Livros discutem os dilemas das esquerdas no Brasil

Cenário é sombrio para este campo ideológico, que está fora do poder após 13 anos e com seu principal líder, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva

Marcelo da Fonseca
Um espectro ronda as esquerdas no Brasil.
É o espectro da falta de rumo. A avaliação é unânime entre mais de 60 cientistas sociais, professores, filósofos e políticos ligados ao campo progressista que fizeram uma análise sobre o momento político vivido no país. O cenário é sombrio para este campo ideológico, que está fora do poder após 13 anos e com seu principal líder, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, condenado a nove anos de prisão, com risco de se tornar inelegível. 

Na quarta, a situação de Lula se agravou ainda mais com o depoimento do ex-ministro Antonio Palocci ao juiz Sérgio Moro, no qual incriminou o ex-presidente, ao declarar que ele  tinha um acordo para receber propina da Odebrecht na forma de imóveis (o apartamento do Guarujá e a sede do Instituto Lula) e dinheiro (o montante chegaria a R$ 300 milhões).  
Em julho, mês em que Moro condenou o ex-presidente petista por corrupção passiva e lavagem de dinheiro, foram publicados três livros que avaliam os anos em que Lula e Dilma comandaram a nação: Cinco mil dias: O Brasil nos tempos do lulismo, Caminhos da esquerda – Elementos para uma reconstrução e A crise das esquerdas. Todos eles buscam respostas para entender o motivo do declínio rápido de governos de esquerda ao redor do mundo, com foco principal no Brasil e no processo que levou ao fim dos governos petistas.

Em Cinco mil dias: Brasil nos tempos do lulismo, o leitor não deve se enganar pela capa do livro. A foto do ex-líder sindical carregado pela multidão, com uma mão para cima e outra segurando o microfone, em um de seus recentes discursos políticos, pode levar o leitor a pensar que se trata de uma obra elogiosa para o ex-presidente. Nada disso.
Publicadas pela Fundação Lauro Campos, do PSOL, as análises são críticas e questionam escolhas feitas pelo PT ao chegar ao poder que, segundo membros do PSOL, afastaram o partido e suas lideranças dos movimentos sociais.

Organizado por Gilberto Maringoni, da Universidade Federal do ABC, e Juliano Medeiros, presidente da Fundação Lauro Campos, Cinco mil dias aborda praticamente todas as áreas do governo petista nos 4.856 dias (arred ondados para 5 mil) em que o Brasil foi governado pelo PT – entre 1º de janeiro de 2003 e 17 de abril de 2016, quando Dilma foi afastada. Alianças políticas, economia, saúde, educação, política externa, direitos humanos, pré-sal, direitos indígenas, movimento LGBT, Comissão da Verdade, escândalos de corrupção e mais uma dúzia de temas. Pouca coisa ficou de fora.

Para o deputado Ivan Valente (PSOL), um dos parlamentares que escreveram para Cinco mil dias, a questão central a ser discutida pelos movimentos progressistas é a derrota do modelo de conciliação de classes adotado durante os governos petistas. O parlamentar defende que a estratégia adotada por Lula, na qual em tese todos os grupos sociais sairiam ganhando, ''não resiste aos momentos mais duros da economia, quando a ordem é apertar o cinto dos trabalhadores e retirar direitos para manter a taxa de lucro''.

Visão semelhante é defendida na obra pela candidata do PSOL à Presidência da República em 2014, Luciana Genro, que dispara contra o modelo de alianças adotado pelo PT desde que chegou ao governo. ''No Brasil, a ‘governabilidade’ lulista foi fundada na cooptação de trânsfugas da ditadura, como Sarney e ACM, e na gestão da massa fisiológica de parlamentares através de cargos e dinheiro'', critica Genro. A tentativa de união com um grupo político conservador, segundo ela, levou ao processo de impeachment de Dilma Rousseff no ano passado.

No fim de julho, o ex-presidente Lula rebateu críticas feitas por lideranças do PSOL sobre as alianças feitas pelo PT ao assumir o Palácio do Planalto. Segundo ele, a experiência prática no Executivo altera parte das teorias defendidas por quem está fora do poder. ''A única coisa que desejo é que eles ganhem uma prefeitura, a prefeitura do Rio. Quando governarem a cidade do Rio, metade da frescura vai acabar. Eles vão perceber que não dá para nadar teoricamente. Entra na água e vai nadar, porra'', afirmou Lula.

Sem exceção, os participantes das três obras consideram que o fim do governo petista se deu por meio de um golpe parlamentar e jurídico, com apoio de vários meios de comunicação. No entanto, apesar das duras críticas ao governo de Michel Temer e sua aliança com setores conservadores para aprovar reformas que representam retrocessos para a população, as análises buscam entender dentro dos próprios grupos de esquerda os erros que levaram ao enfraquecimento dos ideais progressistas na sociedade brasileira.

