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Sem saída

Fernando Bonassi entrelaça os sofrimentos pessoais e sociais do brasileiro em novo romance

Livro 'Luxúria' retrato da tragédia contemporânea da classe média nacional

Estado de Minas
João Marcondes (texto e fotos)
Especial para o EM
 
- Foto: João Marcondes São Paulo – Um menino percorre bairros periféricos de São Paulo munido de uma marreta. Ele não está sozinho. Um tio o acompanha. Um operário, encanador nas horas vagas. As casas são feias, muros carcomidos, sem acabamento. Nem parecem lares, com as devidas fachadas. É mais como se fossem o fundo de um terreno. Tudo degradado, inóspito.
O garoto tem apenas 12 anos, mas toma a dianteira. Bate nas portas. “Oi, tá precisando de encanador? Tem uma pia, um banheiro entupido?”. Muitas vezes o serviço é requisitado por aqueles pobres. Ele entra com o tio e começa a destruição. Marreta, marreta. Faz paredes desmoronarem. Recebem um adiantamento pelo serviço, geralmente a metade da grana. Vão embora, para completar o serviço mais tarde, na outra semana.

Não retornam. Nunca mais. Nas primeiras vezes, o menino fica estupefato. “Mas não vamos voltar?” Ao que o tio responde: “Nada, a grana já tá no bolso”.

O menino cresceu, sobreviveu. Tem nome e sobrenome. De escritor. Fernando Bonassi, 52 anos, uma das penas mais furiosas de sua geração, autor de Passaporte e Subúrbio, entre mais de duas dezenas de publicações.  A editora Record acaba de lançar o novo romance de Bonassi, o soberbo e impactante Luxúria, retrato atual de um país vil e sem esperanças. O Brasil.

“Não acredito em literatura feliz, isso não existe. Não acredito sequer em felicidade, no máximo você faz um ajuste. Enquanto você está bem aqui, tem um cara cheio de ódio lá embaixo”, diz o paulistano ao Estado de Minas, do alto do 13º andar de um espaçoso apartamento no nobre bairro de Higienópolis, em São Paulo. “Lá embaixo” ouve-se apenas o barulho constante, durante toda a entrevista, de uma tonitruante britadeira, trilha sonora full time da capital paulista. Para dizer a verdade, o barulho sequer incomoda, mal é percebido.

Bonassi fez o ajuste. É um homem de modos gentis, oferece café e dá bom-dia às visitas, seja o repórter, seja o técnico de TV a cabo. É casado com uma atriz de teatro há 18 anos e tem duas filhas pequenas adoráveis. É um dos bem pagos profissionais da escrita no Brasil, graças à sua habilidade com roteiros. É feliz (feliz?). Mas o demônio está sempre à espreita, como no livro Notas do subterrâneo, de  Fiódor Dostoiévski, que ele saca para o repórter, abre a primeira página e lê, logo na abertura: “Sou um homem doente... Um homem mau. Um homem desagradável.” Bonassi aperta os olhos sob os aros grossos. “Tá vendo? Tá aqui. É isso!”.

Seu primeiro emprego “formal” foi aos 14 anos, em fábrica de bolsas femininas de quinta categoria. Ele ficava na ponta de uma máquina extrusora, que cuspia as tais bolsas, sanduíches de espuma barata, ainda quentes. Em pé, ele recolhia o produto e fazia aparas, corrigia defeitos. No primeiro dia, depois de uma hora, sentiu dor nas pernas e nos glúteos. Chegou a uma conclusão, jamais esquecida: “O trabalho é horrível”. Ou ainda: “O trabalho só é bom para quem não trabalha, o cara que fica lá em cima no ar-condicionado”.

Ainda na adolescência, as coisas não iam bem em casa. O pai, um eletrotécnico de formação, que consertava geladeiras, tinha mania de grandeza. Abria uma empresa atrás da outra, depois desistia, fugia e deixava dívidas. “Era um estelionatário”, conta Bonassi. “Vi minha mãe ser ameaçada por caras armados, três, quatro vezes, por causa dessas dívidas”, acrescenta. A cena está em um dos seus livros, O pequeno fascista.

A casa da família na Vila Alpina também era assombrada por um tio, pai de santo, que fazia despachos de umbanda, tudo com muita cachaça, fumo e velas: “Eu chegava para tomar banho e via aquela procissão de gente f..., pessoas deformadas, sem braço, sem perna”. lembra ele. O tio morreu de cirrose.

