Por Júlio Diniz*
Contra a realidade social, vestida e opressora,
cadastrada por Freud – a realidade sem complexos,
sem loucura, sem prostituições e sem penitenciárias
do matriarcado de Pindorama
Oswald de Andrade – Manifesto antropófago
antropofagia, como tema recorrente na cultura brasileira, é de extraordinária importância para a compreensão do nosso modernismo em sua fase inicial (anos 20) e dos desdobramentos decorrentes de suas propostas. Tarsila do Amaral, então mulher de Oswald de Andrade, lhe presenteou no dia do seu aniversário, 11 de janeiro de 1928, com um quadro que ela havia terminado de pintar. Batizado de Abaporu, “antropófago” em tupi-guarani, a pintura provocou em Oswald e Raul Bopp, amigo e companheiro da Semana de Arte Moderna de 1922, a idéia de se fazer, a partir da imagem inóspita daquele homem de pés enormes sentado, um movimento.
Imediatamente após, surgiram o Clube de Antropofagia e a Revista de Antropofagia, veículo de divulgação das ideias do grupo. Nesta mesma revista, em 1928, Oswald lança o seu Manifesto antropófago, propondo, a partir da noção de primitivo, uma visão crítica de nossa herança cultural baseada na desconstrução de uma tradição ocidental estabelecida e na apropriação criativa da antropofagia como prática de reinvenção.
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Oswald traz para o solo arenoso da discussão cultural da época a releitura do conceito de antropofagia como um processo inevitável de assimilação crítica das ideias e modelos europeus, devorando, deglutindo e degustando o que vem de fora, sem se subordinar às dicotomias nacional/estrangeiro, modelo/cópia. Nas suas próprias palavras: “Só interessa o que não é meu. Lei do homem. Lei do antropófago”. A antropofagia surge como necessidade de atualização da discussão posta em 22, marcada pelas duas forças mais significativas do modernismo brasileiro – a vertente internacionalista (sintonizar o Brasil com as vanguardas europeias) e a vertente nacionalista (sintonizar o Brasil com a sua vocação artística e cultural).
O bárbaro tecnizado, expressão de Keyserling incorporada por Oswald em seu projeto cultural, devora seus inimigos externos para adquirir, com nobreza e força, seu poder, conhecimento e técnica. Desse modo, o criador de literaturas nos trópicos devora o outro, internaliza o outro e externaliza esse outro internacionalizado, tornando-se parte desse outro – transformado, rasurado, autodevorado. Transforma-se no tradutor de tradições incessantemente traídas pela dinâmica de uma nova relação entre sociedade, história e cultura. Segundo Haroldo de Campos:
A antropofagia oswaldiana é o pensamento da devoração crítica do legado cultural universal, elaborado não a partir da perspectiva submissa e reconciliada do bom selvagem, mas segundo o ponto de vista desabusado do mau selvagem, devorador de brancos. Ela não envolve uma submissão (uma catequese), mas uma transculturação; melhor ainda, uma transvalorização: uma visão crítica da história como função negativa (Nietzsche) capaz tanto de uma apropriação como de desapropriação, desierarquização e desconstrução.
Ausente dos circuitos culturais durante décadas, a antropofagia oswaldiana retorna à cena a partir de algumas posturas defendidas pelo concretismo, em fins dos anos 50, ganhando grande visibilidade nas décadas seguintes. Na verdade, o tema da antropofagia, de uma maneira geral, passou a ocupar um espaço significativo na produção artística brasileira do período. Poetas como Torquato Neto e Waly Salomão, cineastas como Nélson Pereira dos Santos, Glauber Rocha e Joaquim Pedro de Andrade, artistas plásticos como Glauco Rodrigues, Lygia Clark e Hélio Oiticica, diretores de teatro como José Celso Martinez Correa e, principalmente, a tropicália, repensaram e atualizaram a questão.
