Qual o primeiro lampejo para A hipótese humana?
Quando imaginei escrever, lá em 1998, cinco romances policiais, um para cada século da história do Rio de Janeiro, A hipótese humana começou a surgir de modo embrionário. Eu já sabia que, ao trabalhar o século 19, iria privilegiar a população escrava e os tipos de rua da cidade. Mas a ideia concreta me ocorreu quando lembrei de um escabroso caso familiar contado pela minha mãe, e tive o vislumbre do que viria a ser a trama do romance.
“Uma cidade se define pela história dos seus crimes”. Qual a cidade definida pela história de A hipótese humana?
Creio que seja o Rio que existe nas ruas, mais que em qualquer outro espaço. Particularmente as ruas e sua violência, que têm raízes antigas e dão a ela um caráter próprio, o de ser ao mesmo tempo a cidade da “malandragem”, do adultério, da transgressão e do fratricídio.
A hipótese humana integra o que você chama de “compêndio mítico do Rio de Janeiro”. Quais as diferenças do novo livro para os romances que fazem parte do mesmo compêndio?
Embora sejam independentes, e possam ser lidos em qualquer ordem, os romances formam um sistema e têm as mesmas características: pertencem ao gênero policial de assunto histórico; e apresentam um mistério ligado metaforicamente a algum mito, ou conjunto de mitos, geralmente oriundos de culturas ameríndias e africanas.
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Na narrativa, há uma citação às “normas da novela policial”. Quais as normas que você segue do gênero policial e as que foram transgredidas?
Não saberia dizer se transgredi alguma norma do gênero. Sei que escrevi um romance policial, com um crime, um detetive e uma solução. Ainda que a solução tenha sido oferecida pelo narrador e não pelo detetive (que termina a história sem saber o que aconteceu). Não sei se isso chega a ser uma ruptura. O que faço, de modo consciente, é associar o mistério da trama, o aspecto policial, a um mito. Isso talvez seja algo incomum no gênero.
E em relação às normas do romance histórico?
No fundo, não consigo classificar meus romances como “históricos”, no sentido estrito do termo. O romance histórico clássico é aquele que põe em cena personagens e fatos conhecidos, pertencentes à tradição historiográfica. Nos meus romances do compêndio, o que há de histórico é apenas o ambiente. Procuro dar a maior verossimilhança a esse ambiente, tenho o cuidado de estudar mapas, nomes de rua, de conhecer as instituições da época, de respeitar a arquitetura, a culinária, o vestuário etc. Mas isso não chega a fazer da narrativa um romance histórico.
‘’A grande encruzilhada da investigação policial consiste em decidir se deve obedecer ao método ou seguir uma intuição”. Esta também é a encruzilhada do escritor? Método ou intuição?
No meu caso, é método. Não dou nenhum espaço para intuição. Desconheço esse fenômeno de ser levado pelas personagens, como outros escritores dizem acontecer. Meus livros, todos eles, são planejados, obedecem a esquemas que eu traço com bastante antecedência. Tanto que já sei os livros que vou escrever nos próximos 10 anos, tenho inclusive os títulos. Só não criei ainda as histórias, os enredos, que são apenas um detalhe.
Quando termina a pesquisa e começa a criação?
Não diria que faço pesquisa. Faço uma imersão na época em que vou situar a narrativa. Leio livros de história, crônicas e romances passados no Rio. O estudo mais detalhado é o da geografia, da cartografia da cidade. Isso me dá o lugar onde as personagens se mexem. E faço os meus próprios mapas, à mão, das cenas principais. Esses que vêm reproduzidos no livro. Mas essa “pesquisa” (se assim se quiser chamar) é feita depois da criação. A história vem primeiro. Depois começa o trabalho braçal de montar o cenário, de pintar a paisagem.
No capítulo 4, há uma citação a O cortiço, de Aluizio Azevedo. Quais outros livros serviram como referência para A hipótese humana?
Leio muitos romances para escrever os meus. O cortiço é não somente um clássico do romance carioca, mas da literatura brasileira. Mas os livros de referência mais importantes para A hipótese humana não foram de ficção, mas de história: História da polícia no Rio de Janeiro, de Thomas Holloway; A negregada instituição e A capoeira escrava, ambos de Carlos Eugênio Líbano Soares; e A vida dos escravos no Rio de Janeiro, de Mary Karasch.
Em diferentes momentos, há descrições de cenas em que brancos e negros surgem em transe, definido como “a conquista de uma plenitude cognitiva, perceptiva e perspectiva, relativamente às várias configurações do mundo”. Quais os mundos configurados em A hipótese humana?
