Duas irmãs conversam sobre maternidade. A caçula, Hanna, está exasperada. Não consegue lidar muito bem com seu único filho, um bebê que não para de chorar. A outra, Constance, mãe experiente de três, fala para a outra não se preocupar. “Meninos! Faz eles correrem e dê comida. É só isso que precisa fazer com os meninos.” ‘‘E o que fazer com as meninas? Afogar depois que nascem?”, pergunta Hanna, falando sobre si mesma. “Bom”, retruca Constance, com humor ácido. “Há uma cisterna nos fundos.”
A escritora e filósofa irlandesa Anne Enright volta ao tema que lhe rendeu o prêmio mais importante da literatura britânica (membros do Commonwealth) com o livro O encontro, em 2007: a família, sua disfuncionalidade e tragédia. E não apenas isso. A família enquanto uma possibilidade muito rara na (pós) modernidade: a sensação mais completa de pertencimento. Não há maniqueísmo na obra de Enright.
A vencedora do Man Booker Prize reúne uma família católica irlandesa, dilacerada pelo tempo, em seu novo romance: A estrada verde (Alfaguara). O tema é perene na literatura, passando por Flaubert e Dostoievski, até o mais recente e brilhante As correções, do americano Jonathan Franzen, que tem o mesmo desenlace: uma reunião de entes queridos, há muito distanciados, em uma noite de Natal.
Aqui acompanhamos em capítulos individuais a história dos Madigans, em um cenário de condado católico, com natureza digna de Game of thrones: penhascos à beira-mar e um frio abaixo de zero. Mas a guerra dos personagens é interna.
A matriarca e viúva Rosaleen, egoísta e senil. O primogênito Dan, vaidoso, artista sem talento, ex-padre, homossexual em crise de identidade constante. A “filha perfeita” Constance, dona de casa dedicada, com marido rico, à espreita de algo que pode chacoalhar sua vida: a suspeita de um câncer de mama. Há também Emmet, o rejeitado terceiro filho, em sua busca incessante de salvar o mundo em países sem saneamento básico na África e na Ásia. E, por fim, a caçula Hanna, jovem, bela, atriz, alcoólatra, mãe insensível, um trem desgovernado.
Cada capítulo é uma polaroide, entre 1980 e o início dos anos 2000, dessas personagens e de uma Irlanda ora em crise, ora em convalescência. O texto, entre o musical e realista seco, não avança em conclusões precipitadas. Não há defesa de gênero, nem acusações. É humanista, sem concessões, característica de uma grande obra que não se deixa influenciar pelo histrionismo “do bem” tão comum em “textões” nas redes sociais.
Suas tessituras de memórias combinadas com os estados psicológicos (internos) e naturais (externos) compõem uma melodia cheia de melancolia, que retratam o amor perdido e o amor buscado, nunca encontrado. Anne Enright não explicita o que quer dizer. Eis a força descomunal e silenciosa de A estrada verde.
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