O dinamismo que caracteriza a sociedade urbana, especialmente a ocidental, acaba por nos obrigar, na tarefa reflexiva, a uma busca permanente de modos mais eficazes de exploração da relação entre produção de literatura, de um bem simbólico específico, e produção do social, da vida em comum. O modo como se percebia essa relação em fins do século 20 já não é eficaz, ou totalmente eficaz, nesta segunda década do século 21.
Certamente, o modo como essa relação é percebida agora, como tendemos a percebê-la, não será considerado eficaz, ou totalmente eficaz, por aqueles que porventura se interessarem por esse tipo de problema nas próximas décadas. À medida que a sociedade muda, a produção letrada em geral, de que a literatura artística é um resultado específico, também muda, de tal forma que toda literatura corresponde ''naturalmente'' a um tipo de sociedade. Mas essa correspondência não é linear, passível de ser compreendida a partir de um esquema simplista, submarxista, de causa-efeito, assim: a literatura é um reflexo da sociedade. Claro que não.
No Brasil, como se sabe, estudos do recém-falecido Antonio Candido, reunidos em Literatura e sociedade (1962), superaram toda uma tradição crítica hegemônica de meados do século 19 até as primeiras quatro décadas do século 20, segundo a qual a literatura era reflexo da sociedade. Mas esses estudos, é preciso lembrar, foram elaborados num momento – o início da segunda metade do século 20 – em que a sociedade, mesmo imersa em mudanças, ainda não tinha na própria mudança constante, no fluxo, a sua própria razão de ser, como vemos hoje, situação para a qual a internet, as ''redes sociais'', colabora decisivamente.
Todavia, dizer, em face da produção literária do século 21, que a correspondência entre literatura e sociedade não é linear, como se costuma dizer, é pouco. É, sobretudo, provocar uma pergunta básica: como é, então, essa correspondência.
Trata-se, do meu ponto de vista, de uma correspondência de caráter visivelmente circular, em que literatura e sociedade se complementam de modo confuso, difuso. Assim, torna-se difícil, quase impossível, a distinção radical de fronteiras, dizer o que é apenas literatura, invenção discursiva, e o que é apenas sociedade, convenção discursiva, nos textos de criação literária.
Realmente, não há como negar que a literatura, assim como outras formas massivas de expressão artística – música popular, cinema, artes plásticas, telenovelas –, é sociedade num tempo em que a sociedade, como postulado por Michel Foucault na L’ordre du discours (A ordem do discurso), é uma realidade discursiva. As formas que se definem aprioristicamente a partir do desejo de interação, que é o caso da literatura, não constituem ações comunicativas opostas, como assinala Habermas, mas sim complementares, à sociedade do discurso.
A sociedade, por sua vez, é abertamente literatura hoje, no sentido de uma representação assumida, de uma realidade construída a partir de um princípio ''mimético'', a partir de dados verossímeis, não verdadeiros. Assim, a vivência da literatura que se produz neste século não se diferencia da vivência da sociedade, a literatura não é um outro mundo diverso do mundo cotidiano, um mundo outro para o qual podemos mudar, um outro lugar, um porto seguro a esperar os desesperados.
Ao nos envolvermos com um romance, um poema ou um conto escritos por autores em plena atividade hoje, não mais nos apartamos da sociedade, não mais nos tornamos associais, de acordo com aquela premissa de Ray Bradbury explorada por François Truffaut em Farenheit 451. Pelo contrário, a experiência de leitura literária hoje nos torna ainda mais sociais, mais implicados na realidade oficial, mais disciplinados, por conseguinte.
Poderíamos resolver a questão, claro, dizendo que estamos, sobretudo na literatura brasileira, sob a égide de um surto realista, com autores como Luiz Ruffato, Ferrez, Paulo Lins, Marcelo Mirisola, Patrícia Melo, Marçal Aquino, Ana Paula Maia e tantos outros, outras, outrxs, que parecem ter como modelo, sobretudo, a prosa de Rubem Fonseca e o cinema de Quentin Tarantino. Mas seria, na verdade, simplificar a questão, recorrendo, inclusive, apenas à prosa romanesca, quando até a poesia e os roteiros televisivos e cinematográficos, para não dizer as biografias, exploram as mazelas sociais. Dizer que se trata apenas de um regresso ao realismo é desconsiderar que os realistas do século 19, os primeiros sociólogos, lidavam objetivamente com a realidade, preservando, para tanto, um distanciamento ''científico'' entre sujeito e objeto.
