Livro reflete sobre a incapacidade de a linguagem traduzir a realidade

Exemplar de poemas Em viagem - uns estudos, o poeta, crítico e tradutor Júlio Castanõn, tem tiragem de apenas 250 exemplares.

por Mario Alex Rosa 01/09/2017 09:36

A densidade da poesia de Júlio Castañon, cuja sintaxe é extremamente elaborada, é tão alta quanto a discrição do poeta na divulgação dos seus livros de poemas e também nas dezenas de livros organizados e escritos por ele. Castanõn, por exemplo, e para citar apenas um, mas de enorme importância, organizou o livro Carlos Drummond de Andrade poesia 1930-62 edição crítica. No campo da crítica, reuniu parte de seus textos no livro Entre reescritas e esboços. Ensaios que confirmam não só sua visão de poesia, mas reafirmam o quanto esse poeta-crítico vem, de forma muito coerente, alinhavando poesia e pensamento crítico.

Aliás, não deixa de ser curioso que a discrição do poeta apareça também nos títulos de seus livros e ensaios, em que é recorrente encontrarmos expressões como esboços, anotações, alguns trajetos, comentários, notas, ou num de tantos ótimos ensaios que escreveu, o texto “Anotações prévias” no livro Fragmentos do narciso e outros poemas. Mais que anotações, o texto, juntamente à tradução da poesia de Paul Valéry – que em si já é de uma enorme complexidade –, contribui imensamente para pensar a poesia – não só do poeta francês – como linguagem que não precisa negar o lugar do sujeito, ainda que esse sujeito se mescle com um tom mais liricamente reflexivo.

Se nos títulos dos textos críticos prevalecem posições menos despojadas, na poesia não ocorre algo muito diferente, pois há títulos como 17 peças; Matéria e paisagem; Ensaios, figuras; Práticas de extravios; Do que ainda. Assim também se pode notar no mais recente livro, Em viagem – uns estudos, esse modo discreto de estar exercitando, experimentando ou mesmo estudando. De fato, essa postura discreta do poeta pode ser vista ainda pela atitude de imprimi-lo numa tiragem de apenas 250 exemplares.

É possível pensar então que essa escolha do poeta em editar suas “viagens” com os critérios que indiquei confirma mais que uma postura estética, mas também ética, no sentido em que se pode reconhecer na trajetória de Castanõn um poeta rigorosamente comprometido com a linguagem, com os estudos da poesia de um modo geral. Portanto, aprofundar-se na poesia de outros poetas é também repensar o lugar de sua própria criação.

No novo Em viagem – uns estudos, o leitor poderá perceber que a viagem desse caminhante não está propriamente no deslocamento de um para outro lugar, mas na memória. Novamente, a memória – tema forte em Castanõn – a escavar, via linguagem, percepções, sensações, sentimentos, recolhidos aqui e ali nas andanças de um sujeito envolvido com seus pensamentos.

Ao avaliar o que perdera, o poeta mineiro, já fora da paisagem (“na cena tão rápida/ que quase imóvel/ que quase só a passagem/que quase só a janela/ condensa-se uma viagem”), vai compondo e meditando sobre a escrita e, ao mesmo tempo, refletindo sobre a “incapacidade” de a linguagem conseguir traduzir o pensar e o sentir. Talvez por isso o poema venha dividido em 13 partes, em que cada uma delas pudesse emitir a sua unidade, ainda que fragmentada, a formar um todo no final. A busca, portanto, requer um sujeito que tem na linguagem poética um exercício valéryano de pensar a escrita. Mas essa viagem requer mais que um suposto pensamento abstrato, nela está o sujeito ensimesmado “sem ninguém à espera/ sem de quem se despedir”. O que se tem é apenas, mas, sobretudo, a linguagem como forma de equacionar as inquietações de um viajante desgarrado do que poderia recuperar por meio da memória: “e de lá// e de longe/ e de lá daqueles dias lá de longe/ a poeira de uma estrada/ perdida na imagem de mim/recobre tudo”.

É notável que um poeta da qualidade de Júlio Castañon consiga, depois de tantos radicalismos e vanguardismos na literatura, ainda nos oferecer uma poesia que possa deixar o leitor no mínimo a pensar na linha de Valéry: “Escrever o que quer que seja, na medida de que o ato de escrever exige reflexão, e não é a inscrição maquinal e sem parar de uma palavra interior inteiramente espontânea, é um trabalho de tradução exatamente comparável ao que opera a transmutação de um texto de uma língua em outra”.


Mário Alex Rosa é poeta, professor de literatura brasileira e autor dos livros Ouro Preto (Scriptum), Via férrea (Cosac Naify) e outros.


LANÇAMENTO
Em viagem – uns estudos será lançado neste sábado, a partir das 11h30, na Livraria Scriptum (Rua Fernandes Tourinho, 99, Savassi, (31) 3223-1789), com a presença do autor.

EM VIAGEM – UNS ESTUDOS  
• De Júlio Castañon Guimarães 
• Tipografia do Zé 
• 24 páginas  
• R$ 70