Aberta ontem, CineOP discute preservação do audiovisual brasileiro

12ª edição da mostra, que é uma das principais do país, também pretende criar estratégias para que esse patrimônio não seja apagado

por Pablo Pires Fernandes 23/06/2017 08:35

Arquivo EM
(foto: Arquivo EM)
Os 12 anos de realização da CineOP – Mostra de Cinema de Ouro Preto colecionam vários méritos. Bastaria o Cine Vila Rica se encher de luz e de gente naquele belo e histórico edifício para merecer menção honrosa. O evento vai a praças, escolas e mexe com a cidade histórica. Mas o que distingue essa mostra, aberta ontem à noite com a exibição do documentário Desarquivando Alice Gonzaga, é o enfoque na preservação e na memória do audiovisual brasileiro, fato único entre os festivais de cinema no Brasil.

Dividida em três eixos – preservação, história e educação –, a CineOP promove um raro debate acerca do patrimônio que a experiência audiovisual criou desde o fim do século 19 no país, além de promover o Encontro Nacional de Arquivos e Acervos Audiovisuais Brasileiros.

Em um país em que a cultura tem sido sistematicamente tratada em segundo plano na esfera política, onde todo o patrimônio sofre de histórica míngua de recursos e a incerteza institucional se tornou regra, a bandeira da preservação é complexa, embora seja necessária e urgente.

No ano passado, a Associação Brasileira de Preservação Audiovisual (ABPA) conduziu uma discussão que resultou no Plano Nacional de Preservação Audiovisual. A proposta é institucionalizar, em forma de política de Estado – e não apenas de governo –, estratégias concretas para a conservação do patrimônio das imagens em movimento produzidas no país.

Inês Aisengart, que, com José Quental é responsável pela curadoria do eixo de preservação da mostra, afirma que a saúde dos arquivos audiovisuais brasileiros tem variado de acordo com o momento político. Diante do quadro atual, é fácil concluir que o paciente se encontra no CTI.

Em época de surto generalizado, seja institucional, político ou econômico, abordar o tema da preservação digital do audiovisual brasileiro – enfoque desta 12ª edição – parece um gesto quase quixotesco. No entanto, este debate é pertinente e imprescindível.

As transformações tecnológicas e a adoção dos formatos digitais para a produção e reprodução trazem novos desafios para o setor arquivista. O volume de obras fora de esquemas institucionais, as plataformas expandidas – jogos, produtos para meios móveis, live stream para a internet etc. – adicionam complexidade para o trabalho de preservação. Em Ouro Preto, a intenção é colocar o debate sobre a questão e buscar estratégias de salvaguardar uma produção cada vez mais intensa – e dispersa – para que seja constituída uma memória audiovisual brasileira ampla e não apenas restrita às (valiosas) latas de película.

A curadora reconhece que a concretização de medidas e, sobretudo, de políticas públicas perenes para o setor preservacionista está sujeita a inúmeras circunstâncias. Inês aposta na perseverança do debate, capitaneado pela ABPA, para atrair para ele outros elos da cadeia produtiva do audiovisual: produção, distribuição e exibição. A estratégia, no momento, é fortalecer a discussão na tentativa de que os ouvidos das instâncias decisórias (um tanto moucos) se sensibilizem com a justa causa. “Esse plano, que nasceu com a colaboração dos participantes dos seminários em Ouro Preto e da ABPA, é um norte apontado pela comunidade arquivista”, sustenta. Para ela, essa proposta pode se traduzir em políticas de Estado, pois é “o que a comunidade está clamando”.

Inês cita dados que expõem a realidade sobre o tema: “O Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), pela primeira vez, vai investir recursos na preservação do audiovisual”, diz, sobre a medida criada este ano que destina R$ 10 milhões para o setor. O avanço, porém, é irrisório diante do valor total movimentado pelo fundo, da ordem de R$ 730 milhões. A parte reservada à preservação “é menor do que o orçamento de dois longas-metragens”, aponta. Inês sugere a possibilidade de que os recursos destinados à produção e já institucionalizados tivessem parte destinada à preservação e à manutenção de arquivos públicos.