Em relação à crítica literária e cultural, a antropofagia e a obra de Oswald de Andrade, tomada aqui em suas distintas fases, despertam cada vez mais interesse. Destacam-se, pelos seus estudos sistemáticos sobre o assunto, intelectuais brasileiros como Benedito Nunes, Haroldo de Campos, Lucia Helena, Roberto Corrêa dos Santos, Suely Rolnik e Silviano Santiago, entre outros. Não é tarefa deste texto nem há espaço e tempo necessários para discutir aqui os caminhos teóricos e as contribuições que os críticos acima citados deram à compreensão do tema na contemporaneidade.
A Tropicália representou uma retomada extremamente fértil do diálogo com as posturas políticas, estéticas e éticas de Oswald de Andrade, em especial com a antropofagia. O movimento começou em 1967, pautado pela intervenção crítico-musical no cenário cultural brasileiro, e do qual participaram os compositores Caetano Veloso, Gilberto Gil e Tom Zé, os poetas Torquato Neto e Capinam, os maestros de formação erudita Rogério Duprat, Damiano Cozzella e Júlio Medaglia, o grupo Os Mutantes, a cantora Gal Costa e o artista plástico Rogério Duarte, entre tantos outros.
A Tropicália ressaltou, em sua estética, os contrastes da cultura brasileira, buscando superar as dicotomias arcaico/moderno, nacional/estrangeiro e cultura de elite/cultura de massas, que, hegemonicamente, marcavam a discussão cultural na década de 60. Sua proposta voltava-se para a absorção de distintos gêneros musicais, como samba, bolero, frevo, música de vanguarda e o pop-rock nacional e internacional, incorporando a utilização da guitarra elétrica.
O histórico do Tropicalismo remonta a discussões estéticas mantidas entre Caetano Veloso, Gilberto Gil, Maria Bethânia, Torquato Neto, Rogério Duarte e o empresário Guilherme Araújo, nas quais eram colocadas em pauta questões como a necessidade de universalização da música brasileira em um contexto marcado hegemonicamente pela preocupação nacionalista de rechaçar a influência estrangeira.
O INOVADOR CAETANO A recepção das posturas estéticas e políticas da tropicália pela crítica caracterizou-se por um total antagonismo de posições. O poeta e ensaísta Augusto de Campos em seu livro Balanço da bossa e outras bossas saúda o Tropicalismo como a mais poderosa manifestação de vanguarda no final da década de 60, destacando o papel de Caetano Veloso como um artista voltado para a inovação e renovação da música popular. Outros críticos, como Silviano Santiago e Heloísa Buarque de Hollanda, destacam a contribuição dos tropicalistas no debate cultural brasileiro de então, associando os seus criadores a uma nova visão da esquerda e a uma provocadora maneira de tratar os embates tradicionais no campo da política e da arte, ressaltando a visão microfísica presente na ação tropicalista. Outros intelectuais como Roberto Schwarz e Antônio Carlos de Britto, por exemplo, acusavam o movimento de alegorizar o subdesenvolvimento brasileiro, reduzindo as questões de ordem política e econômica a posturas estetizantes inócuas e alienadas do debate em torno da ditadura e suas consequências.
Pode-se afirmar que o Tropicalismo vivenciou o desejo antropofágico preconizado por Oswald de Andrade de uma maneira nietzschianamente radical. Percebe-se na vontade de potência tropical e híbrida a nobreza do mulato que afirma a vida, o empenho com a transformação da estética em valor vital, contra a moral do escravo, representada no panorama cultural dos anos 60 no Brasil pelo ressentimento e autoritarismo de uma grande parte da esquerda intelectual. Ao mesmo tempo, por mais paradoxal que pareça, o Tropicalismo representa a quitação de contas com o alto modernismo, a rasura com a contribuição milionária de todos os acertos e erros de Mário e Oswald de Andrade, o esgotamento do projeto modernista e o início de outro momento da arte brasileira, em sintonia com as grandes transformações políticas, sociais e culturais do Ocidente. O Tropicalismo fecha a porta modernista sem nostalgia e olha pela fresta o pós-moderno sem nenhum desejo de colonizar o futuro, utilizando a imagem de Octavio Paz. A defesa de uma “poética da agoridade” em aliança com uma ética que afirma o valor da vida no presente.
