Bob Dylan é o tipo de sujeito que se senta ao piano com Fats Domino para tocar um blues acelerado. Faz mesura e beija a mão de Grace Kelly, a atriz de Hollywood e princesa de Mônaco. Troca uma ideia sobre máfia com o chefe do FBI, J. Edgar Hoover. Senta no banco da igreja e recita uma oração com Aretha Franklin. Pisca para a câmera, como Jean Paul Belmondo em um filme de Jean-Luc Godard. Pula da tela para o cinema americano e sai fazendo disparos com James Cagney numa esquina noir.
Personagens reais, icônicos, se misturam a todo tipo de lúmpen, weirdos, desajustados, outsiders na prosa poética dylaniana. Criador radical, Bob foi agraciado com o maior prêmio dos letrados, o Nobel do ano passado. Mas, vejam só, seu único livro de ficção, este Tarântula, relançado agora pela Tusquets/Planeta, não foi além de um simpático fracasso (é bom que se diga, pois deste senhor Robert Zimmerman sempre se espera muito).
Com a láurea máxima debaixo do braço, claro, todos correram atrás de uma releitura de Tarântula. No Brasil, saiu essa caprichada reedição, com tradução do paranaense Rogério Galindo. Seu irmão Caetano Galindo é hoje o tradutor mais festejado do país, responsável pelo último Ulisses, de James Joyce (no Brasil), e também ganhou um Dylan para traduzir, o livro de letras (1961-1974) do poeta americano, pela Companhia das Letras.
O prefácio, inspiradíssimo, de Valter Ugo Mãe, já vale a aquisição. “Tantas vezes acusado de ser um não cantor, muito se discutirá sobre ser um não poeta. Contra toda dogmática, no entanto, Dylan é um dos grandes cantores e dos grandes poetas do mundo”, diz o escritor português-angolano.
Sobre ser um não cantor, vale ressaltar que Dylan está lançando um álbum triplo (!) apenas de canções de jazz. Enquanto bardo, ele já provara seu valor nas longas canções, de inspiração messiânica e formato moderno, algo que flerta com Rimbaud, John Keats e o próprio Joyce. O tradutor Galindo afirmou que, a partir do momento em que o leitor se liberta da tentativa de achar a “história” (ou a narrativa), o prazer da leitura flui naturalmente.
Para quem conhece algumas das maiores canções dylanianas, como Ballad of a thin man, Desolation row, Sad eyes lady of the Lowlands e, especialmente, a surrealista Visions of Johanna (da obra-prima Blonde on blonde), este Tarântula faz todo o sentido. A viagem de Dylan, lisérgica, própria dos sixties, ganha liberdade para avançar além do formato canção nesta novela de 130 páginas.
A crítica, o sarcasmo, o humor negro, a defesa dos direitos civis, o modelo “pergunta e resposta”, o nonsense, os personagens disfuncionais: está tudo ali. Talvez funcione melhor em canções pop bastardas do que em poesia (ou “prosa poética”), por isso Tarântula não alcançou o êxito dos discos de Dylan.
Mas vale lembrar que o livro perdeu seu timing de lançamento. Escrito em meados dos anos 1960, portanto entre a produção das maiores “pedras” de Bob, como Bringing it all back home, Highway 61 revisited e Blonde on blonde, a obra literária foi aguardada com grande ansiedade por fãs, imprensa e mercado editorial.
Quando Tarântula estava para ser lançado, Dylan sofreu seu famoso acidente de moto, perto de sua casa em Woodstock, e desapareceu do mundo por cinco anos. Isso, em 1966. O livro submergiu e só foi lançado de fato em 1971. Ou seja, o espírito meio que tinha passado, e suas vendas (e repercussão) foram bem abaixo do que se tivesse sido aproveitado o calor dos midsixties.
Até então, a única edição brasileira, da Brasiliense, em 1986, trazia a tradução do poeta Paulo Henriques Britto. Esta nova de Rogério Galindo é bem diferente, como costumam ser as traduções com décadas de distância. E, segundo o próprio Galindo, é apenas uma “opção de leitura”.