Preservação implica investimento, planejamento e recursos – ações que apenas o Estado é capaz de viabilizar. Em outros países, é prática regular, mas o Brasil engatinha nesta área. Os governos por aqui têm preferido investir em produção, mais visível, sem cuidar ou sequer pensar a respeito do legado desta mesma produção.

Desde a invenção do cinema, a memória nacional tem registros e documentos fundamentais gravados no meio audiovisual. Esse patrimônio requer melhor compreensão de sua especificidade e merece olhar mais atento em todas as esferas do Estado – municipal, estadual e federal. Não é por acaso que tal iniciativa brotou em Ouro Preto, cidade patrimônio da humanidade. Patrimônios são vários e merecem respeito.

 

'Faço os livros nas horas de folga'
Autor dos mais completos dicionários sobre o cinema brasileiro, Antonio Leão é, sobretudo, um apaixonado. Desde que, aos 5 anos, assistiu à Branca de Neve, do Walt Disney, se encantou pelo cinema. Fora de qualquer academia e, muitas vezes, sem patrocínio algum, dedicou tempo e trabalho como poucos para preservar a história do cinema nacional. Agora, na 12ª CineOP, recebe a justa homenagem por esta dedicação. Confira a entrevista exclusiva com ele:

 

Quando tomou gosto pelo cinema e decidiu se dedicar a ele?
O culpado foi meu tio, irmão de minha mãe. Ele tinha um projetor 16mm mudo alemão, fazia um barulhão. Aos domingos, ele ia na minha casa projetar filmes alugados na Mesbla, Fotóptica (do Thomas Farkas), Cássio Muniz, Isnard etc. Os filmes 16mm eram alugados como um DVD. Eu ficava sentado no chão vendo as imagens na tela e olhando para o projetor, aquilo me fascinou. Eu devia ter uns 10 anos. Depois, já com 14, meu pai fez uma troca com ele e pegou esse projetor para mim. Tenho-o guardado até hoje. De posse do projetor, precisava de filmes, então, comeceia a ir à Boca do Lixo paulista catar fotogramas e pedaços de filmes.

Como se deu a criação da Associação Brasileira de Colecionadores de Filmes em 16mm?
Nos anos 1970, conheci Archimedes Lombardi, que havia fundado o Cineclube Ipiranga em 1964. Gráfico, cineclubista e colecionador, não demorou para nos tornarmos muito amigos, pelas afinidades. O cineclube ficou meio congelado nos anos 1970 e 1980. No início da década de 1990, resolvemos reativá-lo. Conseguimos o espaço da Biblioteca Municipal do Ipiranga, hoje Biblioteca Temática Roberto Santos, então com 150 lugares. Começamos a projetar filmes 16mm todos os sábados e, em 20 anos, projetamos mais de 500 filmes, sem nunca cobrar um centavo de ingresso, lotamos a sala diversas vezes e levamos diversas personalidades para palestrar, Ary Fernandes, Máximo Barro, Rubens Ewald Filho, Anselmo Duarte etc. Então, resolvemos criar a associação para poder catalogar todos os colecionadores de 16mm do Brasil. E assim foi feito.

Como se deu o processo de elaboração de seus livros?

O primeiro, Astros e estrelas do cinema brasileiro, nasceu dos meus apontamentos. Eu tinha 5 mil fichas com informações de filmes e artistas brasileiros, que era o que me interessava. Os outros vieram por uma necessidade minha de informação. Depois, percebi que poderiam também ser úteis para outros aficionados como eu. A catalogação se dá através de catálogos de festivais, acervos, bibliotecas, cinematecas, contato com realizadores, atores, técnicos, base de dados da Cinemateca Brasileira etc.

Quais as maiores dificuldades na realização desse trabalho?
Esse tipo de dicionário que faço não tem apelo comercial. As editoras particulares não se interessam e resta somente o apoio de entidades ligadas ao governo –via leis de incentivo, renúncia fiscal. E não tenho tempo para correr atrás disso. Tenho outra profissão, sou economista, trabalho na iniciativa privada e faço os livros nas horas de folga. Por isso, meus livros emperram na produção/edição. Em dois dos dicionários, consegui apoio do Fundo Nacional de Cultura (FNC), outros quatro pela Coleção Aplauso da Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, um pela Fundação Nestlé e três com recursos próprios. A pesquisa é muito dinâmica porque você não está pesquisando algo estático. Os filmes estão sendo realizados todo dia. Muitas vezes, ocorreu de o livro estar na gráfica e chegar uma informação muito importante que eu estava esperando. Aí, não há o que fazer, corrige-se no próximo.

