Gênero e sexualidade são temas que estão na moda. Estão presentes nos debates da novela exibida no horário nobre, nas páginas dos principais jornais, não tem mais como escapar. Essa visibilidade recente assume várias formas e sentidos, muitos debates são qualificados e auxiliam a desconstruir os padrões que produzem as desigualdades existentes em nossa sociedade. Mas nem sempre é assim, por todo o país fervilham movimentações para amordaçar profissionais da educação. Sob a figura da criança em perigo, pais enviam cartas agressivas a colégios demandando que professores não ensinem sobre gênero e sexualidade nas escolas. É mais uma rodada de pânico moral, que de tempos em tempos retorna utilizando as mesmas figuras da criança em perigo e da sexualidade ameaçadora. É nesse caldo efervescente de debate na academia, na mídia e até em nossos parlamentos que a Editora Autêntica cria a coleção Argos, dedicada à publicação de livros sobre estudos de gênero e teoria queer e que inicia com três títulos: Argonautas, de Maggie Nelson, Foucault e a teoria queer, de Tamsin Spargo, e Flor de açafrão: takes, cuts, close-ups, de nossa Guacira Lopes Louro.
Queer é simultaneamente um insulto, um grito de guerra, um elo de solidariedade, um campo de estudo e um ethos. É uma palavra inglesa de difícil tradução, que pode ser traduzida como estranho ou anormal,.
Estranhando o queer, estranhando Foucault
O segundo ensaio de Spargo contribui para pensarmos sobre a vida das pessoas que ousam conjugar uma vida religiosa com experiências dissidentes de gênero e sexualidade. A professora percebe que há uma permanência da influência da religiosidade em nossas sociedades, mesmo quando grande parte dos teóricos sociais do século 20 anunciaram o declínio da influência das metanarrativas e previram uma secularização que nunca ocorreu em nossas sociedades. A maioria dos acadêmicos não está lidando de forma adequada com essa influência da religiosidade no mundo e na vida das pessoas, mas acredita que é possível avançar nesse projeto unindo contribuições da teoria queer com algumas pitadas de correntes teológicas pós-seculares.
Já Richard Miskolci, professor de sociologia da Universidade Federal de São Carlos (Ufscar) e um dos precursores da teoria queer no Brasil, em sua contribuição faz um retorno ao livro de Foucault que mais marcou os estudos queer, o primeiro volume da História da sexualidade (HSI). Richard nos brinda com uma sucinta apresentação do contexto histórico, das lutas sociais e da produção acadêmica sobre sexualidade que circundava Foucault na época da escrita e publicação de HSI. Como grande conhecedor da produção acadêmica sobre sexualidade, Richard é capaz de comparar a obra foucaultiana a de seus contemporâneos, demonstrando o que diferencia HSI de outros trabalhos, o que explicaria parte da sua forte influência até os dias atuais, 40 anos após a publicação.
Estranhando o afeto, o parentesco e a maternidade
A impressão ruim não persistiu por muitas páginas. O texto se desenrola de uma forma muito livre e rápida. Maggie Nelson se recusa a estabelecer uma fronteira clara entre o texto literário, o relato autobiográfico e a teoria, de maneira a honrar a tradição já consolidada no feminismo por Audre Lorde, Gloria Anzaldúa e Paul Preciado, o último com o qual Nelson dialoga diretamente em algumas passagens.
