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Escritor João Anzanello Carrascoza lança 'Trilogia do adeus', nascida a partir do romance 'Caderno de um ausente'

Caixa reúne os livros 'Menina escrevendo com pai', 'Caderno de um ausente' e 'A pele da terra'

Carlos Marcelo

“Ninguém escreve o que é, mas o que foi”, afirma o narrador de Menina escrevendo com pai, um dos volumes da caixa Trilogia do adeus, de João Anzanello Carrascoza.

Tão esmerada quanto as narrativas do autor, paulista de Cravinhos, a embalagem da Alfaguara contém três pequenos-grandes livros: os outros dois são Caderno de um ausente (ganhador do Jabuti em 2015 e editado anteriormente pela CosacNaify) e A pele da terra. Na ausência de melhor definição, vale dizer que Carrascoza é exímio na prosa poética – suas narrativas são impregnadas de pequenos gestos, grandes afetos, frases de impacto e vírgulas, muitas vírgulas. “Ler, tanto quanto escrever, é a ressurreição de um mundo”, ele escreve.
- Foto: Quinho/EM/D.A Press
O mundo ressuscitado por Carrascoza é descortinado na Trilogia em tríplice ponto de vista: Caderno..., o primeiro volume, contém carta de um pai, João, para Bia, a filha recém-nascida. Em Menina..., é a vez de a filha responder ao pai. No último livro, A pele..., Mateus, outro filho de João, lembra uma viagem com o filho que, na verdade, trata-se de uma peregrinação, eles percorrem juntos o Caminho de Santiago.

 

Autor de romances emocionados como Aos 4 e aos 40 e também de livros infantis como Caixa de brinquedos, Carrascoza respondeu por e-mail , ao Pensar, algumas perguntas elaboradas com citações dos três livros. A seguir, a íntegra da entrevista com uma das vozes inconfundíveis entre os grandes ficcionistas contemporâneos brasileiros.

Como surgiu a Trilogia do adeus?
A trilogia nasceu do romance Caderno de um ausente, que, até então, eu imaginava ser uma história centrada apenas em seu núcleo narrativo, sem ramificações.

Esse livro trazia a versão de um personagem, João, o pai idoso que escreve um caderno para a filha recém-nascida. Com o tempo, senti que ela, Beatriz, e seu meio-irmão, Mateus, também deveriam dar seu testemunho embora não simultaneamente, e, sim, em momentos distintos, mais precisamente em tempos de despedida, daí a unidade narrativa que sutura os três volumes – a esperada emergência do adeus.

“A ninguém será dada a prerrogativa, salvadora ou danosa, da reescrita.” E ao Caderno de um ausente, foi dada esta prerrogativa? Reescrever é mais difícil do que escrever?

A vida de cada um é uma escrita única, que não admite reescrita a partir do zero– escrever é rever e modificar o já escrito. Estamos o tempo todo nos rasurando e nos corrigindo na composição de nosso texto existencial.

“Qualquer história, enquanto se desdobra, é um reino de possibilidades.” Como você descobriu que seria possível desdobrar essa história em três livros?
Demorei um ano, após o lançamento do Caderno de um ausente, para perceber que a Beatriz desejava dar uma resposta a esse pai, escrevendo para ele e para si mesma. Assim, passei a me dedicar ao segundo volume, Menina escrevendo com pai. Mas, ao fazê-lo, a presença de Mateus, meio-irmão de Beatriz, ganhou relevância e, então, conclui que era essencial dar voz à terceira força desse núcleo familiar.

“Ninguém escreve o que é, mas o que foi”. Assim nascem os seus livros?

Sim, os meus livros nascem de tudo que já foi e eu tento evocar por meio da palavra, e também de como gostaria que as coisas fossem (e jamais serão).

“O início de qualquer jornada é o mais difícil.” Também foi assim na sua trajetória literária?

Continua difícil porque não obstante o prazer em escrever, sinto que estou começando todos os dias.

Como estabelecer, no ato da criação, que algumas histórias são para crianças e outras são para todas as idades?
Não faço distinção enquanto escrevo: águas são águas – e nelas se podem banhar crianças e adultos.

