Secretária da Cidadania e da Diversidade Cultural comemora lei que beneficia o Cultura Viva

Ivana Bentes aposta na articulação de expressões tradicionais com tecnologia e antecipa que autodeclaração vai fazer parte do conceito dos Pontos de Cultura

por Pablo Pires Fernandes 28/08/2015 00:13

Desde o ano passado, o programa Cultura Viva do Ministério da Cultura (MinC) se tornou lei, garantindo que os Pontos de Cultura, criados em 2004, tenham respaldo legal e passem a ser considerados parte da política de Estado. A criação dos Pontos de Cultura foi um marco para o setor, estabelecendo uma rede de produtores em todos os estados do país e fomentando pequenas e médias iniciativas.

 

A extensão do programa, agora lei, implicou na valorização de setores historicamente pouco, ou nada, apreciados pelo poder público. Nos últimos anos, as trocas no Ministério da Cultura deixaram o programa em segundo plano. Com a volta de Juca Ferreira ao ministério – ele era o número 2 na gestão de Gilberto Gil –, o Cultura Viva ganha novo fôlego. Para fazer uma avaliação do programa, conduzir os ajustes e impulsioná-lo na direção certa, o ministro convidou a professora e pesquisadora de comunicação Ivana Bentes.

Bernardo Guerreiro/Cobertura Colaborativa/MinC
''O Estado brasileiro não foi concebido para distribuir recursos na ponta. É uma espécie de corrida de obstáculos para se conseguir que um recurso chegue a um grupo que não seja de elite ou de classe média'', observa Ivana Bentes sobre simplificação da prestação de contas ao MinC (foto: Bernardo Guerreiro/Cobertura Colaborativa/MinC)
Com poucos meses à frente da Secretaria da Cidadania e da Diversidade Cultural (SCDC), Bentes garante que a lei “é uma conquista histórica para a cultura”. Entusiamada, ela explica que, agora, “o Estado brasileiro tem obrigação de apoiar, fomentar e estimular os Pontos de Cultura”. A secretária afirma que “a lei traz novidades bem importantes que eram reivindicações históricas dos Pontos de Cultura”.

Uma delas é a simplificação da prestação de contas. “O Estado brasileiro não foi concebido para distribuir recursos na ponta. É uma espécie de corrida de obstáculos para se conseguir que um recurso chegue a um grupo que não seja de elite ou de classe média”, declara.

 

Segundo ela, o aparato de prestação de contas é hiperburocratizado e deixou alguns Pontos de Cultura inadimplentes e com problemas jurídicos. “Você pode imaginar o que é um grupo indígena, quilombola, de terreiro de candomblé ou de cultura popular ter que entrar em um sistema como o Siconv (Sistema de Gestão de Convênios e Contratos de Repasse do Governo Federal – uma plataforma eletrônica)?”, questiona. A simplificação, argumenta, vai focar a realização do objeto para o qual o recurso foi proposto.

A principal mudança, porém, é a autodeclaração dos Pontos de Cultura, que será formalizada em 2 de outubro, quando está previsto o lançamento da plataforma na qual qualquer grupo, entidade, instituição que se entenda como produtor de cultura poderá se autodeclarar como tal. “Até hoje, para você se tornar um Ponto de Cultura, você tinha que ganhar um edital do MinC, o que implica em uma relação contratual com o Estado brasileiro”, detalha. O ministério ficará encarregado de certificar o Ponto de Cultura autodeclarado. “É uma espécie de reconhecimento”. O Cadastro Nacional dos Pontos de Cultura, nome técnico dado à ferramenta, pretende “concretizar esse reconhecimento.” Na conversa com o Pensar, a secretária defendeu que as novas propostas do MinC mudam o paradigma da política cultural no país.


O que a autodeclaração representa na política do MinC?
É uma revolução na forma de pensar política pública. A plataforma vai funcionar como reconexão com os Pontos de Cultura, com gestores culturais, com produtores locais. Essa ferramenta vai nos permitir fazer uma política que a gente chama de extensiva, vamos fazer política a partir de uma moeda simbólica, que esse reconhecimento do Ministério da Cultura de um determinado grupo se inclui como cultura relevante. Nos editais que lançamos agora, a gente quer mapear e cartografar essa produção cultural brasileira em todos os seus aspectos. Desde a produção comunitarista, que são os grupos mais tradicionais, até a cultura digital, de produtores que trabalham software livre. É um campo enorme, é um continente.