Na verdade, é um mundo único, visto, percebido, compreendido sob diferentes perspectivas. Perspectivas cosmológicas. O mundo físico, material, objetivo, é sempre o mesmo. Mas é configurado, subjetivamente, segundo essas múltiplas perspectivas.
Podemos afirmar que seus livros avançam entre fatos e mitos?
Creio que sim. Os mitos são o fundo, a base, a essência do que está dito, ou do que tento dizer. Os mitos funcionam particularmente para contrapor à visão de mundo ocidental (que nos domina) outras formas de ser e sentir possíveis, que existem em outras culturas. Os mitos, para mim, são uma forma radical de busca da Alteridade.
Escrever ficção pautada pela história de sua cidade, em momento tão contaminado pelas discussões políticas, é também um ato político?
Minha literatura, de forma consciente, tem um viés político: o de integrar, e pôr no mesmo patamar de relevância, as culturas de populações geralmente desprezadas pelo senso comum, como as indígenas e afro-brasileiras.
De onde vem a sua literatura? Observação, experiência ou lembranças?
Observação, memória, vivência pessoal são elementos sempre presentes e importantes para qualquer escritor. Mas meus livros saem mesmo é de outros livros. Surgem de problemas literários, mitológicos ou cosmológicos que outras narrativas me propõem. Ainda que possa me servir de fatos vividos por mim ou por outros, meu romance obedece a um plano prévio, abstrato, que existe antes de eu começar a escrever. Em A hipótese humana eu quis discutir, provocar questões relativas ao conceito de pessoa, à noção de indivíduo e consciência. Baseei-me essencialmente em cosmologias ameríndias, que apresentam nesse aspecto uma concepção muito diversa da ocidental.
Os outros “fantasmas” de Mussa
O autor apresenta seus livros, inclusive o que ainda vai escrever, todos ambientados no Rio e lançados pela editora Record
O trono da rainha Jinga (1999)
‘‘Ambientado no século 17, trata de uma irmandade secreta de escravos que comete crimes incompreensíveis para a sociedade dos senhores. Está baseada num ponto de umbanda de Seu Zé Pelintra e no mito quimbundo de Cariapemba, uma entidade similar ao Exu dos candomblés nagôs, mais conhecidos dos brasileiros. O que se discute é a natureza do mal.’’
O senhor do lado esquerdo (2011)
‘‘Princípio do século 20. Ocorre um homicídio na “Casa das Trocas”, um prostíbulo de luxo (ficcional) que também funcionava como casa de “suíngue” para membros da elite carioca afrancesada da Primeira República. A investigação, que tem como principal suspeita uma das prostitutas da Casa, acaba levando o detetive protagonista ao hemisfério obscuro da cidade. A narrativa tem por fundo o mito de Logunedé e a discussão sobre a sexualidade masculina.’’
A primeira história do mundo (2013)
‘‘Ambientado no século 16, parte de um caso real: o primeiro assassinato ocorrido no Rio de Janeiro, dois anos depois da fundação da cidade. A vítima foi um simples serralheiro; e o motivo do crime foi a sua mulher. Numa cidade que, à época, tinha muito mais homens que mulheres, mas que não passava de 400 moradores, 10 cidadãos foram considerados suspeitos e processados pelo crime. O mito de base é o das amazonas, as mulheres guerreiras, muito presente nas tradições indígenas do Brasil. O grande tema é a sexualidade feminina.’’
A biblioteca elementar
‘‘É o último volume do compêndio. Vai se passar no século 18, no ambiente da inquisição carioca, que perseguiu particularmente as mulheres. Os mitos de fundo são as múltiplas histórias sobre o Roubo do Fogo, presentes em inúmeras culturas, espalhadas por todos os continentes. A questão mítica será o conceito de humanidade. Ainda não comecei a escrever: meu próximo romance está fora do compêndio, está ligado à escola de samba, jogo do bicho, botequins, etc.’’
Trecho
“Havia, portanto, uma mulher. A história começava a se fechar sobre si mesma. As coisas adquiriam nexo, sentido, fundamento. A espécie continuava essencialmente a mesma. O princípio se confundia com o fim. Imerso nesses pensamentos, Tito deixa o sobrado e atravessa o largo, na direção da Candelária, onde tomará o bonde para o Largo do Rossio. Leva a primeira lambada na Rua do Sabão: um indivíduo surge de repente e aplica nele uma rasteira. O golpe lança Tito no meio da rua. Ele rola sobre o próprio corpo, de propósito, para ganhar espaço, enquanto puxa a navalha. Mas já está cercado: são agora quatro contra um (…).
É um momento sublime, é a hora solene da morte – que não vai, que não pode acontecer, como o leitor intui, pois o romance ainda tem muitas páginas e nenhum protagonista morre no começo.”
(Trecho de A hipótese humana, de Alberto Mussa, página 68)