“Ler, tanto quanto escrever, é fazer a ressurreição de um mundo.” Quais as leituras que tiveram essa força em sua formação como escritor?
Drummond ressuscitou para mim um mundo que só viveu e viu desaparecer. Faulkner também. Clarice idem.

Como o exercício da redação publicitária interferiu na sua literatura? A concisão é um ponto de convergência entre as duas atividades? Poderia citar outros?
A publicidade me ensinou que eu poderia escrever a história dos outros e, sobretudo, que eu deveria escrever as minhas histórias. A singularidade literária advém de explorarmos, corajosamente, aquilo que só a nós pertence.

Você nasceu em uma pequena cidade paulista, Cravinhos. Como essa vivência impregnou as suas obras?
As vivências, quando fundas, impregnam não apenas as obras de um escritor, mas a sua vida inteira – o que vai no âmago não se cura.

Escrever ficção pautada pelos afetos em um país tão contaminado pelas discussões políticas é também um ato político?
Toda literatura é um ato político. Os temas mobilizados por um escritor, a sua linguagem, o seu diálogo com a tradição e com os seus contemporâneos revelam a sua posição diante do mundo. Observar o drama do indivíduo é tão político quanto trazer o social pela luz da escrita.

De onde vem a sua literatura? Observação, experiência ou lembranças?

Desses três domínios imbricados. Tento experienciar com profundidade as minhas observações, observar intensamente minhas lembranças e jamais esquecer as experiências que me constituem.

Trechos

“...
nós, eu na cadeirinha atrás do selim, ele à frente, ele ali, desde sempre na minha vida eu ainda do lado de fora dele, eu começo a sentir algo que ainda não sei verbalizar, mas um dia eu saberei, e agora já é o dia que eu sei, agora eu sei, e então, então é aí que se faz um imenso silêncio, é aí que eu ouço a respiração forte do meu pai, é aí que a chuva desaba sobre nós, é aí que a vida começa a se definir, é aí que o universo, o universo inteiro que eu desconheço, se inicia para mim.”
(Menina escrevendo com pai)

“... eu ia te ensinar por que de não em não o tempo se sacia de nós, o tempo nos nega os desejos e nos avilta os sonhos, por que não existe a terra prometida senão em nós, e por que ela está cercada de continentes barrentos e istmos movediços, - eu ia te levar pra passear nos bosques que o meu imaginário esculpe, eu ia te ensinar a podar os ramos mais altos das árvores, porque se é preciso aprender a plantá-las é igualmente vital que se saiba apará-las, - se eu pudesse, Bia, eu ia te ensinar tudo isso e muito, muito mais, eu ia até te contar baixinho, - eu ia te contar o segredo do universo como quem sussurra uma canção de ninar, mas eu não posso, filha, eu só posso te garantir, agora que chegaste, a certeza da despedida.”
(Caderno de um ausente)

“... você disse, vamos, e, num instante ali chegamos, e ali paramos, e ali nos livramos das mochilas, e ali sentamos, e ali descalçamos os tênis, e ali tiramos as meias, e ali comemos. Ali permanecemos uns minutos, conversando novamente coisas menores, não o mesmo pai e o mesmo filho, mas outro pai e outro filho, porque aquele era um novo dia, que ia entrando em nós, como nós na paisagem, e ali ficamos, um pai e um filho, naquele momento, e era tudo o que tínhamos, nós dois com o mundo que seguia dentro de nós, se fazendo e se refazendo na memória.”
(A pele da terra)

Trilogia do adeus
 

- Foto: Alfaguara/Divulgação   

Caixa com três livros: Menina escrevendo com pai, Caderno de um ausente e A pele da terra.

Alfaguara
400 páginas
R$ 69,90

Caixa de brinquedos
Infantil. Com ilustrações de Larissa Ribeiro
Coleção Barco a Vapor
Edições SM
50 páginas

Tempo justo
Contos
Coleção Barco a Vapor
Edições SM
88 páginas
R$ 40

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