüé nasceu em 1905 e morreu em 1990. Formou-se pela École Normale Supérieure, foi diplomata, além de acadêmico. Pouco reconhecido na França, e mesmo no Brasil, teve importância fundamental na constituição do método brasileiro de estudar filosofia, tendo sido classificado por Antônio Cândido, que fora seu aluno, como “um grande mestre”. A principal atuação de Maugüé era a psicologia, mas também atuava na filosofia e na crítica de arte.



>> FILOSOFIA NO BRASIL: LEGADOS E PERSPECTIVAS - ENSAIOS METAFILOSÓFICOS
>> De Ivan Domingues
>>  Editora Unesp
>> 561 páginas
>> R$ 89