À primeira vista, os 15 contos que compõem O interesse pelas coisas, de Eduardo Villela, tratam de aspectos banais da vida (matéria-prima preferida de nove entre 10 contistas). Porém, a opção pelo simples na escolha da maioria dos seus temas e, sobretudo, a aposta na simplicidade no seu modo de contar as histórias revelam mais de Villela: um domínio eficiente do guidom das narrativas e um desejo genuíno de, de fato, comunicar-se com o leitor. São contos no geral convincentes, que combinam certo tom de honestidade e compaixão, permeado por doses clandestinas de humor, retratando as frestas da vida cotidiana, através das quais o inusitado pode, sem mais nem menos, escapar.
Esse inusitado pode ser tanto um policial que se aferra a uma lembrança de infância para não sucumbir diante de um cotidiano de violência quanto uma garota curiosa em descobrir a secreta profissão do pai, passando por um rapper anônimo transitando entre os estudos, o tráfico de drogas e um estranho quadro de Robert Johnson, ou um músico que só compõe inspirado no movimento de lutadores de UFC.
No fundo, Villela trabalha com uma ideia reincidente: a de que todos estamos protegidos pelas rotinas da vida até que os movimentos do acaso alcancem nossos pés, ou até que a percepção do absurdo dessas rotinas assalte subitamente nossas consciências. É o caso do melhor conto do livro, Os primeiros dias, em que um trainee recém-ingresso em uma empresa de telecomunicações, estranha o fato de passar os dias no novo emprego sem trabalhar e sem ninguém se importar com isso. No texto, a referência a Camus não é à toa.
O livro perde um pouco a pegada em Genética, que põe abaixo um ótimo argumento em favor de uma brevidade direcionada para um desfecho fácil, mas recupera-se em Um bom motivo, na qual a agilidade dos diálogos imprime nova velocidade à leitura, seguindo relativamente bem do hilário Devaneio de poeta (em que o protagonista dá vazão à sua veia poética preenchendo formulários virtuais) em diante. Em A Guerra da Córsega (um conto incomum dentro do universo da obra, com um pé na ficção científica e na distopia), as disputas comerciais e territoriais entre os países são resolvidas não entre guerras, mas por meio de partidas de futebol ou vôlei mediadas pela ONU. Tudo narrado em um tom corriqueiro, quase jornalístico.
Mas é no conto que intitula o livro que o narrador de Villela constrói uma interessante teoria sobre o ato de escrever, ao partir do sentimento de inadequação que todo escritor mantém em relação ao mundo para chegar até a ideia de que as palavras tecem uma falsa sensação de controle sobre um mundo que, por sua vez, rejeita qualquer espécie de deslocamento.
O autor chega a comparar as palavras à “corda de um vaqueiro”, no sentido de que tentam (em vão) capturar aquilo que é arredio a qualquer confinamento; algo que recusa se afixar, pois é transitório o suficiente para não se deixar manusear através da força ou das operações da razão. A própria realidade, enfim.
Porém, partindo das palavras em direção às coisas e, depois, das coisas rumo às palavras, chegamos à conclusão de que todo interesse requer atenção, e que ninguém é mais atento ao mundo que o escritor.
Contudo, ao contrário de cientistas e filósofos, o escritor olha para as coisas sem a intenção de compreendê-las ou interpretá-las, mas na esperança de subitamente ver um relâmpago iluminar tudo de sentido e depois se apagar para sempre. São alguns desses relâmpagos que podemos flagrar retratados aqui e ali ao longo da leitura d’ O interesse pelas coisas, de Eduardo Villela. Vale a pena esperar por eles.
* Tadeu Sarmento é escritor, autor de Associação Robert Walser para sósias anônimos (2015) e E se Deus for um de nós (Confraria do Vento), entre outros
• O INTERESSE PELAS COISAS
• De Eduardo Villela
• Editora Moinhos
• 112 páginas
• R$ 34
Esse inusitado pode ser tanto um policial que se aferra a uma lembrança de infância para não sucumbir diante de um cotidiano de violência quanto uma garota curiosa em descobrir a secreta profissão do pai, passando por um rapper anônimo transitando entre os estudos, o tráfico de drogas e um estranho quadro de Robert Johnson, ou um músico que só compõe inspirado no movimento de lutadores de UFC.
saiba mais
Livro reúne fotografias de Elza Lima sobre a região amazônica
Sebastião Nunes lança livro de crônicas
Flávio Carneiro lança 'Um romance perigoso ', o terceiro da série policial
O último grito, de Thomas Pynchon, mostrar que o mundo é um depósito de desacertos
Júlio Castañon conta experiência de traduzir Rua do Odéon, autobiografia de Adrienne Monnier
O livro perde um pouco a pegada em Genética, que põe abaixo um ótimo argumento em favor de uma brevidade direcionada para um desfecho fácil, mas recupera-se em Um bom motivo, na qual a agilidade dos diálogos imprime nova velocidade à leitura, seguindo relativamente bem do hilário Devaneio de poeta (em que o protagonista dá vazão à sua veia poética preenchendo formulários virtuais) em diante. Em A Guerra da Córsega (um conto incomum dentro do universo da obra, com um pé na ficção científica e na distopia), as disputas comerciais e territoriais entre os países são resolvidas não entre guerras, mas por meio de partidas de futebol ou vôlei mediadas pela ONU. Tudo narrado em um tom corriqueiro, quase jornalístico.
Mas é no conto que intitula o livro que o narrador de Villela constrói uma interessante teoria sobre o ato de escrever, ao partir do sentimento de inadequação que todo escritor mantém em relação ao mundo para chegar até a ideia de que as palavras tecem uma falsa sensação de controle sobre um mundo que, por sua vez, rejeita qualquer espécie de deslocamento.
O autor chega a comparar as palavras à “corda de um vaqueiro”, no sentido de que tentam (em vão) capturar aquilo que é arredio a qualquer confinamento; algo que recusa se afixar, pois é transitório o suficiente para não se deixar manusear através da força ou das operações da razão. A própria realidade, enfim.
Porém, partindo das palavras em direção às coisas e, depois, das coisas rumo às palavras, chegamos à conclusão de que todo interesse requer atenção, e que ninguém é mais atento ao mundo que o escritor.
Contudo, ao contrário de cientistas e filósofos, o escritor olha para as coisas sem a intenção de compreendê-las ou interpretá-las, mas na esperança de subitamente ver um relâmpago iluminar tudo de sentido e depois se apagar para sempre. São alguns desses relâmpagos que podemos flagrar retratados aqui e ali ao longo da leitura d’ O interesse pelas coisas, de Eduardo Villela. Vale a pena esperar por eles.
* Tadeu Sarmento é escritor, autor de Associação Robert Walser para sósias anônimos (2015) e E se Deus for um de nós (Confraria do Vento), entre outros
• O INTERESSE PELAS COISAS
• De Eduardo Villela
• Editora Moinhos
• 112 páginas
• R$ 34