“Não posso dizer que tenha ficado feliz com a morte do Epifânio de Moraes Netto. Mas triste também não fiquei.” Logo na primeira linha de Um romance perigoso, Flávio Carneiro apresenta a vítima, um escritor de autoajuda, e a reação do encarregado, ainda que informalmente, de investigar o crime: André, detetive particular, ex-guia turístico, ex-leitor compulsivo de romances policiais, que “vivia sendo demitido do emprego por ler durante o expediente”. Nascido em Goiânia, radicado no Rio de Janeiro, Carneiro vive em Teresópolis. Escreveu mais de 10 livros, entre eles os dois anteriores da série policial com André e o amigo, Gordo, dono de um sebo de livros. Em Um romance perigoso (Rocco), Carneiro conduz a trama de forma hábil e espirituosa, com diálogos curtos, diretos, ocasionalmente irônicos. A “carioquice” da atmosfera, as citações a autores diversos – Agatha Christie, David Goodis, Clarice Lispector – e, em especial, a maneira como Carneiro engendra a sua narrativa com a obra de Raymond Chandler e Dashiell Hammett, mestres norte-americanos do noir do século 20, são um dos trunfos do livro. Outros escritores já percorreram o caminho das referências literárias na incursão pelo gênero policial, como o francês Jean-Pierre Gattégno em Um lugar entre os vivos (Companhia das Letras, 2004), mas a narrativa ágil e bem-humorada de Flávio Carneiro tem brilho próprio. E, apesar do alerta expresso no título, não há motivo para preocupação: o único perigo que o leitor corre é o de não conseguir parar de ler. A seguir, uma entrevista com o autor, com perguntas elaboradas a partir de trechos de Um romance perigoso:
“Um escritor nunca explica as coisas que escreve. Ele simplesmente escreve.” Mesmo contrariando o que afirma um de seus personagens, você poderia explicar a origem de Um romance perigoso?
Eu queria algo diferente do que acontece nos dois romances anteriores da série, O campeonato e O livro roubado. Não tinha uma ideia muito clara de como seria o novo romance, mas sabia, por exemplo, que o Gordo teria uma livraria, um sebo, e que o André assumiria finalmente seu trabalho como detetive. Nos romances anteriores, eles são detetives por acaso, mas achei difícil sustentar mais um romance com essa ideia. E o Gordo ter uma livraria me daria mais chances de falar de livros. E eles odeiam livros de autoajuda. Então apareceu o mote: um serial killer de escritores de autoajuda. Era isso que eles teriam que investigar, um sujeito que anda matando escritores de autoajuda no Rio de Janeiro.
“Você há de concordar comigo que montei um enredozinho engenhoso.” Como foi montar o enredo de Um romance perigoso?
Como todo serial killer, o meu precisava ter uma marca. Precisava deixar, em cada crime, um recado pra polícia. Comecei daí. A marca seria, na verdade, uma dupla marca. Por um lado, a causa mortis: estricnina. A segunda: a referência a um famoso escritor de romances policiais. Daí em diante fui puxando fios. É isso que me agrada na escrita dos romances, não só os policiais, mas sobretudo estes: ir puxando fios, uma história dentro da outra, um livro dentro do outro, como aquelas bonecas russas, as matrioskas. Gosto dos versos de Poe que dizem que tudo o que somos, ou parecemos ser, é como um sonho dentro de um sonho. Pra mim, a literatura é isso: um sonho dentro de um sonho. Em tudo o que escrevo, acho que respira essa ideia, a de livros dentro de livros, histórias dentro de histórias, a infinita biblioteca.
O seu livro é construído a partir de diálogos. Entre os personagens e também entre a trama e outros livros. Como foi estabelecer uma “conversa” com a obra de Raymond Chandler e Dashiell Hammett? O que mais o interessa em cada um deles?
Toda a série é uma conversa com meus autores de predileção. De vez em quando o Gordo, ou o André, dá uma cutucada, uma fina ironia (ou algo menos sutil) em alguns deles, mas quase sempre o que faço é uma homenagem aos autores que li e leio com prazer. Acho que Hammett e Chandler criam cenas e diálogos muito bons. São mestres nisso. E conseguem tirar do cotidiano, do enfrentamento mesmo de cada dia, as histórias que estão lá, prontas para serem contadas, mas que a gente não vê.
“A dúvida, meu amigo, é uma arma poderosa.” A dúvida também é poderosa ferramenta para a criação do escritor?
A dúvida é o que move o escritor. Ou então ele não é escritor. A certeza é uma serial killer de escritores. Mata muitos, todos os dias.