Convivendo com um inferno digno do futuro mestre Dostoiévski, o menino Fernando viu em uma garota linda, mais alta que ele, sensação do colégio, a solução para seus problemas. Estava apaixonado, mas não conseguia sequer se comunicar com a princesa. Obsessivo, quase louco, resolveu escrever carta em que listava os motivos pelos quais ela deveria gostar dele. Basicamente, descrevia o quanto sua vida era ferrada e infeliz. Noite adentro. Terminada a tarefa, desistiu de entregar a carta. “Era ilusão, não era amor”. Mas estava curado. A chave era essa: escrever.

Chegou a fazer o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (Senai) e trabalhar em uma fábrica de automóveis, mas conseguiu escapar para um oásis, a Universidade de São Paulo (USP), que lhe deu tudo. Tornou-se um intelectual, “a melhor coisa que você pode ser no Brasil”. Fez o curso de cinema. Mas a fábrica é um ímã. Começou a redigir roteiros institucionais para indústria automobilística. Coisas do tipo “Como montar um carburador” e “Como instalar um vidro colado”.

Ali, adquiriu a destreza para item essencial à escrita: a capacidade de escrever diálogos coloquiais. Em vez de filmes robotizados, colocava os operários em um ambiente descontraído, na periferia, onde deitavam lições de maquinaria enquanto piscavam para garotas suburbanas a passear do outro lado da rua.

Há sete anos, Bonassi é roteirista contratado, ao lado do “sócio” Marçal Aquino, da Rede Globo. Criou seriados como Força-tarefa e O caçador. Para o teatro, escreveu peças como Apocalipse 1,11 e Arena conta Danton, sucessos de crítica. No cinema, ganhou notoriedade na cena independente com o arrebatador Os matadores, de 1997 (parceria com Marçal, Beto Brant e Victor Navas), e participou dos roteiros de Carandiru; Cazuza, o tempo não para; e Lula, o filho do Brasil. “Quando escrevi o roteiro de Lula..., ele ainda era o cara!”, comenta Bonassi. “Achei que ia ganhar muito dinheiro, mas foi um fracasso. O filme é realmente muito ruim.” Pano rápido.

"O dinheiro acabou, o casamento também"

No início de Luxúria, o aviso: “Baseado em pessoas e acontecimentos reais, lamentavelmente”. O mote inicial foi tirado de fato ocorrido com seu irmão, funcionário público. O sujeito vivia um casamento de oito anos já em decomposição quando resolveu construir uma piscina no quintal de casa. “Quanto mais ele cavava, mais o casamento ia pro buraco. Faltando dois meses para concluir a obra, a mulher quis construir uma cachoeira. Achei do cacete! O dinheiro acabou e o casamento também”, lembra o escritor.

Em Luxúria, um operário ferramenteiro, pai de família, dono de imóvel na periferia no “Bairro Novo”, diz como bravata ao dentista que pretende construir uma piscina. A esposa se empolga e ele não tem como voltar atrás. Consegue um financiamento fraudulento no governo, descrito como “reforma hidráulica”. Daí em diante, sua vida pacata torna-se alvo de todo tipo de inveja e dívidas. Na fábrica, no bairro, o cotidiano começa a se desintegrar tal qual o chão podre do bairro popular superpopuloso onde vive.

O groove do romance é ditado por uma narrativa paralela, diálogos e pensamentos imaginários em itálico. Sempre que a personagem diz “Bom-dia”, na outra linha está dizendo “Vai se foder”. Esse é o espírito.

“Quando comecei o livro, há três anos, o país ainda vivia um certo otimismo. A Dilma ainda era a Dilma bolada, fodona. Mas, infelizmente, o romance se tornou muito atual.” O livro descreve a saga trágica da classe média, ou classe C ascendente, que se materializou no país. Movida a consumo de carros populares baratos, poluição, ansiolíticos distribuídos nos postos de saúde, engarrafamentos e nulidade de valores humanísticos.

Em uma literatura brasileira contemporânea em que o “eu” tomou conta de quase todas as obras nos anos recentes, Bonassi acredita que sua obra vai em outra direção, no sentido de atuar fora do campo consciente da personagem. “É o sofrimento pessoal e o sofrimento social.”

O livro é de um pessimismo pungente, o que fatalmente levará o leitor se questionar “mas existe saída? Onde?”. De pronto, Bonassi responde: “Foda-se! E isso é importantíssimo. Pois o limite máximo da obra de arte é gerar o incômodo. Na verdade, não há solução”.

Jogo rápido com Fernando Bonassi

A marca da ditadura


“Nasci em 62. Como a música da banda Ira!, ‘eu não vi Kennedy morrer. Eu não conheci Martin Luther King’.  A ditadura foi muito marcante para a minha geração, algo que não se esquece. Com o fim dela, veio a mecanização e a perda da inocência. O que não veio com a atualização industrial foi a atualização cultural, isso nunca aconteceu. E o resultado é o que está aí.