Para Valter Ugo Mãe, só resta a todos (público e, especialmente, a resistente academia das letras nas universidades mundo afora) a aceitação deste Dylan outsider enquanto escritor. Ele que se tornou símbolo de uma resistência que importa deveras à arte. “Resta-nos mover o vinil de Highway 61 revisited da discoteca para a biblioteca, coisa que há muito suspeitava estaria bem a fazer”, conclui, com humor quase dylaniano, o autor de A máquina de fazer espanhóis.
TARÂNTULA
De Bob Dylan
Tradução de Rogério Galindo
Editora Tusquets/Planeta
136 páginas
R$ 36.90
Personagens reais, icônicos, se misturam a todo tipo de lúmpen, weirdos, desajustados, outsiders na prosa poética dylaniana. Criador radical, Bob foi agraciado com o maior prêmio dos letrados, o Nobel do ano passado. Mas, vejam só, seu único livro de ficção, este Tarântula, relançado agora pela Tusquets/Planeta, não foi além de um simpático fracasso (é bom que se diga, pois deste senhor Robert Zimmerman sempre se espera muito).
Com a láurea máxima debaixo do braço, claro, todos correram atrás de uma releitura de Tarântula. No Brasil, saiu essa caprichada reedição, com tradução do paranaense Rogério Galindo. Seu irmão Caetano Galindo é hoje o tradutor mais festejado do país, responsável pelo último Ulisses, de James Joyce (no Brasil), e também ganhou um Dylan para traduzir, o livro de letras (1961-1974) do poeta americano, pela Companhia das Letras.
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Sobre ser um não cantor, vale ressaltar que Dylan está lançando um álbum triplo (!) apenas de canções de jazz. Enquanto bardo, ele já provara seu valor nas longas canções, de inspiração messiânica e formato moderno, algo que flerta com Rimbaud, John Keats e o próprio Joyce. O tradutor Galindo afirmou que, a partir do momento em que o leitor se liberta da tentativa de achar a “história” (ou a narrativa), o prazer da leitura flui naturalmente.
Para quem conhece algumas das maiores canções dylanianas, como Ballad of a thin man, Desolation row, Sad eyes lady of the Lowlands e, especialmente, a surrealista Visions of Johanna (da obra-prima Blonde on blonde), este Tarântula faz todo o sentido. A viagem de Dylan, lisérgica, própria dos sixties, ganha liberdade para avançar além do formato canção nesta novela de 130 páginas.
A crítica, o sarcasmo, o humor negro, a defesa dos direitos civis, o modelo “pergunta e resposta”, o nonsense, os personagens disfuncionais: está tudo ali. Talvez funcione melhor em canções pop bastardas do que em poesia (ou “prosa poética”), por isso Tarântula não alcançou o êxito dos discos de Dylan.
Mas vale lembrar que o livro perdeu seu timing de lançamento. Escrito em meados dos anos 1960, portanto entre a produção das maiores “pedras” de Bob, como Bringing it all back home, Highway 61 revisited e Blonde on blonde, a obra literária foi aguardada com grande ansiedade por fãs, imprensa e mercado editorial.
Quando Tarântula estava para ser lançado, Dylan sofreu seu famoso acidente de moto, perto de sua casa em Woodstock, e desapareceu do mundo por cinco anos. Isso, em 1966. O livro submergiu e só foi lançado de fato em 1971. Ou seja, o espírito meio que tinha passado, e suas vendas (e repercussão) foram bem abaixo do que se tivesse sido aproveitado o calor dos midsixties.
Até então, a única edição brasileira, da Brasiliense, em 1986, trazia a tradução do poeta Paulo Henriques Britto. Esta nova de Rogério Galindo é bem diferente, como costumam ser as traduções com décadas de distância. E, segundo o próprio Galindo, é apenas uma “opção de leitura”.
Para Valter Ugo Mãe, só resta a todos (público e, especialmente, a resistente academia das letras nas universidades mundo afora) a aceitação deste Dylan outsider enquanto escritor. Ele que se tornou símbolo de uma resistência que importa deveras à arte. “Resta-nos mover o vinil de Highway 61 revisited da discoteca para a biblioteca, coisa que há muito suspeitava estaria bem a fazer”, conclui, com humor quase dylaniano, o autor de A máquina de fazer espanhóis.
TARÂNTULA
De Bob Dylan
Tradução de Rogério Galindo
Editora Tusquets/Planeta
136 páginas
R$ 36.90