Um dos personagens acredita que Hammett “morreu frustrado, infeliz” porque “não conseguiu fazer literatura ‘de verdade’. Teve que se contentar com essa porcaria de romance policial”. O que você pensa dessa oposição? Faz sentido? Quais autores de romances policiais, em sua opinião, ignoraram os limites estabelecidos e fizeram literatura “de verdade”?
Essa é uma questão delicada. O que é literatura de verdade? Acredito que a boa ficção é aquela que de alguma forma tira você do seu lugar, aquela que te faz ver o mundo de uma forma diferente, com novos olhos. Isso não quer dizer que essa ficção não possa ser também uma forma de entretenimento. Esse é o problema, há pessoas que não consideram possível colocar na mesma página entretenimento e sofisticação, pessoas que não entendem, por exemplo, que um romance policial, sendo uma leitura prazerosa, possa ser também literatura de qualidade. Bons autores fizeram isso. Dashiell Hammett, Raymond Chandler, Rubem Fonseca, entre tantos outros, souberam unir entretenimento e sofisticação.
Uma das hipóteses para Dashiel Hammett ter parado de escrever, lembrada no seu livro, foi mencionada pelo próprio autor, que disse que “só sabia escrever sobre trambiqueiros de verdade, gente do submundo” e esse tempo tinha acabado, “os trambiqueiros agora eram homens elegantes, frequentavam country clubs”. Isso significa que Hammett, se vivesse no Brasil no século 21, também teria parado de escrever?
É provável que sim. Os bandidos de hoje são poderosos demais, se infiltram em todos os lugares, manipulavam as vidas das pessoas, invadem a sua vida todos os dias, são muito mais canalhas do que os bandidos que têm cara de bandidos. Os de hoje não têm cara de bandido, falam com você na televisão, tem rosto de gente boa, se vestem bem, terno e gravata, e arrasam com você e sua família. Acho que Hammett não saberia escrever sobre eles, estava mais acostumado com bandidos armados, que encontrava nas ruas. Perto dos bandidos de hoje, aqueles da sua época não passavam de amadores.
O tom ágil e espirituoso da narrativa, às vezes irônico, é especialmente marcante. O humor pode ser uma arma para conquistar o interesse? Acredita que cabe mais humor e menos sisudez na literatura brasileira contemporânea?
O humor faz parte da tradição da ficção policial. Há humor nas histórias de Conan Doyle, com sua dupla Sherlock e Watson, há humor em Agatha Christie. O humor do romance noir americano é particularmente irônico, mordaz, e me agrada muito. Quando pensei na série policial, sabia desde o início que o humor estaria presente. O humor ajuda a criar a leveza que eu queria criar nos romances. Não queria uma literatura pesada, mesmo falando de assassinatos, crimes, coisas assim. Queria escrever tirando um pouco do peso das coisas, do mundo. Sempre cabe mais humor e menos sisudez na literatura, brasileira ou não.
Dom Casmurro, citado em um dos capítulos, também é um romance perigoso? Poderia citar outros?
Perigosíssimo. Como Grande sertão: veredas. E A lua na sarjeta, de David Goodis. Também Farenheit 451, de Ray Bradbury. São muitos. Tome cuidado.
As primeiras aventuras de André e Gordo
Flávio Carneiro apresenta os romances anteriores protagonizados pela sua dupla de personagens
O campeonato (Rocco, 2002)
“André é um leitor compulsivo de romances policiais. Quando abre um livro policial, não consegue largá-lo antes de terminar o maldito livro. Isso faz com que ele não consiga parar em emprego nenhum porque é sempre flagrado lendo durante o expediente. Até que, um dia, ele decide se tornar detetive, já que a única coisa que de fato sabe da vida é sobre romance policial. Junto com seu amigo, o Gordo, que também adora o gênero, ele coloca anúncio num jornal, se oferecendo como detetive. E acaba envolvido num caso bastante pesado, que vai mudar sua vida para sempre.”
O livro roubado (Rocco, 2013)
“André acaba, por acaso, sendo confundido com um detetive profissional, Miranda, e assumindo um caso que não era pra ser dele. O cliente, um bibliófilo, contrata André – pensando que está contratando o Miranda, que ele não conhece pessoalmente – para investigar o roubo de um livro raro, a primeira edição de Histórias extraordinárias, de Edgar Allan Poe. No lugar do detetive de verdade, André, ajudado pelo Gordo, vai se envolver numa história que remonta ao século 19, com estranhos alquimistas no meio, e descobrir o que já devia saber: nada na vida é exatamente o que parece ser.”
Um romance perigoso
De Flávio Carneiro
Editora Rocco
288 páginas
R4 39,50
.