A primeira crítica vem antes mesmo de Lula assumir o poder, ainda durante a campanha de 2002. ''As resoluções do PT e de aliados da esquerda foram deixadas de lado em favor da Carta ao Povo Brasileiro.
Ela se tornou, na prática, o novo programa partidário. A mudança e a continuidade foram prometidas concomitantemente aos de baixo e aos de cima'', avalia Maringoni.

Para o filósofo Ruy Fausto, autor de Caminhos da esquerda, da Companhia das Letras, a atual situação em que se encontra a esquerda brasileira é parecida com a imagem de um homem perdido no meio de uma floresta. O autor faz uma análise sobre as patologias do campo progressista e discute problemas antigos de lideranças da esquerda, como o totalitarismo, adesismo e o populismo. Ele ressalta que é preciso com urgência um trabalho de reconstrução – teórica e prática – para que defensores de uma esquerda mais democrática e plural ganhem espaço.

''O destino de uma parte da esquerda foi uma negação brutal de tudo aquilo que ela propunha na origem: igualdade, liberdade, solidariedade, respeito mútuo entre cidadão e governantes, justiça social'', avalia Fausto. Ele ressalta a preocupação com um ''ataque brutal'' das forças de direita, com a defesa de ideias radicais e autoritárias, que ganha adeptos em várias classes sociais brasileiras.

Sem repensar quais caminhos a esquerda brasileira deve seguir, o filósofo alerta que erros do passado podem ser repetidos. No entanto, Fausto avalia que uma parte da população, que concorda com vários ideais progressistas, não se identifica com as legendas de esquerdas que atuam no jogo político nacional. ''Na situação atual, em termos de partidos de esquerda, somos obrigados a optar ou pelo populismo sui generis do PT, ou pelo neototalitarismo, assumido pelos pequenos partidos de extrema-esquerda, e que influencia setores importantes do PSOL'', diz.

Já o sociólogo e psicanalista Carlos Muanis, junto ao cientista político da USP Aldo Fornazieri, em A crise das esquerdas, se volta para a relação dos movimentos de esquerda com suas bases sociais nas últimas décadas. A esquerda teria perdido a capacidade de dialogar com novos grupos sociais emergidos da revolução tecnológica?, questionam os organizadores do livro.

Em análise acompanhada por outros professores e ativistas da esquerda eles avaliam que o momento difícil está ligado a uma crise civilizatória, em que valores humanistas passam por período de esgotamento e perdem espaço para ideias conservadoras. ''A crise é ideológica, política, ecológica, ética, de valores, lideranças e sentidos'', aponta Muanis.

A obra traz entrevistas com ativistas de movimentos sociais e integrantes de partidos políticos, como o coordenador do Movimento de Trabalhadores Sem Teto (MTST), Guilherme Boulos; o ex-ministro da Educação Renato Janine Ribeiro; e o ex-governador do Rio Grande do Sul Tarso Genro (PT). Nas análises estão presentes divergências internas dos partidos e entre os diferentes campos da esquerda.

No entanto, apesar de muitas diferenças, o diagnóstico é parecido para a maioria dos autores: repensar a política e as práticas dos grupos de esquerda é urgente.
''Nunca foi tão urgente atualizar a crítica aos (des)caminhos da política, e em especial aos da esquerda. Chegou a hora de recomeçar. A esquerda precisa redefinir seu discurso e assumir novas responsabilidades'', avalia Muanis.

ENTREVISTA
Gilberto Maringoni, doutor em história social pela USP e professor de relações internacionais na Universidade Federal do ABC.  Organizador do livro Cinco mil dias: o Brasil nos tempos do lulismo.

Entre os mais de 50 especialistas que participam do livro, o tom que prevalece é de crítica ao lulismo, apesar de todos citarem avanços. Você acha que os governos petistas tiveram mais erros ou acertos? 
O balanço do governo petista é positivo para o país. É positivo, mas insuficiente em relação ao potencial e às expectativas que existiam quando Lula chegou à Presidência. Por isso o tom crítico na maioria das análises. Embora tenha havido transformações importantes, com aumento real do salário mínimo, distribuição de renda e políticas fundamentais como a que garantia ao país o controle do pré-sal, diante das expectativas criadas os governos petistas ficaram muito aquém do que poderiam fazer. Claro que se compararmos com o cenário atual, a hecatombe do governo Temer, tendemos a valorizar o período petista. Mas, sem dúvida, tanto Lula quanto Dilma poderiam ter avançado em áreas estruturais do país e, por conveniência, preferiram mantê-las intocadas.