O que se passa na produção literária neste século de um modo geral não é um caso de estilo, de fundação estilística, de invenção de um novo modo de fazer literatura, mas uma grande simbiose entre produção literária e produção social, donde resulta uma inquietante cartografia estético-literária da vida urbana, uma inteligibilidade tensa do mundo presente. Em função dessa simbiose, a literatura hoje se nos apresenta como um todo indistinto, no qual se inscreve uma espécie de nova especificidade da literatura: a literatura como produção do espaço social, que constitui, fundamentalmente, uma ação urbanística, uma intervenção pragmática no ordenamento urbano.
Num movimento oposto àquele da tradição esteticista, estruturada, como demonstrou Pierre Bourdieu, num princípio de razão pura, a literatura ''agoral'', que se produz no século 21 – penso em três africanos: J. M. Coetzee, Pepetela e Mia Couto, viventes de solos dilacerados –, revela-se estruturada num princípio de razão prática, segundo o qual a literatura é também resultado de relações materiais.
Orientar-se pela ''razão prática'' e não pela ''razão pura'', recordando Immanuel Kant, não significa, na literatura e em outras expressões artísticas, reproduzir o que está estabelecido como senso comum na sociedade. Significa enfrentar o que se apresenta nesse espaço onde se configura o senso comum, acessá-lo, em primeiro lugar, para tensionar, de dentro, suas verdades pétreas, digamos, resultantes de preconceitos, inclusive em relação à literatura e às artes em geral. Por exemplo, o preconceito, estabelecido no espaço social dominado pelo senso comum burguês, segundo o qual a literatura e as artes servem apenas para enfeitar as sociedades. Como todo preconceito, trata-se de um valor moral, de ordem prática, que os indivíduos conservam no seu dia a dia, que só pode ser destruído nos limites da ''razão prática'', a partir da fricção do mundo visível, do mundo materialmente compartilhado.
Ao operar uma ''razão prática'', ao se valer dos dados lançados no mundo comum, um Mia Couto cartografa um outro mundo no seu Jesusalém, publicado no Brasil pela Companhia das Letras com o título pobre de Antes de nascer o mundo, logrando configurar uma metáfora precisa da produção de literatura como produção do espaço social. Evidente que essa operação se dá com o estímulo da própria tradição literária, evidente que a invenção de outros mundos é uma das características da literatura – especialmente da ficção científica, dos realismos ''fantástico'' e ''maravilhoso'' –, mas, na narrativa de Mia Couto, esse é apenas um estratagema literário. O que está em questão é o espaço social moçambicano devastado pela guerra, o mal-estar coletivo nesse espaço, um sujeito traumatizado nesse espaço e o seu desejo de cartografar um outro espaço, de reinventar o mundo à sua maneira, com novos nomes, novos sentidos. O tensionamento que ali se encontra não seria possível apenas nos limites da ''razão pura'', sem recorrência à história real, experienciada.
Mia Couto, como se sabe, tem preconizado uma literatura capaz de promover um ''reencantamento'' do mundo, o que parece desautorizar o uso que aqui estou fazendo do seu Jesusalém. Ocorre que o ''encantamento'' – o mágico, o maravilhoso – é parte constituinte do mundo prático autêntico, digamos, das pessoas comuns, o mundo destruído pelo Esclarecimento em nome de uma vida social mais produtiva, em nome do progresso, como Theodor Adorno e Max Horkheimer tanto afirmaram em ritmo de denúncia na sua Dialética do esclarecimento.
O ''reencantamento'', na obra de Mia Couto, tal qual na do brasileiro Vicente Cecim, o singular criador de Viagem a Andara: o livro invisível, é um modo de superação da realidade comum, do ordenamento comum do real em favor de outro ordenamento mais real ainda, forjado a partir de desordenações, em que o mundo se apresenta em sua integralidade, misto de sonhos e pesadelos, paisagens paradisíacas e infernais – o mundo mesmo como produção literária.
O autor é pós-doutor em teoria literária pela Unicamp, doutor em literatura brasileira pela USP, professor no programa de mestrado em Estudos Literários da Unimontes e autor, entre outros, do ensaio A aurora das dobras.