Coletânea reúne textos antológicos de Rubem Braga

Em enxuta, porém excelente, coletânea, cronista aborda autores como Manuel Bandeira, Drummond e Clarice Lispector e a influência que exerceram sobre seu estilo de escrever

por Severino Francisco 18/08/2017 15:10

Rubem Braga não escrevia nos papiros da eternidade; batucava suas crônicas no papel precário dos jornais, em contagem regressiva dramática contra os ponteiros dos relógios e do deadline da edição. Nessas condições, mesmo os autores de maior categoria podem ver a qualidade da produção comprometida. No entanto, ele conseguiu alcançar um nível impressionante para quem se autointitulava uma máquina de escrever, “com algum uso, mas ainda em bom estado de conservação”.

Recentemente, foi publicada uma preciosa caixinha com três volumes de crônicas inéditas sobre artes plásticas, política e música. Mas, quando imaginávamos que a fonte havia secado, eis que surge um novo volume, com 25 textos do capixaba: O poeta e outras crônicas de literatura e vida (Ed. Global).

Embora magrinha, essa coletânea reúne alguns textos antológicos e fundamentais para entender a arte de ver, de escrever e de viver de Braga. Um que merece destaque é o dedicado ao poeta Manuel Bandeira, a quem Braga reconhece na condição de mestre de uma escrita clara, simples, limpa e fluente. A poesia de Bandeira é uma das fontes puras em que Braga bebeu.

Durante certo tempo da infância e da adolescência, Bilac havia sido o poeta de sua preferência: ''Seu livro era como um amigo íntimo que me fazia confissões e ouvia as minhas''. No entanto, depois de Bilac, o poeta que mais o impressionou foi Manuel Bandeira. O primeiro livro que lhe caiu nas mãos foi Libertinagem, ''em 1930 ou em 1931''.


NAMORADAS 

No entanto, o êxtase maior ocorreu na leitura de Poesia, com três livros anteriores do poeta: “Minha adesão a Bandeira foi imediata e completa. Ele me ajudou não apenas a namorar as minhas namoradas e a me conformar com o desprezo de outras, como a suportar rudes golpes afetivos que sofri com a morte de pessoas queridas. Os versos de Bandeira passaram a fazer parte de minha vida íntima, ficaram ligados a momentos, pessoas, emoções; até hoje”.

Braga se lembra da surpresa e vaidade que sentiu quando, um pouco mais tarde, fazia crônicas para o Diário da Tarde, de Belo Horizonte, e lhe contaram que várias pessoas pensaram que Rubem Braga era pseudônimo de Manuel Bandeira: “É que na verdade sofri uma grande influência de Manuel; não de suas crônicas, pois estas eu não conhecia então, mas de seus poemas. A linguagem limpa e ao mesmo tempo familiar, às vezes popular, de muitos de seus poemas influiu em minha modesta prosa. E da melhor maneira: no sentido da clareza, da simplicidade, e de uma espécie de franqueza tranquila de quem não se enfeita nem faz pose para aparecer diante do público. Acho que nenhum prosador teve influência maior em minha escrita do que o poeta Manuel”.

Braga faz um curioso comentário: ''Sim, muita coisa ele me ensinou. Só não me ensinou o milagre da condensação lírica e musical, o pulo do gato da poesia; mas também um escrevedor de jornal e revista não precisava saber tanto...'' Era precisamente esse milagre da poesia que Bandeira celebrava no cronista, escrevinhador precário dos jornais.

Ao deslocar o foco para Joel Silveira, Braga toca em outra dimensão essencial do jornalismo: a reportagem. Observa, com muita pertinência, que, embora Joel tenha se tornado famoso por algumas reportagens, logo ele abandonou o gênero para sobreviver em outras funções nos jornais, sina de quase todos os repórteres talentosos: ''A história profissional de Joel Silveira é testemunha do grande erro do jornalismo brasileiro: o plano inferior em que é deixado o repórter''.

