A exposição Queermuseum – Cartografia da diferença na arte brasileira, realizada durante curto período (final de agosto a início de setembro de 2017) no espaço cultural de uma agência do Banco Santander em Porto Alegre, causou uma forte reação negativa, capitaneada pelo Movimento Brasil Livre (MBL). As obras expostas abordavam a temática da diversidade sexual, usando representações menos e mais diretas de corpos nus, órgãos genitais, textos e palavras concernentes à homossexualidade, cenas de zoofilia etc. As queixas giravam ao redor de uma alegada necessidade de se defender a moral e os costumes de nossa tradição cristã, pois grande parte das cenas e imagens supostamente fazia apelo a uma licenciosidade sexual agressiva, aberrante, pervertida e incompatível com uma moralidade sexual dita sadia e normal.
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A heteronormatividade, ou seja, o discurso e os mecanismos de legitimação exclusiva da sexualidade como dividida entre homem e mulher, significa uma naturalização forçada do desejo e das práticas sexuais, pois deduz dos componentes fisiológicos e supostamente naturais a fundamentação de uma esfera do comportamento à qual se deveria conferir um direito cultural próprio. Na exata medida em que somos seres culturais, nos definimos pelo cultivo tanto de nossa individualidade como da complexa rede de relações com os outros indivíduos, processo que atravessa nuclearmente o que pensamos e dissemos para nós e para a sociedade, bem como dela ouvimos. Para nós, seres sociais e históricos, não basta “ser”, mas também dizer de si, pensar-se, fundamentar o próprio eu em um discurso embebido previamente na história coletiva e tendo a tarefa de fundar, a cada instante, nossa individualidade por meio de sucessivas simbolizações reflexivas.
Falar de si implica se situar entre uma história já construída e outra a se construir, e todas as imagens, discursos, teorias, opiniões, enfim, todo o aparato simbólico à nossa disposição exprime jogos de força e relações de poder, já que cada estratégia discursiva e imagética funciona como dispositivo de legitimação e/ou questionamento da realidade subsistente. A continuidade ou alteração das práticas hegemônicas depende diretamente da conquista de terreno nesse duelo entre as formas de evidenciação discursiva.
Se Freud estava certo ao dizer da sexualidade como mola propulsora do psiquismo a partir de seus estratos inconscientes mais profundos – dos quais adviria uma energia psíquica que leva não apenas às nossas realizações culturais elevadas, mas também a toda uma gama de sintomas neuróticos –, logo a continuidade da polarização entre homem e mulher, como princípio exclusivo para o entendimento que cada indivíduo faz de seus desejos, significa uma canalização repressiva e violenta da individualidade como tal. Ela constitui uma das inúmeras estratégias de interiorização dos princípios abstratos e gerais garantidores da unidade do corpo social, mas não apenas isso, pois está em jogo a manutenção íntima e interna do princípio geral de identidade como baseado na exclusão das diferenças, da estigmatização do divergente como patológico, doentio, aberrante.
Nesse verdadeiro campo de batalha na formação das identidades individuais e coletivas, as imagens artísticas são um veículo privilegiado para a explicitação de certas práticas, assim como para sua crítica reflexiva. Elas podem colocar toda a sua excelência e poder representacional a serviço de uma idealização sublime do amor heterossexual ou, no polo oposto, tomar a multiplicidade, a ambivalência e os conflitos sexuais como componentes de um discurso imagético, ele mesmo nutrido de tais características. Desde as vanguardas do final do século 19, a arte manifestou cada vez mais interesse por essa segunda vertente, renunciando a princípios figurativos e de unificação em prol de representações parciais, feias, cacofônicas, por vezes absurdas, com sentido incerto e fragmentário.
Não se trata de dizer que a arte moderna e contemporânea consistam em pura negatividade, transgressão e nonsense. O que está em jogo é a crítica de qualquer sentido preestabelecido, definindo nossa busca por ele como essencialmente inacabada e processual, como tarefa de colocação de nossas identidades em novas perspectivas. Em vez de legitimar esta ou aquela prática, o conjunto das obras artísticas quer colocar em xeque o princípio de legitimação como tal, não para anulá-lo, mas para fomentar o gosto da reflexão sobre todas as nossas tentativas de validar esta ou aquela identidade.
A arte moderna surgiu como movimento contestatório, como recusa de padrões figurativos e de unificação das obras. Tomados em seu conjunto, os movimentos artísticos do Cubismo, Surrealismo, Dadaísmo etc. estabeleceram não propriamente paradigmas específicos de como se deve fazer arte, mas sim princípios legitimadores da procura por novos campos, materiais, linguagens, sensibilidades. Ao introduzir um princípio de incerteza radical na prática artística, fazendo da ironia um motor de questionamento constante do que significa “arte”, mesmo que em um sentido bastante elementar, essa modernidade pôde facilmente ser assimilada sob o conceito de crise, como um beco sem saída, como um impasse constante.
Em certo sentido, o caráter crítico da arte moderna implica consciência progressiva de um duplo abandono da representação figurativa: nem o mundo serve de parâmetro para a construção das obras, nem estas se propõem mais como modelos positivos, específicos, determinados, para leitura do mundo. Esse complexo de coisas conduziu a arte a uma preocupação radicalmente centrada em sua lógica interna, em seus princípios formais, no diálogo crítico das obras entre si, na correlação entre os estilos individuais e coletivos, e em uma série de outros procedimentos experimentais facilmente legíveis sob a ótica de uma arte hermética, fechada em si mesma, dirigida a especialistas e, assim, incompreensível ao grande público.
Se no início do século 20 as vanguardas provocavam verdadeira indignação geral – como foi o caso das primeiras obras cubistas de Picasso –, ao longo do tempo este “choque do novo” tendeu a ser substituído pela simples incompreensão e descrédito como algo exótico, mas sem importância. É como se todo o empreendimento de busca por novas formas e linguagens desaguasse em um jogo autossatisfeito de imagens, sons, palavras e demais componentes estéticos, sem repercussão para além dos limites da própria obra.
Aquela ars sexualis, diferentemente, tomando o erótico como seu material e veículo de expressão – e respondendo à mesma exigência da prática artística contemporânea –, ressitua a arte no complexo da sensibilidade social, fundindo a demanda técnica de progresso formal a um conteúdo sócio-histórico embebido das motivações intrínsecas de todo o fazer artístico, a saber: produzir uma expressão densa, crítica e questionadora da subjetividade como tal, desde seus estratos individuais mais profundos até as redes de valores socialmente compartilhados.
*Professor de filosofia da UFMG e pesquisador do CNPq