A Tropicália como estética reafirma a força estranha da música popular como lugar de afirmação do outro, de devoração do outro, caldeirão multicultural que busca, através da alegoria das “imagens primitivas do Brasil”, inseri-lo no cosmopolitismo do pobre, para usar uma expressão do crítico Silviano Santiago. A alegoria como caminho necessário para transformar a falta e a dor em alegria, o luto em luta, negando a busca da nacionalidade como valor essencialista e substantivo, e a arte como instrumento de conscientização das massas e guerra contra a ditadura militar.
A ação tropicalista representa a radicalização da volta a uma tradição do kitsch, do exagero, da hipérbole, da “cafonização” das imagens, da leitura crítica dos diapasões do Brasil, seja em sua estética, seja em seu comportamento geracional, seja em sua maneira de pensar a cultura. A construção de um imaginário hiperbólico e a opção por uma estética do excesso são retomadas e reafirmadas pela Tropicália, fazendo não o circuito tradicional e previsível de um programa vanguardista, ou seja, negando a Bossa Nova, a canção de protesto e a Jovem Guarda. Os tropicalistas incorporaram à sua estética tanto os procedimentos de uma performance over da fase heroica da MPB quanto os procedimentos minimalistas da Bossa Nova.
O maior valor do Tropicalismo é a capacidade (presente até hoje nas ramificações tropicalistas e tribalistas) de repensar o lugar do corpo, da alteridade, das novas subjetividades, da visualidade e da voz na cena performática.
O Tropicalismo, em seu melting pot triturador, meteu e tirou, inúmeras vezes, a colher estetizante e politizante de seu caldeirão. Celso Favaretto conseguiu, em seu ensaio de 1979, perceber que a tropicália não só trabalhava com materiais que representavam o kitsch, o cafona, a extroversão, o excessivo na cultura brasileira, mas também com a sofisticação de uma formatação clean, com seu gesto mais intimista, sua construção mais plana e angular de uma tradição da bossa nova, a voz dissonante, desencaixada, tradutora de modulações.
Essa constatação se aplica às canções como também aos cenários dos shows, roupas e principalmente às capas dos discos, em função da proximidade dos músicos com os artistas plásticos. Fazendo um balanço da iconografia das capas de disco durante os anos 50 e 60, percebe-se uma enorme ruptura na concepção visual da Bossa Nova em comparação com a das décadas anteriores. Elas são mais claras, “limpas”, “modernas”. Há uma evidência, quando se observa a coleção bossa nova, de que um novo processo se instaurava, uma “higienização” latente no conteúdo programático bossa-novista, uma depuração radical do excesso, seja ele musical, poético, gráfico ou visual. Em relação ao Tropicalismo, o que se vê é exatamente o contrário. As capas dos primeiros discos da Tropicália são hipercoloridas, justapondo elementos modernos e tradicionais, o novo e a tradição, bem ao estilo de Sgt. Pepper’s, dos Beatles. As imagens do Brasil e do exterior devoradas, deglutidas e devolvidas como proposta de desierarquização e em sintonia com as vanguardas de então.
Nesse sentido, Caetano representa o mediador do diálogo entre Bossa Nova e Tropicalismo, instituindo nessa prática dialógica um eixo articulatório de inúmeras tendências da MPB nos anos 60. A sua presença, marcada por uma voz que é uma máquina de desejos e devoração, desempenha um papel dramático, um lugar na cena cultural e uma força performática incomparáveis. A década de 60 foi muito marcada, musicalmente falando, por tensões entre cinco grupos de força, a saber: a tradição sentimental e exagerada da música brasileira dos anos 40 e 50; o distúrbio geracional e sonoro das guitarras e cabelos compridos da Jovem Guarda; o minimalismo das ricas formas poéticas, harmônicas e melódicas da Bossa Nova; o engajamento barulhento e transformador da canção de protesto, com sua vocação redentora e revolucionária; e a alegoria carnavalizante dos corpos, cores e vozes do Tropicalismo.