Frustrações em série

“Tivemos várias frustrações. Queríamos o voto direto, mas o que veio foi o colégio eleitoral. Elegemos Tancredo e levamos o Sarney. Na primeira eleição de verdade, o Collor e a velha oligarquia. Depois FHC se aliando ao PFL e Lula e Dilma, ao PMDB. Diante de um quadro desse, o sujeito só tem três opções: torna-se assassino, revolucionário ou pessimista. Eu fiquei com a última.”


Dignidade alienada

“O governo de esquerda não deu certo por alienar sua dignidade para governar. Isso é uma prática brasileira, de que você tem de se aliar a quem tem ideias diferentes das suas. Isso é um mentira. Não precisa ser assim. A falha trágica da esquerda foi não transformar uma sociedade de consumo em uma sociedade de cidadãos. A direita nunca tentou, em quase 500 anos.”


Desprezo pela ascensão

“O que se vê hoje são secretários de estado defendendo o ensino técnico, o Senai. Quero saber se eles vão botar os filhos no Senai para apertar parafuso. É um projeto da elite. Um desprezo pela ascensão social. Tenta apenas manter você no lugar. A defesa do ensino técnico significa voltar à escravidão. A partir daqui, você não aprende mais, serão só os brancos, os engenheiros. Tampouco a Justiça é uma esperança. No Brasil, só se prende gente de esquerda, todos com merecimento. Mas quem é da elite não vai pra cadeia. O Collor foi preso? O Maluf?


Medíocres no poder

“Os medíocres estão no poder. E isso não vai mudar. Só tende a piorar. O ruim é que, quando a esquerda erra, fica demonizada a solidariedade. Ela desaparece quando há uma onda liberal. O cara está na pior porque merece, é o que dizem. Mesmo que ele tenha 70 vezes mais chances de morrer por morar num bairro a 10 quilômetros daqui, na periferia de São Paulo.”


A salvação na literatura

“A única coisa que importa é a poesia, e isso faço na literatura, onde tenho liberdade. Escrever me salvou, sou uma pessoa de índole ruim. Se não escrevesse, trataria mal minha mulher, minhas filhas, todo mundo. Mas o que me possibilita viver mesmo são os roteiros para cinema e TV. Não é por arte, é por dinheiro mesmo.”


Ousadias em séries

“Atualmente, o mais gostoso que há na TV é escrever seriados. Na indústria do entretenimento, a ousadia, que já foi do cinema, agora está nas séries. Já tenho uma nova pronta para a Globo, que estreará no ano que vem. Mistura gêneros, uma das tendências de hoje. Será ficção científica, uma novidade, com policial. O nome é Supermax!.”


Rotina de trabalho

‘‘Trabalho todo dia de 9h às 6h da tarde. Vou na casa do Marçal (Aquino) na Vila Mariana, escrevemos episódios, além de analisarmos tudo que chega na emissora, em um board que conta também com caras como Guel Arraes e Bráulio Mantovani.’’


O “pagamento” do político

“Estou trabalhando num conto que deverá virar roteiro de longa-metragem. Nele, falo da minha experiência como assessor de político, uma função que já exerci no passado. Numa viagem dessas, uma prostituta com cara de acabada, boca suja, bate na minha porta de madrugada e diz que o tal político a tinha mandado lá para mim. Naquele estado, a mandei dormir. No outro dia, o sujeito me pergunta, logo no café:. ‘E aí, como foi a noite? Foi ótima, deputado!’. Quero falar desse cara, do assessor, do cara que teve oportunidade de estudar e, quando chega lá, tem que entrar nesse jogo imundo. O que ele sente?”

Trecho do livro

"Nesta era de oportunidades e desafios do crescimento, de desenvolvimento e endividamento, as cartas disparadas contra o homem, o cidadão de que trata este relato, lhe dizem de diversas maneiras, à vista ou a prazo, que ele pode beber com moderação, o que ele precisa comer com prazer, mas devagar, para não se lambuzar; o que ele deve mastigar bem para não engolir; que deve morar melhor do que antes e do que os outros, ter moral elevado, inveja construtiva, um defeito verdadeiro, algo de que se orgulhe e uma religião reconhecida pelo Estado. E há de receber material didático sobre o tipo de emoção mais adequado a sentir em determinada situação. Cheirar bom perfume, se possível,
é claro, e comprar qualquer coisa para viver em paz significa sucesso de vendas.

Eu sinto um gosto estranho, contraí financiamentos.

São tantas, tão boas e tão fartas as ofertas (ora legais, ora ilegais) deste gênero na minúscula caixinha de correio da família, no Bairro Novo, que meia dúzia de envelopes caiu
no chão.

Vou instalar uma (piscina) bem maior, sem dúvida, para acondicionar melhor as oportunidades que todos temos agora!"