Seu trabalho mais recente é sobre a produção em Super-8. Como vê essa produção no Brasil?
Esse livro sobre Super-8 foi uma ideia que eu vinha maturando há anos, mas eu sabia que a pesquisa seria dificílima e que não teria patrocínio e, por isso, fui adiando. Até que chegou o momento de fazê-lo. Foram três anos de pesquisas nas horas de folga, à noite, nos finais de semana, nas férias etc. E isso sacrifica muito a família, mas sempre tive a compreensão por parte deles. Também fiquei sem ver televisão, sem ir ao cinema, me desatualizei, para poder cumprir o projeto. Eu não tinha noção do que tinha sido o movimento de Super-8 no Brasil, nem a dimensão dele. Através das pesquisas, comecei a compreender a sua importância. Durante 15 anos, o Super-8 foi uma febre no Brasil. Na época, o cinema era feito em 35mm ou 16mm e não existia nem o VHS. O Super-8 veio como a opção acessível de se fazer cinema.

Era popular, né?
O Super-8 surgiu para filmes domésticos, aniversários, casamentos, viagens. Mas logo começaram a bolar roteiros, surgiram festivais, fizeram curtas, médias, longas, jingles, publicidade. Hoje, um jovem anda com um celular no bolso. Naquela época, andava-se com uma câmera Super-8 e um cartucho dentro. Nesse molho todo, surgiu o Abrão Berman, que foi o sujeito que deu cara ao Super-8. Ele criou o Grupo de Realizadores Independentes de Filmes Experimentais (Grife), criou o Supe Festival Super-8, que teve 11 edições (1973-1982), criou a Escola de Cinema, que ensinava jovens a filmar em Super-8, foi jurado de festivais pelo Brasil afora e realizou mais de 300 filmes. Morreu muito jovem, aos 49 anos, em 1990, quando o Super-8 já era quase pó, engolido pelo VHS.

Como avalia a relação da memória do cinema brasileiro ao longo das últimas décadas?
Não tenha a menor dúvida de que evoluímos. Antigamente, o diretor fazia um filme e, depois de lançado, colocava-o na prateleira, às vezes até com o negativo, e já partia para outro projeto. Hoje, 99% dos realizadores já têm em mente a preservação, fazem back-ups, cópias de segurança, não se perdem mais filmes. Temos que cuidar do que ficou para trás. Nesse sentido, a Associação Brasileira de Preservação Audiovisual (ABPA) tem papel fundamental. Hoje, sentamos em mesas para pensar na preservação, não só das imagens como da informação, o que é o meu caso.

Como o cinema se relaciona com a memória de um povo e faz parte do imaginário coletivo de um país?
Através de um filme de época, nossos jovens podem conhecer um pouco da nossa história, dos nossos personagens, da nossa cultura. Além de levar para a tela o talento brasileiro de quem realiza, de quem produz, de quem atua etc. O cinema entra como imaginário coletivo forte no Brasil, mas, infelizmente, 90% dos filmes brasileiros ainda ficam nas prateleiras, aguardando vaga e, quando são lançados, saem de cartaz uma semana depois. As distribuidoras americanas dominam nossas telas. Esse foi e é o nosso maior problema: fazer o filme brasileiro chegar ao seu público. Aí entra a importância dos festivais. Em qual outro evento você pode ver os curtas brasileiros?

Como é ser homenageado e ter seu trabalho reconhecido?

Esse tipo de trabalho de pesquisa que faço, normalmente, não é valorizado. Quando fui convidado, um filme passou pela minha cabeça e verifiquei que algo foi feito, que as pessoas julgam importante, que está somando para ajudar um pouco a compreender nosso cinema. Entrei nessa história despretensiosamente, mas não vou negar que tenho orgulho do que fiz, porque foi feito com muita paixão. 

