Nos livros de Terron, portanto, a natureza é a oficina que materializa os pesadelos da infância, mas, principalmente, é o pântano que, aos poucos, engole todas as diferenças entre realidade e imaginação
Imagine que você tem 11 anos e sofre um acidente: bate a cabeça em uma coluna durante uma brincadeira de esconde-esconde, sofre uma convulsão e entra em coma. Quando acorda, está mudo, sem certeza de quem é, nem quem são seus pais. Suas lembranças daquele que ficou conhecido como “O Ano do Grande Branco” passam a ser duvidosas e movediças. Nada parece ser do jeito do pouco que você lembra e tudo piora com o fenobarbital que seus supostos pais lhe entopem desde o acidente. É nesse estado letárgico que, sem mais nem menos, sua família foge para o Mato Grosso, fronteira com o Paraguai, estabelecendo-se em uma cidade violenta, chamada Curva de Rio Sujo. Tudo isso quem lhe conta é uma segunda voz fantasmagórica, a voz de Curt Meyer-Clason, espião nazista e tradutor alemão apaixonado por literatura brasileira. Imagine que essa é sua história, contada ao pé do ouvido e de forma oblíqua, como se não fosse sua. Não, você não está louco. Só está dentro da Noite dentro da noite, novo romance de Joca Reiners Terron.
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Curva de Rio Sujo é uma cidade homônima ao livro de contos de Joca Reiners Terron, publicado em 2003. É nessa cidade que Terron (Curt Meyer-Clason? A Flor-vampiro? Você?) enterra as lembranças da infância para voltar a elas como um assassino visitando a cena do próprio crime. É sua Santa Maria, sua Comala, sua gótica Yoknapatawpha. Em outras palavras: um lugar mágico e grotesco, coberto pela marca d’água da violência e ameaçado, o tempo inteiro, pelas monstruosas forças da natureza.
Aliás, as relações entre a natureza, o grotesco, a deformação, o bizarro, o monstruoso e a violência, estão presentes na obra de Terron desde os macacos e velociraptors de Hotel Hell (2003), passando pela região inóspita de Curva de Rio Sujo (2003), até a misteriosa “Criatura” de A tristeza extraordinária do Leopardo-das-Neves (2013). Nos livros de Terron, portanto, a natureza é a oficina que materializa os pesadelos da infância, mas, principalmente, é o pântano que, aos poucos, engole todas as diferenças entre realidade e imaginação.
Noite dentro da noite traz à tona um desses híbridos monstruosos tão presentes na ficção terroniana: um líquen, batizado de “Flor-vampiro” e estudado em laboratório como promessa de uma nova arma química – e de repente, com a ajuda das dicas suspeitas de Curt Meyer-Clason, tudo começa a se interligar neste misterioso romance: imaginação, memória, história do Brasil, até que, em determinada altura, o leitor percebe que o que está em jogo ali é a constatação de que o esquecimento é parte essencial do mecanismo que permite às narrativas prosseguirem com o que sobrou. Desse ponto em diante, o leitor já não tem certeza do que é verdade ou não, mas já foi seduzido o suficiente pelo romance para se importar com isso.
Noite dentro da noite é um romance sem precedentes em nossa tradição literária, e Terron consegue manter a atenção do leitor presa ao longo de suas 463 páginas. No fundo, um estudo sobre a identidade, e a maneira como esta identidade se forma a partir das lembranças ou, melhor, a partir da ausência de lembranças.
NOITE DENTRO DA NOITE
De Joca Reiners Terron Companhia das Letras
463 páginas
R$ 64,90 (livro) e R$ 39,90 (e-book)