Em sua viagem pelo Nordeste nos últimos dias, Lula afirmou que “talvez tenha cometido erros no governo”. Falta uma autocrítica mais séria por parte do ex-presidente?
Não tenho a pretensão de falar o que Lula deve ou não fazer. Mas falta examinar as escolhas e opções tomadas durante seu governo. Não só para o PT ou para o próprio Lula, mas para a população que esperava mudanças que não vieram. Um exemplo mais recente: por que o PT optou por seguir o caminho neoliberal a partir de 2015?. Logo após vencer as eleições, Dilma optou pelo caminho contrário ao que tinha defendido nos palanques. Foi uma estratégia? O PT e o governo tinham um plano para tomar essas medidas de ajuste fiscal em um momento que o país estava entrando na crise? Talvez eles tivessem algo em mente e precisam explicar suas decisões para o país. Fazer um balanço não serve para apontar o dedo acusatório, mas serve para aprendermos o que não deu certo e não repetir as mesmas atitudes.

Além da autocrítica e de reflexões teóricas, que medidas práticas os partidos de esquerda precisam tomar neste momento?
É preciso fazer frente ao governo que resultou do golpe de 2016. Imediatamente. Claro que a esquerda tem erros, mas os erros mais graves contra a sociedade estão sendo cometidos agora pelos setores conservadores que assumiram o poder. O grande capital investiu em um caminho antidemocrático e, para combater e mudar a situação, precisamos de uma união, não só dos partidos, mas dos movimentos sociais e, principalmente, da opinião pública. O caminho é buscar uma mobilização nacional para reconstruir o país. E isso não pode envolver só os partidos políticos. Vários setores do empresariado também querem mudança e buscam uma plataforma desenvolvimentista para o Brasil. Tivemos medidas aprovadas pelo governo Temer que não incomodam apenas grupos de esquerda. O congelamento dos gastos públicos, por exemplo, afeta todo mundo. As reformas propostas pelo governo podem abrir a porta para uma convulsão e isso preocupa vários setores.

Mas as pessoas não parecem muito dispostas a protestar. Mesmo com aumento de impostos e o surgimento de novos escândalos de corrupção, o clima de cobrança nas ruas sumiu. Como começar essa mobilização? 
Não existe uma fórmula. A falta de mobilização e o desânimo que tomou conta do país são um entrave sério. Percebo uma insatisfação latente. Você nota um sentimento de raiva em qualquer pessoa com quem conversa, seja na família, no bar, entre amigos. Essa insatisfação precisa se transformar em movimentação. Mas para isso não tem um caminho definido. É preciso que essa mobilização seja construída socialmente. Após um ano e meio de governo Temer, já percebemos que o desgosto das pessoas aumenta cada vez mais.

Apesar de condenado e correr o risco de ficar impedido de disputar a eleição, Lula se consolida como o nome do PT para 2018. Isso pode dificultar a união das esquerdas, já que o governo Lula é muito criticado pelo PSOL? 
Lula é o principal nome ligado a grupos de esquerda e é o único que tem conseguido mobilizar multidões. Mas ainda não é possível saber se sua candidatura vai conseguir unir as legendas de esquerda. Dependerá muito do jogo político até o ano que vem. Podem surgir novos nomes. O PSOL, por exemplo, estuda lançar candidatura própria e tem falado no nome do deputado Chico Alencar. Por enquanto, existe o sentimento de união entre os partidos de que a Lula deve ser garantido o direito de concorrer. Ele vem sendo alvo de uma perseguição clara de alguns juízes e de setores da mídia, o que contribui com um preocupante sentimento antidemocrático que surge no país. Esse sentimento é o pior que podemos ter em um país livre.

Em caravana pela região Nordeste, Lula dividiu palanque com o senador Renan Calheiros (PMDB), que foi muito atacado pelo PT durante o processo do impeachment de Dilma. Esse tipo de atitude não repete erros do passado? Como são vistas essas alianças questionáveis? 
Gerou muitas críticas, sem dúvida. Mas acho que Lula é quem deve avaliar quem pode ou não participar de suas agendas políticas. Com certeza, o senador foi muito criticado na condução do golpe parlamentar. Talvez a avaliação do ex-presidente seja a de que Renan se tornou um crítico e opositor ferrenho das mudanças implementadas por Temer que retiram direitos importantes da população. E o senador, realmente, tem atacado muito as reformas implementadas por este governo. Na política brasileira, as posições mudam muito e isso continuará ocorrendo.

- Foto: CINCO MIL DIAS: O BRASIL NOS TEMPOS DO LULISMO
De Gilberto Maringoni e Juliano Medeiros (orgs.)
Boitempo Editorial
400 páginas 
R$ 49

- Foto: CAMINHOS DA ESQUERDA ELEMENTOS PARA UMA RECONSTRUÇÃO
De Ruy Fausto
Companhia das Letras
208 páginas
R$ 39,90
 
- Foto: A CRISE DAS ESQUERDAS
De Carlos Muanis e Aldo Fornazieri (orgs.)
Civilização Brasileira
266 páginas
R$ 39,90
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