O levantamento e configuração da cartografia musical brasileira urbana dos anos 60 explicitam as tensões estéticas e políticas no palco dos conflitos culturais. Falsas dicotomias conduziram em parte as apaixonadas análises da época – guitarras elétricas x banquinho e violão; o cristal da voz x o grito borrado do protesto; o engajamento x a alienação; o nacional x o estrangeiro. A Tropicália reivindica para si o papel de força tradutória dessa “guerra de relatos”, buscando se colocar no epicentro do conflito entre tradição e inovação, o arcaico e o moderno, o artesanal e o industrial. Caetano cantando Coração materno, de Vicente Celestino, vestido com roupas de plástico, Gil inventariando os símbolos kitsch do Brasil ao lado de guitarras destoantes são imagens de um procedimento estético pós-oswaldiano que se apropriou de elementos da Bossa Nova, da canção de protesto e da Jovem Guarda para a construção de seu caleidoscópio.
Nas palavras de Heloísa Buarque de Hollanda e Marcos Gonçalves: “Na opção tropicalista, o foco de preocupação política foi deslocado da área da “Revolução Social” para o eixo da “rebeldia”, da intervenção localizada, da política concebida enquanto problemática cotidiana, ligada à vida, ao corpo, ao desejo, à cultura em sentido amplo. Na relação com a indústria cultural, essa nova forma do conceber a política veio a se traduzir numa explosiva capacidade de provocar áreas de atrito e tensão não apenas no plano específico da linguagem musical, mas na própria exploração dos aspectos visuais/corporais que envolviam suas apresentações”.
SEMIOLOGIA DA GUERRILHA Essa técnica do ataque e envolvimento assemelha-se em muito à semiologia da guerrilha. O artista-guerrilheiro, longe de ser aquela figura messiânica empenhada na redenção pelo “mito populista”, sacerdote da revolução social e do “dia de amanhã”, é o artista que pinta quadros e movimentos pulsantes, desordenados, inacabados. Caetano sabia que as fantasias tropicalistas durariam pouco tempo, seriam rasgadas no primeiro carnaval. A ideia de ver o movimento de que participou se transformar em peça de museu, representação simbólica de uma primavera tropical “imortalizada”, produziu em Caetano a necessidade de se vestir com os signos da diversidade e da transformação.
Segundo Augusto de Campos: “O que nasceu e nunca mais morrerá na música popular brasileira d.C. (depois de Caetano) foi a consciência absoluta do fazer e da liberdade de fazer, a noção precisa da invenção como um processo de revolução permanente e sempre inesperada. Guerrilha artística”.
O próprio Augusto, ao descrever e interpretar o vanguardismo dos baianos, em especial Caetano, coloca que “roupas + dança agressiva poema de Fernando Pessoa solo de uivos melodia letra faziam parte de um happening”. Todo esse sistema de signos, que, relacionados, produz a imagem do inventor culturalmente devorador, passa pela dialetização do processo estético. O Tropicalismo retomou elementos estéticos da Semana de 22, propôs a fusão do sacro com o profano, subverteu a dicção oficial, introduzindo modos e temas que descentralizaram o ouvido harmônico da época. Assim como João Gilberto, o afinadíssimo cantor que desafi(n)a o modo solene de cantar, Caetano retorna a “linha evolutiva” da MPB, formando com as novas criações das artes plásticas a poesia concreta, o Cinema Novo e o Teatro Oficina, a vanguarda mais radicalmente criativa no panorama cu1tural daquele momento.
O conceito de bárbaro tecnizado, presente no pensamento e nas ações políticas de Oswald, é retomado no espaço alegórico de leitura da cultura brasileira proposto pelos tropicalistas. Caetano se aproxima da figura desse bárbaro tecnizado quando afirma – “nego-me a folclorizar o meu subdesenvolvimento para compensar as dificuldades técnicas”.
A dissonância, categoria do discurso técnico-musical, ganha uma conotação de bandeira, de lema para artistas que se inquietavam com o nacionalismo fundamentalista e autoritário e com o “respeito irrestrito às tradições”. Além disso, o efeito dissonante acompanha o discurso das vanguardas da década de 60, fazendo girar a moeda conteúdo/forma, faces de uma mesma relação valorativa, para a constelação de uma nova linguagem. O novo pensamento formal, na opinião de Heloísa Buarque de Hollanda e Marcos Gonçalves, “ganha evidência, ao lado de uma valorização de temáticas vinculadas ao universo urbano: as mitologias de classe média conservadora, a TV, o outdoor, o futebol, a violência etc., ou ainda certas questões ligadas ao imaginário de contestação da juventude em emergência na Europa e nos EUA”.