Sem pretensões de criar uma suposta unidade no texto ou de anunciar uma grande teoria que revolucionará os estudos de gênero e queer – coisas que a própria autora explicitamente diz não desejar –, arrisco dizer que os temas do afeto e do cuidado costuram o livro, com o parentesco e a maternidade sendo o contexto no qual esses temas emergem. É um testemunho de sua vida em comum com seu parceiro, Harry Dodge, uma pessoa transmasculina que não se encaixa muito bem no binarismo que separa estritamente homem ou mulher, das transformações que passaram juntos: ele transicionando seu gênero com o uso da testosterona, ela com a tentativa de se engravidar de Iggy. Nelson vai narrando os seus dias, as mudanças em seu corpo e no de Harry e diversas situações cotidianas. À medida que alguns temas emergem, convoca para auxiliar na reflexão alguns textos acadêmicos de Foucault, Julia Kristeva, Winnicott, Judith Butler, Eve Sedgwick, Zizek e outras. A forma como se engaja com esses textos é bastante livre, o que não a impede de ir ao coração da argumentação filosófica e desenvolver fortes críticas.
É um livro versátil e que serve a distintos públicos, de quem busca um relato autobiográfico gostoso de se ler a quem busca uma reflexão acadêmica. A escrita de Nelson permite essas diferentes formas de engajamento facilmente.
Estranhando o destino e a agência
Flor de açafrão é uma coletânea de nove ensaios curtos sobre filmes e literatura, alguns já publicados anteriormente e outros que derivam de falas e palestras. Para quem está acostumado com a escrita de Guacira, os ensaios mantêm a leveza do seu estilo tradicional, mas pode se assustar com a pouca presença explícita de referenciais teóricos, como Judith Butler e Foucault, onipresentes nos outros textos da autora. Aqui, essas referências aparecem em pequenas pitadas para auxiliar o processo de tecer os fios deixados pelas obras analisadas. Os ensaios são independentes e não existe sequência de leitura obrigatória, liberando o leitor para construir sua trajetória a partir de seus próprios interesses.
A opção por avaliar produtos culturais não faz deste livro menos importante ou mero diletantismo. Mesmo obras ficcionais são produtos de nossa sociedade, carregam as marcas das relações de poder e das desigualdades que estruturam a nossa vida e, desta maneira, dizem algo sobre nós. Os fios que Guacira puxa para analisar são vários, as expressões da masculinidade nos filmes de caubói, a construção da feminilidade numa personagem travesti, as famílias com pais homossexuais e transexuais, entre outros. Todavia, acredito que o fio comum que atravessa a forma como a autora lê as distintas obras é uma preocupação com o destino e com a agência: estaríamos condenados a viver uma vida na qual não há escapatória além de realizar um destino imposto pela sociedade ou haveria possibilidades, mesmo que pequenas, de agência e fuga? Os ensaios são uma celebração, nada ingênua, das microrresistências, dos deslizes do esperado que ocorrem em um instante fugaz e que podem alterar uma vida, como “um fósforo queimando dentro de uma flor de açafrão”.
Assim como o livro de Maggie Nelson, Flor de açafrão é uma obra versátil que pode interessar a diversos públicos, dentro e fora da academia. A simplicidade da escrita de Guacira, conjugada com a complexidade dos debates realizados, pode servir até para desmistificar alguns mitos sobre os estudos de gênero e queer no Brasil. Não se trata de uma agenda de destruição da família, de conversão de pessoas em travestis ou homossexuais, como é propagado pelo espantalho criado pelos fundamentalistas sob o nome de “ideologia de gênero”. Trata-se muito antes de um debate fundamental sobre a ampliação de possibilidades de habitar esse mundo para criar algo menos violento; o que é denunciado são os fechamentos, os destinos únicos e imutáveis, esses realmente não interessam ao queer.
* Thiago Coacci é advogado, doutorando em ciências políticas pela UFMG e dedica seus estudos aos movimentos sociais, políticas públicas e direitos das pessoas LGBT.
ARGONAUTAS
De Maggie Nelson
Autêntica
160 páginas
R$ 44,90
FOUCAULT E
A TEORIA QUEER
De Tamsin Spargo
Autêntica
96 páginas
R$ 39,80
FLOR DE AÇAFRÃO:
TAKES, CUTS, CLOSE-UPS
De Guacira Lopes Louro
Autêntica
128 páginas
39,80