Histórias de vida e morte... mescla memórias, crônica, desabafo e um quê de ficção. Luiz Eduardo é o protagonista – e em vários papéis. Seja como garoto fluminense recém-chegado a Laranjeiras, jovem esquerdista que lançou um prato na cabeça do pai (sem acertar) ao ouvir que tortura é só propaganda de comunista, homem público “tratorado” pelos poderosos da vez ou obstinado intelectual em busca de novos paradigmas para o sistema de segurança pública brasileiro.
Candidato a vice-governador na chapa de Benedita da Silva em 2002, o autor revela suas trombadas com o PT ao tentar impedir acordos com bicheiros e “operadores” da corrupção. Primeiro secretário nacional de Segurança do governo Lula, tentou impedir negociatas na Polícia Rodoviária Federal. Logo depois, foi derrubado por um dossiê apócrifo elaborado no próprio Ministério da Justiça e repassado a jornalistas. Tachado de “gambá” por José Genoino, presidente da legenda, trombou também com o todo-poderoso José Dirceu.
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Luiz Eduardo sobe o morro para conversar com traficantes interessados em seu projeto de anistia para quem se comprometer a deixar a vida do crime. Diante de túneis obstruídos por favelados, negocia com moradores revoltados com a execução de jovens da comunidade por agentes da lei. Questiona a politicagem marqueteira em torno de unidades de polícia pacificadoras, as UPPs, instaladas para garantir um pouco de sossego aos cartões-postais cariocas – e também votos a seus fiadores. O autor explica como a “violência tecnicamente aplicada” se tornou política de Estado. Primeiro, para castigar escravos; posteriormente, para reprimir pobres, negros e favelados; mais recentemente, gente de classe média que lutou contra a ditadura militar em organizações de esquerda.
TORTURA É tocante o relato de Luiz sobre o sofrimento e a coragem da historiadora pernambucana e militante de esquerda Dulce Pandolfi, presa em 1970 e trucidada no subsolo do quartel do Exército na Tijuca, a chamada sucursal do inferno. No dia em que entrevistou a amiga, ele se viu em meio a manifestantes e black blocs na maior passeata a que o Rio de Janeiro assistiu neste século 21. “A juventude ali na avenida não tinha a mínima ideia do que significara para minha geração a reconquista da democracia”, constatou.
É fato: a reconquista democrática não encampou direitos básicos previstos na Constituição Cidadã de 1988. Se a sociedade se mobiliza em comissões da verdade para punir crimes da ditadura contra militantes da esquerda, não se vê o mesmo esforço institucional para combater linchamentos, chacinas de jovens pretos por policiais ou mesmo o racismo e o apartheid social.
Em seu novo livro, o escritor e antropólogo bota abaixo o mito carioca da Cidade Maravilhosa. Cartão-postal? O inferno é aqui mesmo, alerta Luiz Eduardo. Vale lembrar: o Fórum Brasileiro de Segurança Pública registrou que, apenas no ano passado, 58.559 pessoas perderam a vida no país, vítimas de homicídios dolosos, lesões corporais seguidas de morte, latrocínios e ações policiais. Uma morte a cada nove minutos, em média. É como se fossem executados, em 12 meses, todos os moradores da cidade sul-mineira de Três Pontas.
Em 2014, policiais civis e militares brasileiros mataram 3.022 cidadãos. São Paulo e Rio de Janeiro lideram esse ranking, são responsáveis pela metade dos óbitos, mas chama a atenção o número de casos registrados no Amapá, Alagoas, Pará e Sergipe. O Rio das histórias de Luiz Eduardo leva a fama, mas sejamos justos: ele é apenas metáfora da “civilização encruzilhada” deste nosso violentíssimo Brasil.
RIO DE JANEIRO: HISTÓRIAS DE VIDA E MORTE
• De Luiz Eduardo Soares
• Companhia das Letras
• 253 páginas
• R$ 39,90