O ato, nas palavras do jornalista e escritor Mikal Gilmore no livro 'Ponto final – crônicas sobre os anos 1960 e suas desilusões', elevou o rock à condição de meio multiforme. “Através do qual se poderia zombar da política e dos valores sociais, e até contribuir para redimir (ou pelo menos afrontar) a sociedade”, escreveu no ensaio 'Bob Dylan: a antena do poeta do rock'. “Dylan escandalizou o movimento folk que o exaltara por seus hinos sociais ao adotar a guitarra elétrica e passar a tocar um tipo de música rascante que, na prática, liquidava a percepção do folk como meio de expressão fundamental da juventude americana. No processo, conferiu ao rock maior alcance e expressividade mais profunda”, avalia Gilmore.
É preciso retomar o contexto para dimensionar a importância da atitude de Dylan. O festival de música folk de Newport começou em 1959 e, já em 1963, uma de suas maiores estrelas, Bob Dylan, subia ao palco ladeado pela singela Joan Baez. Dylan se transformava em astro das canções de protesto, expressão que ele, aliás, sempre repudiou. O festival reunia gente do campo e também da cidade, que admirava o som da música de voz e violão, versando sobre dilemas e agruras da vida rural e urbana da América. Pessoas que vestiam a música, assim como usavam o suspensório ou o chapéu que sombreava seus pescoços vermelhos.
O jornalista Robert Shelton (1926-1995) estava lá como crítico de música do The New York Times e descreve a cena na alentada biografia 'No direction home – a vida e a música de Bob Dylan': “No momento em que a banda tocou os primeiros acordes de uma versão elétrica de 'Maggie’s Farm', a plateia entrou em estado de choque. O que aconteceu em seguida depende do lugar de onde se estava, mas eu ouvi uma incrível hostilidade verbal vinda de todas as direções à minha volta. Quando a banda terminou de tocar 'Farm' houve poucos aplausos, reservados, e um turbilhão de vaias”.
Shelton destaca que a plateia chegou a pedir para trazer Cousin Emmy de volta. Cousin Emmy era o nome artístico de Cinthya May Carver, uma tocadora de banjo e cantora de country e sua principal canção versava sobre o peru ('Turkey in the straw'). Em uma de suas várias frases definitivas, Nelson Rodrigues cravou que só a vaia consagra. Pois então, poucos leitores devem se lembrar de Cousin Emmy, mas aqueles que chegaram até esse ponto do texto sabem bem quem foi Bob Dylan.
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Shelton destaca na biografia que os microfones e amplificadores estavam fora de sintonia e que o som da apresentação era ruim e desequilibrado. “A apresentação não foi convincente nem mesmo para os fãs mais ardorosos do novo som de Dylan. Quando Dylan e a banda passaram a tocar 'Like a rolling stone', o público ficou ainda mais agitado: ‘Toque música folk! Vendido! Isso é um festival de folk! Suma com essa banda!’. Quando Dylan começou a tocar 'It takes a train to cry', os aplausos encolheram e o tumulto ficou ainda maior. Dylan desceu do palco com a banda seguido por um longo e desajustado silêncio”, escreveu Shelton.
PALAVRA DE BEATLE
Dylan partiu em turnê após o festival de Newport. Percorreu várias cidades dos Estados Unidos e também do Reino Unido. As vaias continuaram e a atitude dele perante o estranhamento do público definiu a imagem do músico e também do rock. Quem compreendeu o que era essa atitude foi George Harrison em entrevista à imprensa inglesa, em 1965, quando Dylan chegava à terra da rainha. “Gosto da atitude dele. A forma como ele se veste, a forma como ele não está nem aí. A desarmonia entre como ele canta e toca. A forma como ele joga tudo para o alto”, disse o beatle.
A atitude elogiada por Harrison formou a amálgama do que seria o conceito de roqueiro e está na raiz até dos radicais punks. “Uma postura muito cínica, antiestablishment, com aversão pela imprensa”, pontua o jornalista e escritor Rodrigo Merheb. A controvérsia do Festival de Newport serviu de mote para Merheb abrir seu livro, 'O som da revolução – uma história cultural do rock', 1965-1969. “Dylan abriu vários caminhos para as pessoas da geração dele incorporarem informações que não eram habituais de se ouvir numa música radiofônica”, acredita Merheb.
Decifrar Bob Dylan e entender sua importância não são tarefas simples. O crítico de música da revista New Yorker, Alex Ross, tentou no ensaio 'Eu vi a luz: seguindo Bob Dylan', publicado no livro 'Escuta só – do clássico ao pop'. Ross recorreu à disciplina informal da dylanologia, que segundo ele foi fundada em 1970, quando A. J. Weberman remexeu no lixo do cantor e procurou os dylanológos mais conhecidos.
A reportagem enviou e-mail para um desses notórios dylanólogos, Jeff Gold, que, no ano passado, ficou famoso por descobrir 149 discos de acetato com faixas descartadas e registros de ensaio para os discos 'Nashville skyline', 'Self portrait' e 'New Morning'. A resposta não foi nada alentadora: “Eu lamento, mas penso que ninguém pode saber o que Dylan já pensou e é um erro tentar”.
Ross cita um dos dylanólogos mais respeitados, o crítico de música Greil Marcus, autor de vários livros sobre Dylan. Marcus vê um significado especial no show de Bob Dylan, em Manchester, em 1966, que encerra o ciclo conhecido como “controversa elétrica” iniciado em Newport no ano anterior. Marcus chama o momento de “encontro máximo com o inimigo”.
A cena encerra o documentário de Scorsese e vale ser vista. Quando Dylan entra no palco, um fã grita: “Judas”. Dylan responde fazendo um manejo de cabeça para a direita, demonstrando imenso desprezo e diz: “Eu não acredito em você”. Faz uma pausa, ergue o queixo e manda: “Você é um mentiroso”. Vira de costas, olha para a banda e diz: “Play it fucking loud (toquem isso alto para c*)”. Toca o primeiro acorde de 'Like a rolling stone' com força e levanta a mão direita como se estivesse socando o ar.
“Desde Wagner, nenhum músico havia sido submetido a pressões desse tipo, contraditórias e irracionais. Não surpreende que Dylan tenha caído fora depois do acidente com a moto, no verão de 1966: ele estava farto do papel de messias”, escreveu Ross. Após a apresentação de Manchester, Dylan ficou oito anos sem realizar turnês. E só voltou a tocar no Festival de Newport em 2002.
Para ler
. 'No direction home' – a vida e a música de Bob Dylan, de Robert Shelton (Larouse, 2011)
. 'Ponto final' – crônicas sobre os anos 1960 e suas desilusões, de Mikal Gilmore (Companhia das Letras, 2010)
. 'Escuta só' – do clássico ao pop, de Alex Ross (Companhia das Letras, 2011)
. 'Bob Dylan' – gravações comentadas & discografia completa, de Biran Hinton (Larousse, 2009)
. 'O som da revolução' – uma história cultural do rock, 1965-1969, de Rodrigo Merheb (Civilização Brasileira, 2012)
Para ver
. 'No direction home', documentário de Martin Scorsese (2005)