Morte [Do lat. morte] S. f. 1. Sua morte é o recreio desta. 2. Ouso sentir, sem segurança, o que o corpo não utiliza a não ser na morte. 3. A bala do acaso que a morte dispara. 4. A morte é nada ou tudo que se despe imóvel. 5. A morte aguarda no silêncio no intervalo entre uma entre outra entre cada batida do coração. 6. Por dentro, a morte se movendo atrás do pano, em pânico, de estar sempre pronta e desgrenhada para entrar no palco e ter que morrer e errar, de repente, ao deus-dará, na boca de cena, com a boca no mundo, a cada momento, da longa vida. 7. Amor e rancor, até hoje, em trança, apertada por nós, que não se desatou com a desordem da morte. 8. Os erros da minha mão que apalpa a própria morte, que avança armada até os dentes. 9. Cair na pele de, com o cassetete em punho, e espancar até a morte. 10. A morte em morse. 11. Até que a morte nos separe ou a vida comece a cortar. 12. O esquadrão de ouro da morte no corredor. 13. Ninguém está de férias no espelho: somos só sentinelas até a morte. 14. Um visual feito de fantásticos sinais em código-morte. 15. Capaz de morte – aerodinâmico. Com o rigor que a morte pede e depois no subterrâneo perde-se de encontro à pedra, ao mármore, para apodrecer bruto, arrebatado, terra adentro, até os dentes, sem cara, com a carne e alma lutando, tendo os ossos no meio. 16. Boca de rato. Morte. Não há saída viva da vida. 17. A vida vem com a morte implícita. 18. A morte a contornou. Luz aberta, durante dias, ininterrupta lâmpada gastando-se sempre em frente, horas a fio, oração comendo, olhos, contas, a terra, para qual nenhuma água basta, nenhuma estação perfuma a pétala com a marca da lembrança da cor entre as páginas. 19. Entre vida e morte só vive o que é estátua o que está no espelho para sempre: luz de carne estática, ininterrupta. 20. A campainha da cigarra que ninguém atende. Toca até a morte. 21. A morte são os óculos sem meus olhos, com as órbitas vazias e lente inútil. 22. Sua morte empurrou minha mão. 23. A morte te denuncia declama, declina, o dia-a-dia do corpo do seu nome. 24. A morte da morte morde o ombro, chamam-me cordeiro, e meu nome prevalece – com a força do leão. 25. O corpo que arma e desarma minha morte em armadura de treva. 26. A morte se transmite em código. 27. Dia corriqueiro que a vida e a morte transpassam indiferentes. 28. Cabo de guerra, vida e morte que vai puxar até partir, em cima do que é mina ou fonte. 29. Nem na hora da morte se tem o nome certo para encomendar o corpo que passou. 30. A rua áspera se
rasga, novamente, insensível a morte que a pontua. 31. Entre cadeira e cama, a mesa é o veículo do intervalo, posta para escrita, comida e morte. 32. Gosto de terra difícil que vida e a morte disputam: rebento, passado, neste palmo. 33. “Numerando até a morte”, principalmente o inominado. 34. A morte de um amigo impressiona mais do que a morte dos pais feitos para morrer. 35. A morte de um amigo reflete a minha morte antes dela ocorrer por onde eu passo. 36. Só a morte vai limpar sua mancha na família. 37. A arte de perder é movida a sofrimento porque de morte é feita vagarosamente. 38. E nunca a nudez foi tão nua, embora o lençol a cobrisse por completo se debatendo entre amor e morte. 39. Marcada na carne e na terra, que vive, e mesmo que não morra, não esquece da morte de raspão ou em cheio. 40. Suicidas não se matam somente. Matam a morte no duelo do dia a dia e empatam o jogo da vida inteira. 41. Escrever sobre minha morte não acerca de, mas em cima, sem falar em caixão lustroso, de preço, onde estarei preso para apodrecer, como fazê-lo? 42. Ao fechar o armário de roupas, o espelho da porta, o de dentro e o de fora me encaram, por um segundo ou dois, antes do rangido da fechadura: a moda é o modo da morte. 43. Quer matar mesmo que for com a própria morte. 