Paranoia, diz uma personagem logo nas primeiras páginas de O último grito, de Thomas Pynchon, “é o alho da cozinha da vida”. Portanto, conclui em seguida, nunca é demais, pode e deve ser usado à vontade.
Principal tempero da cozinha literária de Pynchon, todos os livros que escreveu estão recheados de paranoia, que transborda pelas páginas e nunca parece excessiva. A rigor, é uma comida de sabores raros que não vai agradar a paladares habituados a ingerir qualquer coisa. Fino e sofisticado, o alimento de Pynchon tem no entanto legião de seguidores que discutem, apreciam, se esforçam para decifrar, compreender, assimilar. Em todos os cantos do mundo.
Comece por esse aspecto: a narrativa se desenvolve sem muita atenção a descrever os personagens, que são flagrados no meio de uma conversa e talvez abandonados no mesmo ponto. O leitor é forçado a “pescar” sentidos, sugestões, nuances, e tecer novamente o mesmo tapete para ver se entende a trama complexa em andamento. A única descrição física da protagonista, Maxine Tarnow, por exemplo, é uma comparação com a atriz Rachel Weisz. O leitor completa e fecha a questão por conta própria, se quiser ou puder.
Maxine é especialista em fraudes fiscais, tem uma pequena agência de investigações chamada Vigiar e Flagrar e, sim, ela pensou em nomeá-la Vigiar e Punir, mas achou que ia ficar presunçoso demais. Procurada por um documentarista, Reg Despard, para checar a situação de uma empresa que sobreviveu ao estouro da bolha da internet, ela vai mais desencontrar do que qualquer outra coisa. Tudo se passa nos meses que antecedem a queda das torres gêmeas do World Trade Center, em 2001. Sim, é sobre isso, e muitos dizem que é o romance que a literatura esperava a respeito do assunto. O que é o elogio mais ou menos padrão para o escritor.
Tal como na vida, o romance de Pynchon não encontra reviravoltas muito mirabolantes que acontecem nos filmes de Hollywood ou em certos romances mais, vamos dizer, estruturados. E ainda assim, há muita coisa acontecendo. A empresa tem o nome de hashslingrz e um dono bilionário e jovem, Gabriel Ice, que parece estar envolvido com alguma maracutaia, provavelmente a aquisição do código-fonte de um videogame, DeepArcher, capaz de fazer a deep web um lugar habitável. A deep web, para quem não sabe, é a internet que existe no fundo da outra, visível e aparente, com a qual bilhares de humanos se habituaram a lidar. É o lado tenebroso, necessário e obscuro de sustentação de toda essa trama. Ou, se você quiser, uma supermetáfora para a obra de Thomas Pynchon, que gosta de lidar com camadas sobrepostas. As subtramas com os russos Micha e Gricha, ou com um especialista em odores, ou ainda com o ativismo da sogra de Ice colaboram para redobrar as possibilidades mais globais da trama principal.
Gabriel Ice, portanto, pode estar associado a uma rede de envio de recursos financeiros para paraísos fiscais e talvez o financiamento do terrorismo internacional que em última instância vai render... sim, a queda das torres gêmeas e a ascensão de mais paranoia e controle, fronteiras menos porosas, conflitos mais acirrados.
No fim, se resta ao leitor a sensação de que algo escapou à compreensão, ele pelo menos não se sente abandonado, por não ser o único. A mensagem de um dos sonhos de Maxine, “se mensagem havia, é corrompida, fragmentada, perdida”. Talvez nela a decifração de todos os meandros do jogo em andamento seria possível. Mas os barulhos da cidade, os ruídos excessivos, atrapalham um tanto a gente a pensar, não é? O real é complexo, ramificado, simultâneo, intenso, doloroso, mas é o que tem para hoje. Saiba-se ou não lidar com ele, está aí, se impondo.
A certa altura, numa conversa de Maxine com uma amiga, Heidi, ela faz uma análise do que gerou como consequência o ataque terrorista. “O Onze de Setembro infantilizou os Estados Unidos”, Heidi diz.
Há um dado e uma aposta curiosos no livro de Pynchon. Em vez de exacerbar os valores da internet e da virtualidade exasperante, ele faz com que os personagens retomem valores familiares e palpáveis. Ou pelo menos é o que ocorre com a protagonista. Maxine reata com o ex-marido, por exemplo, e melhora as relações tanto com os próprios pais e a irmã, quanto com os filhos pequenos. Como rescaldo da dimensão desproporcional que pareceram os ataques terroristas, é uma aposta pra lá de interessante. No fundo, relações humanas, de novo e novamente, parecem a resposta para tanta coisa, senão para tudo.
* Paulo Paniago é professor de jornalismo da Universidade de Brasília e autor do livro de contos É um bom título.
O ÚLTIMO GRITO
De Thomas Pynchon
Tradução de Paulo Henriques Britto
Companhia das Letras
584 páginas
R$ 79,90 (livro) e R$ 39,90 (e-book)
TRECHO
“Lembra aquela cena no noticiário local, logo depois que cai a primeira torre, uma mulher vem correndo pela rua e entra numa loja, assim que ela fecha a porta vem uma nuvem negra horrível, cinzas, destroços, varrendo a rua, passa pela vitrine como se fosse um furacão... foi esse o momento, Maxi. Não em que ‘tudo mudou’. Em que tudo foi revelado. Nenhuma grande iluminação zen, mas uma lufada de negrume e morte. Nos mostrando exatamente o que a gente passou a ser, o que a gente sempre foi.”
“E o que a gente sempre foi é...?”
“Pessoas que já eram pra ter morrido. Que estão se dando bem. Nem aí pra quem está pagando o pato, quem está morrendo de fome, vivendo amontoado, pra que a gente possa ter comida, casa, um quintal no subúrbio, tudo isso a um preço camarada... No resto do planeta, a cada dia a conta aumenta. E enquanto isso a única ajuda que a mídia nos dá é chorar os mortos inocentes, buá, buá. Buá o caralho. Sabe uma coisa? Todos os mortos são inocentes. Não existe morto que não seja inocente.”
Depois de uma pausa:
“Você não vai explicar isso, ou então...”
“Claro que não, é um koan.”.