 

ESPECIALISTAS

Para incrementar o debate sobre preservação, a CineOP convidou três especialistas no tema. Andrés Levinson, historiador, professor e coordenador de pesquisa do Museo del Cine Pablo Ducrós Hicken de Buenos Aires; Tzutzumatzin Soto, chefe do Departamento de Acervo Videográfico e Iconográfico da Cineteca Nacional do México e responsável pela Videoteca Digital Carlos Monsiváis; e Carlos Ovando, encarregado da Unidade Técnica de restauração fílmica da Cineteca do Chile. O Pensar conversou por e-mail com dois deles.

O cinema tem indiscutível valor documental, mas ainda é visto de maneira diferente se o compararmos com livros ou registros oficiais. Qual o valor documental e a importância da história cinematográfica para um país?

Tzutzumatzin Soto: Inicialmente, o cinema entrou em nossas vidas a partir do mercado e como entretenimento e, normalmente, não temos formação em análise crítica das imagens. Se chegamos a utilizar ou ver o cinema de outra maneira, o vemos como ilustração de um tema, como maneira de reação ou acompanhamento de um discurso que queremos provar. No entanto, o valor documental se sustenta no fato de que a imagem tem um sentido de índice de realidade. É afirmar, não é a realidade, é o indício de que algo esteve ali, de que algo ocorreu. A história de um país pode ser contada de maneira complexa se estes vestígios forem incluídos na construção do relato histórico. Não que este relato seja automático nem que as imagens queiram dizer mais do que mil palavras. Requer interpretação, fazer conexões entre os registros fílmicos e com outros documentos. Por exemplo, ver os registros da Revolução Mexicana só faz sentido se temos o contexto para identificar os lugares, as pessoas, outros relatos, talvez escritos ou memória oral. Então, esse registro se torna um documento.

Andrés Levinson: O cinema tem valor documental como qualquer outro artefato produzido pelo homem em um determinado tempo. Diria, inclusive, que tem valor maior por causa da qualidade da informação que pode nos dar, em alguns casos, mais precisa e fiel que qualquer outro artefato/documento. Nossos países têm uma tradição muito forte e arraigada na palavra escrita. Os historiadores se aferram à palavra escrita nos documentos como se ele tivessem um valor de verdade pelo simples fato de estar escrita. É uma maneira de se pensar o passado e a história muito vinculada ao século 19, à origem de muitas disciplinas científicas modernas. No entanto, o que está escrito, seja um documento oficial ou privado, tem ou deveria ter o mesmo valor para se pensar o passado – se é esse um dos objetivos – que aquilo que foi filmado ou registrado com outros meios. Iria, inclusive, mais longe, como disse Marc Ferró, tanto os filmes documentais como os filmes de ficção têm seu valor como documento, apenas devemos fazer as perguntas certas. É o que ocorre diante de qualquer objeto que nos chega do passado, sempre se trata de como o interrogamos, o que vemos nele, mas tudo isso é feito a partir do presente, do momento em que o observamos e o analisamos. Pode-se dizer que nenhum objeto diz a verdade e, por outro lado, todos dizem. Os filmes de ficção produzidos no passado nos falam, de maneira esplêndida, sobre um determinado momento na esfera cultural, política, econômica etc.

Como você vê o conceito de memória, tanto da história do país e de seus costumes como a relação afetiva com uma memória coletiva.

TS: O arquivo é uma promessa de memória. Quando as primeiras comunidades tinham apenas a oralidade para compartilhar os relatos orais das pessoas mais velhas, esse discurso constituía o corpo que dava forma ao arquivo mental da memória de uma comunidade. A partir do século 19, com a fotografia e o cinema, nossa memória coletiva conta com uma ferramenta de memória, às vezes até um substituto, mas que não é objetiva e está atrelada a uma interpretação. Fomos nós humanos que a criamos e é para nós, humanos, que ela é construída. O cinema em si mesmo é um truque de ótica e química no qual depositamos uma promessa de memória. Esta promessa foi usada para criar uma memória de país, uma memória de unidade, uma memória de comunidade que deve ser reconhecida e criticada. É necessário saber quais são esses limites.