44. O corpo prepara a morte à revelia de quem vive. 45. Corpo terrível que não me deixa parar de sentir e andar na beira da vida, que já experimentou de tudo desde o começo do seu tempo e só é virgem de morte. 46. Escrevendo contra a morte. 47. Ódio de mim mesmo por ceder à morte inaceitável. 48. A morte experimental do sono volta à sua mortalha silenciosa. 49. A perfeição da morte longe da mortalha de Minas no esquife que estala. 50. Escreve para além da morte? 51.Preferiu o espaço abrasivo do deserto, da falta, do furo de dor na perna, da trilha de dor na perna, da trilha traficante de certeiro fim e juntou sua morte à do outro. 52. E assim vão os dois, fiéis até a morte mútua. 53. Se reuniram no medo, na morte: prevista, calculada, aos poucos. 54. Pingue-pongue seria seu jogo e codinome, pois é jogo de quem pisca e pensa rápido através dos traços velozes da vida plena e da morte súbita de cada ponto. 55. Voz a voz, através do dia do rio, da via do imaginário não conseguindo doar-se no claro da vida, dividido(a) no arrepio da lei ilusória, a morte te denuncia, declama, declina, o dia a dia do corpo do seu nome: diador, diadema, diadorama, diafilme, diahdorim.! 56. Entregue às traças da noite, aos mil e um cupins de mim, aos meus odores, às dores mereço a morte, o medo desmedido, o lento furo do pingo da gota sucessivo, da bica sem conserto. 57. Ameaço com minha morte com meu medo, no meio da sala, a mulher que não erra, chora de raiva, o filho que não ri e soca as paredes sem disfarçar os pés inchados ameaço a todos com o melodrama em um ato. 58. As partitas digitadas, a arte da fuga, que não dá folga e escape à morte quando as notas fazem a única música possível do / e para o pensamento escandido de Deus. 59. Pistolas nas mãos de metal – metralha a morte nos muros. 60. A máquina se move a morte mastiga trilhos trincados, corpos & carros. 61. Escrevo para o além da morte. 62. Morte a postos. Desde o dia zero, uterino. Se a lei da natureza do corpo fosse isenta de dor nos dias finais, ela seria mais humana.
Armando Freitas Filho, um dos maiores nomes da poesia brasileira, publicou seu primeiro livro, Palavra, em 1963, aos 23 anos. De lá para cá, foram mais de uma dúzia. Nascido em 1940, o carioca venceu diversos prêmios: o Jabuti, em 1986 por 3x4; o Alphonsus de Guimaraens, da Bibliotecas Nacional, por Fio terra, de 2000. Seus versos dão nova forma à tradição modernista, explorando a potência fonética da palavra, ao mesmo tempo em que cria imagens de grande força. Pesquisador na Fundação Casa de Rui Barbosa, exerceu cargos públicos relacionados à cultura e, especialmente, á literatura. Muito próximo de Ana Cristina César, é o organizador da obra da poeta. Em 2003, reuniu sua produção em Máquina de escrever — poesia reunida e revista(1963-2003). Seus últimos livros – Lar (2009), Dever (2013) e Rol (2016) formam uma trilogia em que aborda com sensibilidade única a memória e a morte.
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Armando Freitas Filho, um dos maiores nomes da poesia brasileira, publicou seu primeiro livro, Palavra, em 1963, aos 23 anos. De lá para cá, foram mais de uma dúzia. Nascido em 1940, o carioca venceu diversos prêmios: o Jabuti, em 1986 por 3x4; o Alphonsus de Guimaraens, da Bibliotecas Nacional, por Fio terra, de 2000. Seus versos dão nova forma à tradição modernista, explorando a potência fonética da palavra, ao mesmo tempo em que cria imagens de grande força. Pesquisador na Fundação Casa de Rui Barbosa, exerceu cargos públicos relacionados à cultura e, especialmente, á literatura. Muito próximo de Ana Cristina César, é o organizador da obra da poeta. Em 2003, reuniu sua produção em Máquina de escrever — poesia reunida e revista(1963-2003). Seus últimos livros – Lar (2009), Dever (2013) e Rol (2016) formam uma trilogia em que aborda com sensibilidade única a memória e a morte.