O MinC vai usar essa ferramenta também para orientar a própria política?
Orientar, sim, mas mais do que isso. É uma rede de economia que a gente está chamando de Economia Viva. A gente vai usar essa rede para os pontos passarem a trocar serviços, espaços e equipamentos entre eles. Os pontos vão poder se visualizar, fazer trocas. Com isso, a gente vai conseguir mapear serviços, produtos, estabelecer trocas de metodologias de formação, apresentações culturais. Estamos trabalhando com equipes de economia para que essa autodeclaração seja o início de uma etapa da Economia Viva. A autodeclaração é o início de uma série de políticas extensivas, da construção de uma economia de sustentabilidade para os Pontos de Cultura.

Como inserir esses grupos marginalizados em um circuito de mercado?
Desde que cheguei aqui, já participei de dois ou três eventos da cultura popular tradicional. O último foi na Chapada dos Veadeiros. E eles montam palco, eles têm apresentações incríveis, de grande sofisticação, de jongo, de carimbó, dos quilombolas, dos calungas, dos Arturos aí de Minas Gerais, coisas lindíssimas, que poderiam estar em qualquer grande evento do Brasil ou do mundo. E esses grupos não chegaram aos circuitos culturais, do CCBB, da Caixa, nos museus, no Oi Futuro, nos equipamentos da alta cultura. A gente quer dar visibilidade para esse outro circuito. Se um visitante chega hoje a Minas Gerais e diz: “Quero conhecer o circuito de congado”, ele não vai ver isso, ele vai ter que se virar. Vai encontrar, claro, mas não é um circuito. Eu adoraria que o circuito do congado existisse em Minas, dos quilombos mineiros. Isso tudo é economia, é sustentabilidade. Com a autodeterminação, queremos dar visibilidade a esse continente e mostrar que existe um nicho cultural, um nicho econômico, um nicho de mercado que pode ser trabalhado a partir de outros valores. É um programa que trabalha com a diversidade de linguagens, de base social, é uma capilaridade grande.

Os editais recentes privilegiam três áreas. Por quê?
A gente escolheu três campos estratégicos para os editais: o de mídia livre, a questão indígena e a questão que eu digo que é realmente uma novidade, a cultura de rede. É um edital que não tem nem tema, nem está marcado pela questão identitária, pode ser qualquer linguagem, qualquer público. É uma política bastante inovadora. Nós estamos induzindo o meio cultural a se organizar em rede, porque o objeto dela é uma metodologia, o objeto dela é uma forma, que é a forma rede porque os processos se tornam mais baratos, mais velozes. Em rede, você se torna um sujeito político e de pressão.

Existe reação de grupos que sempre estiveram contemplados com os editais do MinC?
Sempre tem alguma resistência, às vezes dentro do Estado, dentro dos próprios objetos constituídos. Por exemplo, alguns grupos de cultura tradicional. Às vezes, eles têm uma certa resistência. Como foram grupos que nunca tiveram atenção por parte do Estado e agora têm, eles começam a pensar: “Puxa, agora o recurso público vai ser rivalizado entre esses grupos e outros?”. Mas a gente está muito atento à produção cultural da periferia, da juventude que explodiu e não tem uma política específica. A gente quer pensar uma produção territorializada dentro dessas culturas vulneráveis, que têm uma produção incrível, exuberante, que produziu moda, linguagem, gíria. O cartão-postal do Brasil é a periferia.

E onde entram as culturas tradicionais e populares?
As apostas são a periferia e uma cultura popular digital. Essa articulação do tradicional com o digital, a partir dessas redes, a meu ver, é a próxima emergência no Brasil. São continentes que estão aí, invisíveis. Se eu fosse colocar minhas fichas na próxima emergência, depois da periferia, eu colocaria nessa conexão dessa diversidade cultural, com esse campo das linguagens, desses sujeitos políticos fortes como produtores de cultura que vão entrar no próprio foco da indústria da cultura. É um continente absurdo em termos de linguagens, de repertório, e que ainda não entrou na cultura das cidades. É uma confluência muito interessante.

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