Entrevista por Jeremy Hance
Por que a enciclopédia é importante?
A enciclopédia marca a primeira vez que xamãs de uma tribo da Amazônia criaram uma transcrição total e completa de seu conhecimento medicinal, escrita em sua própria língua e com suas palavras.
Por que é agora o momento de se registrar essa informação?
O conhecimento dos matsés e a sabedoria acumulada por gerações estava perto de desaparecer. Felizmente, restavam alguns poucos matsés mais velhos, que ainda perservavam o conhecimento ancestral, já que o contato com o mundo exterior só ocorreu na última metade do século passado. Os curandeiros eram adultos na época do contato inicial e já haviam dominado suas habilidades antes de que missionários e funcionários do governo lhes dissessem que elas não eram úteis. No momento em que o projeto começou, nenhum dos xamãs mais velhos tinha jovens matsés interessados em aprender com eles. Um dos mais renomados e antigos curandeiros matsés morreu antes de seu conhecimento ser transmitido, então o momento era esse. A Acaté e a liderança matsés decidiram priorizar a enciclopédia antes de perder mais anciãos, com seus conhecimentos ancestrais. O projeto não tratava de salvar uma dança tradicional ou vestuário, mas da saúde deles e a das futuras gerações. A aposta não podia ser maior.
Como é a enciclopédia?
Depois de dois anos de intenso trabalho por parte dos matsés, a enciclopédia agora inclui capítulos escritos por cinco mestres curandeiros e tem mais de 500 páginas.
Como você espera que essa enciclopédia possa ajudar os esforços de conservação?
Acreditamos que empoderar os povos indígenas seja a abordagem mais eficaz e duradoura para a conservação da floresta tropical. Não é por acaso que as extensões restantes intactas da floresta tropical na região neotropical estão sobrepostas às áreas habitadas por indígenas. Os povos tribais compreendem e valorizam a floresta porque são dependentes dela. Essa relação vai além de uma dependência utilitária, há uma ligação espiritual com a floresta, um senso de interconectividade que é difícil de se compreender por meio da mentalidade ocidental compartimentalizada – por mais que seja, no entanto, real. Muitas das graves ameaças ambientais em áreas indígenas remotas de que você ouve falar no noticiário – petróleo, madeira, mineração e afins – são indústrias externas que oportunisticamente se aproveitam da enfraquecida coesão social interna dos povos indígenas de contato recente, de seus recursos limitados e da crescente dependência do mundo exterior. O tema unificador das três áreas programáticas da Acaté – economia sustentável, medicina tradicional e agroecologia – é a autossuficiência. A Acaté não predetermina estas três prioridades de conservação; elas foram definidas em discussão com os anciãos matsés que sabem que a melhor maneira de proteger sua cultura e terras é por meio de uma posição de força e independência.
A enciclopédia foi escrita apenas na língua dos matsés como proteção contra o roubo do conhecimento indígena.
Infelizmente, a história está cheia de exemplos de roubo dos povos indígenas. Particularmente para os matsés, a preocupação é bem real. As secreções da pele da rã kambo (Phyllomedusa bicolor) são usadas pelos matsés em seus rituais de caça. As secreções, ricas em peptídeos (pequenas proteínas) bioativos, são administradas diretamente no organismo em cortes frescos ou queimaduras. Quase imediatamente, as toxinas induzem intensas e autonômicas respostas cardiovasculares que levam a um estado alterado de consciência e acuidade sensorial muito maior. Depois de se conhecer o uso das secreções pelos matsés, pesquisas de laboratório sobre as secreções da rã kambo revelaram um complexo coquetel de peptídeos com potentes propriedades vasoativas, narcóticas e antimicrobianas. Várias empresas farmacêuticas e universidades registraram patentes dos peptídeos sem reconhecimento ou benefício aos povos indígenas.
* Texto publicado originalmente por Jeremy Hance no Mongabay. A íntegra pode ser acessada em https://news.mongabay.com/2015/06/amazon-tribe-creates-500-page-traditional-medicine-encyclopedia/.