Escritor, antropólogo, professor universitário e ex-coordenador de Segurança, Justiça e Cidadania do Rio de Janeiro, Luiz Eduardo Soares é do ramo: entende como poucos da violência incorporada ao DNA do “brasileiro cordial”. Essa brutalidade é tema de Rio de Janeiro – Histórias de vida e morte, livro que ele acaba de lançar. Coautor de Elite da tropa – fonte de inspiração do filme Tropa de elite –, o ex-secretário nacional de Segurança mostra que violência não se resume a corpos de pobres executados nas favelas ou de gente da Zona Sul vítima de assalto ou bala perdida. Ela está na corrupção, nos bastidores da política, nos vícios do sistema de gestão da segurança pública, herdeiro do aparato repressivo montado pela ditadura militar. A Constituição de 1988 redemocratizou o país, mas a “filosofia” dos DOI-Codis, com suas máquinas de tortura, continua comandando camburões, delegacias e programas populares de TV.
Histórias de vida e morte... mescla memórias, crônica, desabafo e um quê de ficção. Luiz Eduardo é o protagonista – e em vários papéis. Seja como garoto fluminense recém-chegado a Laranjeiras, jovem esquerdista que lançou um prato na cabeça do pai (sem acertar) ao ouvir que tortura é só propaganda de comunista, homem público “tratorado” pelos poderosos da vez ou obstinado intelectual em busca de novos paradigmas para o sistema de segurança pública brasileiro.
Candidato a vice-governador na chapa de Benedita da Silva em 2002, o autor revela suas trombadas com o PT ao tentar impedir acordos com bicheiros e “operadores” da corrupção. Primeiro secretário nacional de Segurança do governo Lula, tentou impedir negociatas na Polícia Rodoviária Federal. Logo depois, foi derrubado por um dossiê apócrifo elaborado no próprio Ministério da Justiça e repassado a jornalistas. Tachado de “gambá” por José Genoino, presidente da legenda, trombou também com o todo-poderoso José Dirceu.
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Dois capítulos de seu livro mostram a tentativa frustrada de chefes do tráfico carioca em abandonar o crime, abortadas por “sócios” – da polícia.! Temos também a saga de um bacana da Zona Sul condenado em Londres por traficar duas toneladas de drogas. Penou em prisões inglesas e, na penitenciária de Bangu, arrependeu-se, teve de pagar propina por uma cela melhor no inferno carioca. Teve melhor sorte do que o “chefão” do morro, o arrependido Lulu, que havia encontrado outra vida fora do Rio, mas foi obrigado a voltar por comparsas policiais, que lucravam com sua expertise no tráfico. Morreu executado a sangue frio por gente do Bope – o temido Batalhão de Operações Especiais do Rio –, de mãos amarradas e já rendido.
Luiz Eduardo sobe o morro para conversar com traficantes interessados em seu projeto de anistia para quem se comprometer a deixar a vida do crime. Diante de túneis obstruídos por favelados, negocia com moradores revoltados com a execução de jovens da comunidade por agentes da lei. Questiona a politicagem marqueteira em torno de unidades de polícia pacificadoras, as UPPs, instaladas para garantir um pouco de sossego aos cartões-postais cariocas – e também votos a seus fiadores. O autor explica como a “violência tecnicamente aplicada” se tornou política de Estado. Primeiro, para castigar escravos; posteriormente, para reprimir pobres, negros e favelados; mais recentemente, gente de classe média que lutou contra a ditadura militar em organizações de esquerda.
TORTURA É tocante o relato de Luiz sobre o sofrimento e a coragem da historiadora pernambucana e militante de esquerda Dulce Pandolfi, presa em 1970 e trucidada no subsolo do quartel do Exército na Tijuca, a chamada sucursal do inferno. No dia em que entrevistou a amiga, ele se viu em meio a manifestantes e black blocs na maior passeata a que o Rio de Janeiro assistiu neste século 21. “A juventude ali na avenida não tinha a mínima ideia do que significara para minha geração a reconquista da democracia”, constatou.
É fato: a reconquista democrática não encampou direitos básicos previstos na Constituição Cidadã de 1988. Se a sociedade se mobiliza em comissões da verdade para punir crimes da ditadura contra militantes da esquerda, não se vê o mesmo esforço institucional para combater linchamentos, chacinas de jovens pretos por policiais ou mesmo o racismo e o apartheid social.
Em seu novo livro, o escritor e antropólogo bota abaixo o mito carioca da Cidade Maravilhosa. Cartão-postal? O inferno é aqui mesmo, alerta Luiz Eduardo. Vale lembrar: o Fórum Brasileiro de Segurança Pública registrou que, apenas no ano passado, 58.559 pessoas perderam a vida no país, vítimas de homicídios dolosos, lesões corporais seguidas de morte, latrocínios e ações policiais. Uma morte a cada nove minutos, em média. É como se fossem executados, em 12 meses, todos os moradores da cidade sul-mineira de Três Pontas.
Em 2014, policiais civis e militares brasileiros mataram 3.022 cidadãos. São Paulo e Rio de Janeiro lideram esse ranking, são responsáveis pela metade dos óbitos, mas chama a atenção o número de casos registrados no Amapá, Alagoas, Pará e Sergipe. O Rio das histórias de Luiz Eduardo leva a fama, mas sejamos justos: ele é apenas metáfora da “civilização encruzilhada” deste nosso violentíssimo Brasil.
RIO DE JANEIRO: HISTÓRIAS DE VIDA E MORTE
• De Luiz Eduardo Soares
• Companhia das Letras
• 253 páginas
• R$ 39,90