AL: O cinema prendeu, em seus fotogramas, uma quantidade notável de tempo, especialmente do século 20. Neste sentido, podemos dizer, como Godard, que é a memória do século passado. Mas, novamente, somos nós, a partir do presente, que devemos fazer as perguntas certas, que devemos saber olhar esses filmes para que não sejam apenas uma nostalgia ou um fetiche que gostamos de colecionar ou um modismo. Existe hoje uma espécie de furor pelo passado e por seus objetos. Isso não significa que exista um legado, ou um mecanismo de transmissão entre as gerações, que implicaria certo aprendizado e maior sabedoria. Nada disso está ocorrendo. Vemos o passado como algo que não nos envolve, como se aquilo que ocorreu antes de nossa existência na Terra não tivesse nada a ver conosco. E isso ocorre, insisto, num momento em que as imagens do passado nos espreitam por todos os lados, o que é um paradoxo difícil de explicar.


Qual a importância e os efeitos de se apresentar um filme antigo para um público jovem?


TS: O público jovem é receptivo aos filmes antigos, mas é claro que as imagens criam vínculos com as pessoas quando elas são capazes de se identificar nessas imagens. O registro de uma família em Paris em 1940 pode nos parecer interessante, mas terá outro sentido se pudermos relacioná-lo com o presente. Tanto a ficção como a não ficção requerem conexão com novos interesses ou interesses existentes e não reconhecidos. Outro aspecto importante para o público jovem é conhecer como as imagens são produzidas e como a tecnologia se transformou, não apenas como um gosto retrô ou vintage, mas como parte de uma cultura audiovisual que contribui para o conhecimento e para a valorização de um documento audiovisual.

AL: Os filmes do passado têm valor fundamental e devem ser exibidos ao público jovem, primeiramente, porque creio que eles vão gostar muito. Isso é o básico. Se pensarmos mais seriamente, é sempre importante o contexto, poder interpretar os filmes no tempo em que foram feitos, qual é seu legado, o que enxergamos hoje nessas imagens, o que nos dizem, se é que ainda têm algo a nos dizer. Isto é chave porque ajuda a pensar e pensar é poder desfrutar a obra. Posto isto, podemos fazer uma longa lista de filmes para trabalhar várias questões. Ninguém pode produzir literatura mais ou menos decente no Brasil sem ter lido os modernistas ou conhecer o Tropicalismo, o Regionalismo, a Poesia Marginal, Carlos Drummond de Andrade, Guimarães Rosa, Graciliano Ramos, Clarice Lispector, Ana Cristina César, para citar os mais óbvios, como na Argentina sem ler Borges ou Saer. Da mesma maneira, ninguém pode fazer um filme razoável sem ter visto cinema e, sobretudo, o cinema de sua região. Bem ou mal, deve-se conhecer os que nos precederam para poder trabalhar a partir dali. Senão tudo perde um pouco o sentido, rompe-se essa cadeia de transmissão que falava anteriormente. E afirmo que isso está ocorrendo. Não quero ser polêmico, mas salvo as exceções de cineastas muito importantes e consagrados como Coutinho (1933-2014), Ainouz, João Moreira Salles, o cinema brasileiro atual é uma catástrofe. Mas o mesmo ocorre com muito do cinema argentino – apenas ocorre que, de uns anos para cá, certas obras têm tido reconhecimento internacional e isso o resgata um pouco, mas o panorama é bem mais pobre. Muitos filmes são realizados, mas os diretores parecem desconhecer completamente o que foi feito por seus antecessores. O caso do Brasil, para mim, é incompreensível, dada a rica tradição cinematográfica do país.


Quais os maiores desafios na política de preservação de filmes antigos?