O próprio Braga se autoironiza ao afirmar que isso devem ser grunhidos de um velho dromedário que não compreende a imprensa moderna. Mas, na verdade, a observação aguda dele ressoa nesses tempos em que as facilidades da internet estimulam a preguiça do repórter e empobrecem o jornalismo.

A coletânea é excelente. Braga lança um olhar original sobre todos os personagens amigos. No entanto, eram, antes de tudo, amizades culturais, fundadas em uma admiração verdadeira e não em relações de compadrio. Neste sentido, Braga celebra o irreverente Agrippino Grieco, franco- atirador, que fustigou a mediocridade das letras e as armações limitadas da política literária. Braga reconhece que faz muita falta um crítico com essa coragem e se esquiva com muito humor: ''Perguntareis e tu, ó Braga, por que não fazes o que pregas? Direi que sou maior de 70 e não tenho obrigação nem de votar''.
 
Braga, o falso alienado político
 
''Sou uma máquina de escrever, com algum uso, mas ainda em bom estado de conservação'', gostava de se autodefinir Rubem Braga. Ao longo de seis décadas de lida jornalística, escreveu cerca de 15 mil crônicas. Sempre se esmerou em construir a imagem de jornalista distraído, preocupado apenas com passarinhos, nuvens, paisagens, amizades e amores fugazes. Mas, como diria Paulo Francis, atenção, massas, riam, isso é uma ironia. É isso que se pode depreender da leitura dos três volumes da preciosa caixa de inéditos de Braga (Ed. Autêntica): Os segredos todos de Djanira e outras crônicas sobre arte; Os moços cantam e outras crônicas sobre música; e Bilhete a um candidato e outras crônicas sobre política brasileira.

Embora venham sob o título de crônicas, na verdade, essa vertente revela facetas inusitadas ou esquecidas da produção de Braga. Ele era, essencialmente, um cronista. Mas dentro do cronista havia o amante distraído das artes, o apreciador atilado da música e o observador político agudo. Sob a rubrica da crônica, Braga mostra o múltiplo talento na condição de autor de perfis, comentários, críticas. Jamais assumiu a condição de crítico de arte, mas falava com conhecimento, um conhecimento adquirido de uma intensa e amorosa relação com a pintura: ''Quando o jogo da vida me cansa, é a pintura que me apazigua e me faz sonhar. Sou, entretanto, um viciado quase grosseiro e me culpo de não ter nunca afinado melhor essa regular sensibilidade que nasceu comigo. Apenas sei que, de algum modo, já aprendi a ver, pois me espanto com o gesto rudimental de algum amigo menos interessado em pintura''.

Não considerava que tivesse vocação para crítico e se colocava na posição de um apreciador distraído, sem responsabilidade, que apenas para para ver melhor aquilo de que gosta mais, sem querer julgar, apenas buscando o seu prazer: ''Mas quando leio uma página de Venturi, por exemplo, sobre algum quadro que conheço e amo, sinto-me invejoso e humilde, porque vejo que ele sabe amá-lo melhor que eu, exatamente como se ele tivesse notado um detalhe lindo da mulher que eu amo, um detalhe que eu nunca tivesse reparado. A boa crítica de arte o que é, senão um ato de amor?''

Trecho

''Minha adesão a Bandeira foi imediata e completa. Ele me ajudou não apenas a namorar as minhas namoradas e a me conformar com o desprezo de outras, como a suportar rudes golpes afetivos que sofri com a morte de pessoas queridas. Os versos de Bandeira passaram a fazer parte de minha vida íntima, ficaram ligados a momentos, pessoas, emoções; até hoje.''

• O poeta e outras crônicas de literatura e vida
• De Rubem Braga
• Global Editora
• 102 páginas

 
• Rubem Braga - crônicas
• De Rubem Braga
• Autêntica
• 736 páginas