Um grão de trigo, seu terceiro romance, escrito em 1967, finalmente ganhou tradução no Brasil e está sendo lançado pela Alfaguara. A narrativa se passa em uma vila no interior do Quênia, onde diferentes aspectos da cultura e da política se entrelaçam. A história de Mugo, tido como herói da rebelião contra a colônia pelos habitantes da vila, ocorre antes da independência do Quênia, em 1963.
Thiong'o esteve recentemente no Brasil para participar da Festa Literária de Paraty (Flip). Lá, foi lançado Sonhos em tempo de guerra (Biblioteca Azul), primeiro volume de sua trilogia de memórias. Ele gostou do país, mas afirma que “gostaria de ter visto uma maior visibilidade da cultura negra em todos os aspectos da vida brasileira”. Para não perder sua militância, completa: “Gostaria de ver laços econômicos, políticos e culturais mais estreitos entre o Brasil e a África. Em especial, gostaria de ver maior proximidade entre meu país, o Quênia, e o Brasil, particularmente por meio de artistas negros, escritores, cantores e dançarinos”.
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Sergio Vilas-Boas aborda a distância entre duas gerações em novo livroChristiane Tassis divulga trecho inédito de novo livro para o PensarMilton Hatoum compartilha com o Pensar íntegra do texto de abertura do FLI-BHApresentação icônica de Bob Dylan no Newport Festival completa 50 anosGuimarães Rosa acompanhou boiadeiros pelos sertões das Gerais em expedição de 1952Barack Obama consegue novo fôlego ao aprovar temas importantes 'Pensar' reúne textos que lidam com relação entre literatura e as matrizes e expressões afro-brasileirasMinha vida pessoal e a história do Quênia estão entrelaçadas. Logo antes de ir ao Brasil, estive em meu país para celebrar os 50 anos da primeira edição de 'Weep not child' (Não chores, menino), lançado em abril de 1964. Mas esse ano coincide com os 50 anos da independência do Quênia, que foi uma colônia britânica de 1895 a 1963. E, como em todas as colônias, terra e trabalho sempre estiveram no coração da política do país. Nas minhas memórias, Dreams in a time of war (Sonhos em tempos de guerra), falei sobre meu nascimento, em 1938, literalmente às vésperas da Segunda Guerra Mundial, na qual alguns de meus irmãos estiveram envolvidos do lado britânico, e depois a guerra de libertação, travada pelo Exército Terra e Liberdade do Quênia (KLFA, na sigla em inglês), também conhecido como Mau Mau. Essa guerra afetou todos. Eu cresci durante a guerra e tudo isso causou impacto na minha obra.
Na época da independência, os artistas e escritores se engajaram na busca de formas de expressão nacionais. Como o senhor vê hoje os ideais daquela época?
As aspirações básicas podem ser resumidas em uma frase: garantir sua riqueza, seu poder, sua cultura, sua mente. Era basicamente libertar sua economia, sua política e sua cultura da dominação estrangeira. Esses ideais foram expressos em canções, poesia, dança e teatro. E também em movimentos políticos. Mas a independência política não necessariamente trouxe um empoderamento econômico e cultural dos quenianos comuns. O fosso de riqueza e poder entre a classe média e as massas está se aprofundando e se alargando. Portanto, a luta por essas aspirações continua.
A decisão de mudar seu nome de batismo e de escrever em gikuyu afetou a aceitação de seu trabalho no exterior ou no próprio Quênia?
Meus livros em gikuyu traduzidos para o inglês são bem recebidos. O problema maior são as versões originais em gikuyu. As políticas do governo em relação às línguas africanas não têm sido muito positivas. Pessoas que podem ler e escrever em gikuyu têm diminuído por causa dessas políticas negativas. Menos leitores quer dizer menos venda e implica menos editores querendo investir em línguas africanas. É um ciclo vicioso. Mas não posso desistir.
Como foi a sua experiência com o teatro?
O teatro foi muito importante na minha vida. Ele afetou minha vida mais profundamente do que minha ficção ou minha teoria. O teatro tem uma natureza coletiva. O fato de todos os papéis, grandes ou pequenos, terem a mesma importância é um dos aspectos mais impressionantes do trabalho no teatro. Mas a minha perspectiva sempre foi o teatro baseado na comunidade. Nesse sentido, compartilho muito as concepções do teatro e da pedagogia do oprimido de Augusto Boal e Paulo Freire.
Como a experiência na prisão afetou seu trabalho?
Foi meu trabalho com o teatro no Centro Comunitário de Educação e Cultura Kamiriithu que me levou ao encarceramento na maior prisão de segurança máxima do Quênia, em 1977 e 1978. Nunca desisti. Na prisão, escrevi meu romance 'Devil on the cross' (Diabo na cruz), em gikuyu, em papel higiênico. Desde então, escrevo todas as minhas obras em gikuyu. A maior delas é 'Wizard of the crow' (Mago do corvo), de 2006.
Como o sr. vê a evolução política do Quênia desde a independência?
A independência em 1963 foi um marco histórico importante. Na era pós-colonial, passamos por períodos ruins, particularmente a ditadura Moi, de 1978 a 2003. Mas agora o Quênia está se recuperando disso e os espaços democráticos estão se ampliando.
Um grão de trigo apresenta uma relação complexa entre os personagens e a forma literária. Como chegou a isso?
Um grão de trigo é meu terceiro romance depois de The river between (O rio entre) e Weep not child (Não chores, menino). Escrevi em inglês. Mas tem razão. A estrutura da trama nos meus primeiros dois romances era simples, linear. Mas, em Um grão de trigo a trama se desdobra por meio de diferentes perspectivas dos distintos personagens em diversos tempos e lugares.
UM GRÃO DE TRIGO
De Ngugi wa Thiong'o
Tradução de Roberto Grey
Alfaguara, 304 páginas
R$ 49,90