No livro As reputações, o autor trata de quebrar esta castanha. Não sem consequências.
Com nobreza na narrativa, eventualmente até remetendo ao consagrado compatriota Gabriel García Márquez, Vásquez explora a todo o tempo os limites e sua relação direta com a vida das pessoas: a partir da perspectiva da autonomia na criação artística, do pêndulo da censura, da bipolaridade da fama, dos julgamentos públicos e privados. E, fundamentalmente, da memória – apresentada na obra como um cadáver insepulto tanto para Mallarino quanto para a personagem Samanta Leal, assombrados por um obscuro episódio em que abuso sexual, desconstrução do caráter, morte e culpa formam um coquetel perturbador.
O pano de fundo é uma Colômbia contemporânea, que exibe todas as suas fraturas no campo da democracia. Como observa um dos personagens, um país em que “o esquecimento é a única coisa democrática”. Com suas caricaturas, que descreve como “um ferrão recheado de mel”, Mallarino terá o poder de fustigar as oligarquias locais. Ganha reconhecimento – embora o fato de não ter notoriedade e ser um rosto comum às ruas o incomode – e faz também desafetos e incompreendidos.
É exatamente um desses incompreendidos, presente ironicamente numa de suas charges, que entrará em sua vida como um fantasma. Maldita a hora em que o recebeu. Maldito o momento em que permitiu adentrar sua casa e incendiar-lhe para sempre o braseiro da dúvida. O que de fato ocorreu naquela noite? Vásquez, reconhecido há pouco pelo Prêmio Literário Casa da América Latina, também autor dos romances Os informantes, História secreta de Costaguana e O ruído das coisas ao cair, desfia esse novelo com maestria.
Ainda que a escolha do título seja pobre, este As reputações levou um escritor como Mario Vargas Llosa a apontar o autor como uma das vozes mais originais da nova literatura latino-americana. Não há exagero. Vásquez tem mesmo estilo, esmero criativo e peculiar capacidade de construção de cenários. Melhor do que isso, capacidade de tratar do que parece intangível, como o sobrevoo em meio aos fragmentos da memória e às armadilhas na tentação de reordenar o passado.
Faz lembrar a maldita sensação de um pintor cujo quadro, concluído, se ergue sempre inacabado à sua frente – como se houvesse a mágica de reinventar o que já foi vivido. Miragem? Talvez não para a arte.
TRECHO
A pergunta que brota a partir daí é: o que fazer das revelações quando se expõe o interior como um cristal irremediavelmente partido e com formas que não eram exatamente as esperadas?.