Cabe destacar outro fator importante no espaço de discussão do Tropicalismo: a utilização da tecnologia industrial mais moderna em toda a sua produção. O mito do Brasil primitivo, da cultura de raiz, do sambista pobre e desdentado parecia ser durante certo tempo o foco de resistência da pureza cultural. Não se podia combinar bateria e conjunto de samba, guitarras elétricas e passionalismo romântico, universo e aldeia. A cultura brasileira parecia ser uma frágil criatura, atacada constantemente pelas “ideologias exóticas” (comunismo ou rock-and-roll), visão tão ao gosto da esquerda redentora quanto da direita eu-te-amo-meu-brasil. O toque vanguardista das roupas, da figura do artista no palco e fora dele, das letras das músicas, da harmonia e dos arranjos criava condições para a dissonância, para que Caetano superasse as dualidades e polaridades estéticas e ideológicas através da aproximação de todas as práticas.
“VIVA VAIA”, imagem concreta de uma postura, rompe a passividade e instaura as mais variadas possibilidades polifônicas, negando o privilégio da voz e da música como únicos estruturadores sonoros. Viva o corpo, objeto modificador da noção de que na música o importante é ouvir; transformador de gestos em dança, cinética revolução. Viva o brilho e as cores das roupas, seu corte inclusive, pois elas são significantes superficialmente dispostos como tal. Assim, a posição vanguardista de Caetano é construída.
O Superastro, no dizer de Silviano Santiago, traz à mão todos os recursos e põe na língua da terceira pessoa o veneno do verbo encantado. Mistura arte a vida, palco e rua, baião e rock, Peninha e Lennon, Santo Amaro e Terra. Seu corpo dança outros movimentos. Sua boca articula outras palavras. “Quem sou eu? Sou o “Rei da Vela”, de Oswald de Andrade, montado pelo Grupo Oficina. Sou brasileiro, sou casado e sou solteiro, sou baiano e estrangeiro. Adoro meu pai, minha mãe e meus irmãos, mas não tenho família. Eu sou Caetano Veloso. Meu coração é do tamanho de um trem.”
ALEGRIA, ALEGRIA Caetano pisa definitivamente no palco da cultura brasileira com a explosão de Alegria, alegria, canção composta e interpretada por ele no 3º Festival de Música Popular Brasileira, em 1967. Acompanhado pelo conjunto argentino de rock Beat Boys, Caetano afirma com vontade e potência o que mais tarde viria a se tornar uma das mais significativas contribuições da Tropicália para a formação da sensibilidade brasileira daquele momento – a alegria. A arte a serviço da vida, reafirmando o desejo da invenção de novos modos de lidar com a dor, o sofrimento, a opressão do silêncio imposto pela ditadura militar. A alegria como lugar do sim, da luta e não do luto. Por que não?
O antropófago tropicalista opera através do seu corpo e, particularmente, pela sua voz, a devoração e assimilação de comportamentos estéticos e políticos em boa parte opostos a uma visão hegemônica de cultura brasileira defendida por segmentos da esquerda intelectual, como já foi dito.
Sua voz funciona como o lugar de passagem e permanência da Bossa Nova, e da tradicional família musical brasileira, para o Tropicalismo – do intimismo ao excesso, da introspecção à espetacularização, do banquinho e violão ao concerto barroco das justaposições. A voz em Caetano sai da boca de um canibal tecnizado, doce bárbaro que devolve ao exterior tudo o que foi devorado pelo ouvido que internalizou a “contribuição milionária de todos os erros”, como já afirmou Oswald de Andrade.