TS: Primeiro, definir o que consideramos como filmes antigos e se este conceito contribui para a preservação de filmes em geral. Atualmente, os principais organismos de preservação do audiovisual – Federação Internacional de Arquivos Fílmicos (Fiaf), Federação Internacional de Arquivos de Televisão (Fiat) – chamam a atenção para as produções em suportes digitais e videográficos. Hoje, sabemos que, em 15 anos, o que não for transferido do suporte de vídeo não poderá mais ser visto. Há uma preocupação sobre a preservação digital, porque ela é condicionada ao desenvolvimento tecnológico, pelas atualizações de hardware e software, o que torna difícil vislumbrar se veremos essas imagens daqui a 100 anos. Gosto de perguntar: Como podemos fazer para que os filmes durem 100 anos? Faz 100 anos que se perguntaram algo parecido quando reconheceram que o nitrato era bonito, mas perigoso, perecível e inventaram o acetato. Depois, descobriram outros problemas como a síndrome do vinagre, mas o fato é que podemos assistir a essas imagens 100 anos depois porque foram mantidas em condições mais ou menos regulares de temperatura e umidade relativa. Ao fazer esta pergunta, a resposta que mais me satisfaz é a de construir uma comunidade do arquivo cinematográfico. Não pode ser um trabalho isolado, pois isso não tem futuro. O que resta é saber compartilhar, negociar e se comprometer. Nós não viveremos 100 anos, mas temos que encontrar parceiros que estejam dispostos ao fardo de se pensar o futuro da memória. É algo semelhante a um sacrifício, um tipo de doença, o mal do arquivo.

AL: O desafio é sempre orçamentário, ainda que um grande orçamento não signifique o fim dos problemas, ma, sem dúvida, resolveria boa parte deles.  O primeiro desafio é colocar nosso trabalho – cuidar dos filmes e oferecer acesso a eles – no centro da cena, o que significa convencer aqueles que tomam decisões em matéria orçamentária de que vale a pena investir certa quantidade de dinheiro para ajudar a cuidar dessas obras que são parte de nosso patrimônio cultural. Dinheiro existe, o problema é como ele é dividido.

Qual o impacto da tecnologia digital para a preservação de filmes?


TS: A tecnologia digital causou impacto na produção, no consumo e na preservação de uma forma absoluta. Por exemplo, agora podemos conhecer histórias que antes eram de difícil acesso, porque o conhecimento das técnicas e o monopólio dos meios não permitiam. Isso também facilitou a difusão de acervos. É possível compartilhar um filme através da internet, sem a necessidade de saber como funciona um projetor ou de recorrer a um arquivo. Frequentemente, porém, a digitalização foi considerada como o objetivo da preservação de filmes, não apenas como ferramenta. Isso é perigoso de se fazer, pois não há estudos que comprovem que a tecnologia digital vá durar, pelo menos, o tanto que os filmes duraram. Há instituições que têm digitalizado coleções e jogaram fora os filmes depois do processo de digitalização. Do lado oposto, há experiências como o laboratório L’ Immagine Ritrovata, de Bolonha (Itália), que só reconhecem a conclusão do processo de preservação se, após a reconstituição digital do filme, ele retornar ao suporte fílmico. A digitalização permite também a visualização de um arquivo para se captar recursos, o que contribui para legitimar um processo de preservação. Assistir a um filme restaurado causa muito impacto, o que pode e deve ser utilizado para a conservação física dos suportes. Para o digital, todo esse processo deve ser levado em conta, uma preservação física, além de todos os servidores ou da famosa “nuvem”, que é nada mais do que uma caixa ligada à luz.

AL: Em relação às questões técnicas, atualmente existem dois problemas sérios. Um é a preservação dos materiais analógicos – filmes, fitas magnéticas – em um campo em que o mercado de material virgem encolheu e quase todos os laboratórios analógicos fecharam suas portas, o que nos obriga a cuidar ainda mais dos negativos ou cópias que temos porque, possivelmente, não poderemos fazer outras em suporte fílmico. O problema número dois, de proporções difíceis de se calcular atualmente, são os materiais digitais. Os suportes são instáveis, de rápida obsolescência e obrigam uma constante migração para novos suportes tecnológicos com os custos e riscos que isso implica. Ainda está para se ver como essa tarefa será levada adiante, ao mesmo tempo em que o processo está se desenvolvendo. Antigamente, sabíamos que um filme no suporte original mais ou menos bem guardado – baixa temperatura estável, baixa umidade – era capaz de durar pelo menos 100 anos e ser projetado. Hoje, a era digital, que é incrível e maravilhosa para proporcionar o acesso, apresenta incertezas no momento de sua preservação.