Em 1997, Caetano Veloso lança no mercado cultural dois produtos distintos, mas articulados entre si – o Cd Livro e o livro Verdade tropical. O livro é um extenso relato de mais de 500 páginas sobre o Tropicalismo, a cultura brasileira nos últimos 30 anos, sua transformação de jovem rebelde contracultural em um caballero de fina estampa. O livro não pretendeu ser um dos inúmeros relatos em decorrência da comemoração dos 30 anos do movimento tropicalista. Pretendeu, sim, ser o relato, o grande relato, o megarrelato a “verdade tropical”, recheado de referências intelectuais e acadêmicas, resgate-exaltação da memória coletiva de um movimento e da memória autobiográfica do sujeito-ator. Caetano assume o seu mais novo papel, o de membro efetivo da genealogia dos intérpretes do Brasil.
Afirma Caetano: “Do fundo escuro do coração solar do hemisfério sul, de dentro da mistura de raças que não assegura nem degradação nem utopia genética, das entranhas imundas (e, no entanto, saneadoras) da internacionalizante indústria do entretenimento, da ilha Brasil pairando eternamente a meio milímetro do chão real da América, do centro do nevoeiro da língua portuguesa saem estas palavras que, embora se saibam de fato despretensiosas, são de testemunho e interrogação sobre o sentido das relações entre grupos humanos, os indivíduos e as formas artísticas, e também das transações comerciais e das forças políticas, em suma, sobre o gosto da vida neste final de século”.
Em um outro momento do livro Verdade tropical, ele afirma: “A ideia do canibalismo cultural servia-nos aos tropicalistas como uma luva. Estávamos “comendo” os Beatles e Jimmy Hendrix. Nossas argumentações contra a atitude defensiva dos nacionalistas encontravam aqui uma formulação sucinta e exaustiva. Claro que passamos a aplicá-la com largueza e intensidade, mas não sem cuidado, e eu procurei, a cada passo, repensar os termos em que a adotamos. Procurei também e procuro agora relê-la nos termos originais tendo em mente as obras em que ela foi concebida para defender, no contexto em que tal poesia e tal poética surgiram. Nunca perdemos de vista, nem eu nem Gil, as diferenças entre as experiências modernistas dos anos 20 e nossos embates televisivos e fotomecânicos dos anos 60”.
Na dobra de um projeto estético balizado pela noção continuada de uma “linha evolutiva” da música popular brasileira, Caetano monumentaliza a sua memória individual, encenando a fala do novíssimo historiador da vida cultural nos anos 50, 60 e parte dos 70 de um lado (o livro Verdade tropical), e na outra margem, reexperimentando formatações e conceitos musicais típicos das vanguardas históricas em suas novas e extraordinárias composições (o CD Livro). Um livro que canoniza o Tropicalismo como última expressão de um projeto cultural coletivizado, mais de 500 páginas recheadas de citações de um mundo letrado, personagens, filmes, peças já dispostas na estante da alta cultura. Outro “Livro” que parte de Castro Alves para o pastiche dodecafônico de Doideca, presta tributo ao objeto livros, caindo nos braços de João Gilberto, a única voz, segundo ele, melhor que o silêncio. Ambos são exercícios de sedução da memória inventiva e afetiva do velho homem sábio, canibal e griot da tradição cultural de nosso tempo.
Caravana a Minas
Mariana e Ouro Preto celebram a antropofagia com dois eventos capitaneados pela poeta e música Beatriz Azevedo, que lança o livro Antropofagia – Palimpsesto selvagem. Em ambos, haverá debate sobre o tema com a filósofa e escritora Marcia Tiburi, o pesquisador de música brasileira e de poesia contemporânea Júlio Diniz, autor do texto publicado no Pensar, e o jurista Rubens Casara. Em seguida, Beatriz Azevedo e o diretor José Celso Martinez Correa farão leitura dramática do Manifesto antropófago, escrito por Oswald de Andrade, em 1928. Em Mariana, o projeto será amanhã, às 19h, no Teatro Sesi (Rua Frei Durão, 22). Em Ouro Preto, será no Teatro Municipal Casa da Ópera (Rua Brigadeiro Musqueira, 104). Os dois eventos são gratuitos, com distribuição antecipada de ingressos e sujeitos à lotação da casa.
*Júlio Diniz é professor da PUC-RJ, pesquisador de música e poesia