Perto do leitor, próxima das coisas vivas, Ana Elisa busca o sentido máximo, o sentido único que reorganiza fauna e flora, pavimenta e empresta curvas às estradas, inventa margens para os rios, alarga e salga o mar. O amor.
O amor cabe inteiro já no primeiro poema, O maior de todos, e norteia, já de cara, as intenções dos versos de Ana Elisa. É grande o seu apreço pelo verbo que elucida, pela letra que aclara. Ela quer saber “a curva do a”, “a barriga do g”. Cabe também o sexo nesse brincar, nesse carrossel de delícias e descobertas.
Ana Elisa produz poemas que transitam e levitam por aí, na superfície de árvores e lábios. Uma descontração – e um apuro – vinda de Paulo Leminski areja e tonifica os músculos de seus poemas – feitos, descobertos e acordados nas dobras do imprevisto dos dias, que crescem no pulsar da respiração aflita, porque são muitos os sobressaltos que a vida, que as pessoas dentro da vida oferecem a olhos vistos.
A poetisa pergunta: “Alguém vive sem isso?”: o sorriso da pessoa amada. A poetisa constata: “Que há de mais/– e melhor –/neste mundo?”, sobre um homem com “potencial para biblioteca”. Não raro surgem rimas brilhantes, inesperadas, deliciosas: “seus dedos curtos/me lembram/sevícia//são são; /só lembram//por isso/a delícia”.
Ana Elisa sabe de fantasias quando é amazona, amante e amiga. Ela sabe da quentura que vem do sol lá em cima, a friagem, os silêncios “que murmuram águas”. A poetisa rege contrapalavras, apelos, roseirais. A poetisa celebra com vinho o nascimento das palavras todas. A poesia chega em forma de rasantes, versos “afundados em miudezas”.
A poetisa, descaradamente, oferece poemas de puro amor. Ela se declara apaixonada com uma pieguice gostosa, matreira, verdadeira. E aponta com ira para as tantas “superfícies do sentimento”. O sentimento, esse combustível para fogos e foguetes. Xadrez é sinônimo de jogo, mas também pode ser cela, assim como o amor, que em sua pureza cruel revela. O rei está nu: xeque-mate.
Ana Elisa sabe ler os homens. Alguns poemas têm a temperatura de água fervente. Outros mudam a qualidade do tempo. Destemperos, dissabores e o desamor também servem para algum tipo de aprendizado, algum tipo de catarse (em forma de poesia), para algum tipo de – doce – vingança contra as asperezas dos amores e das muitas dores. A poesia de Ana Elisa é inteligente – e simples: “Na sala,/sob a luz colorida,/não éramos só nós,/era a vida”. Ao lado, a autora fala de seu ofício e do novo livro.
Como você avalia o atual momento da poesia brasileira? Ainda existe espaço para poemas e poetas?
É difícil avaliar estando dentro da questão. Meu ângulo não é privilegiado para uma visada panorâmica. Percebo um momento fértil, muita gente boa, muita publicação indiscriminada também, o que não é um problema. Sempre foi difícil saber o que é bom e o que não é, quando muitos elementos estão em jogo: qualidade, sim, mas acesso, amigos, redes políticas, redes sociais, mídia de massas, jabás, dinheiro e a falta dele, etc. Acho que a poesia brasileira contemporânea vai bem, embora permaneça uma ilustre desconhecida para a maioria das pessoas.
De que forma você concilia o dia a dia com a sua produção literária? Em que área você se sente mais à vontade, na prosa ou na poesia?
Sinto-me à vontade na língua portuguesa, nos textos, o que vai do poema ao texto acadêmico. Minha paixão é por escrever, sem demagogia. A poesia é uma área inaugural para mim. Sinto-me sempre desafiada por ela. A prosa é um exercício mais calculado, na minha experiência. A conciliação disso não é pensada. Não é fácil. Passo a maior parte dos meus dias com a sensação de que estou deixando de fazer o que realmente quero. Já me peguei dizendo que coisas burocráticas ou o trabalho ordinário me atrapalham. Acho que muita gente pensa assim, não? Mas é um sentimento. Aqueles sonhos: quando me aposentar, vou arranjar um escritório só meu, com uma vista bem bonita e muito silêncio, onde vou escrever bastante, só isso.
Como surgiram os poemas de Xadrez? O livro tem alguma temática principal?
Xadrez teve o mesmo processo dos outros quatro livros de poesia, mas a um intervalo menor: foi sendo escrito ao ritmo da chegada dos poemas. Não é um projeto, um plano. Vou escrevendo os textos, deixando em um arquivo, que vai crescendo com o passar dos meses. Comecei os textos do Xadrez em 2013, talvez, e uma hora achei que havia material para um livro novo. Fui relendo, separando, juntando, excluindo, refazendo um ou outro. Tem algo que traz coerência ao conjunto dos textos, um tema comum, um momento da vida. Meu tema, na poesia, é sempre o humano: amor, ciúme, afeto, carinho, memória. As relações humanas me impressionam muito. Amor e desamor são temas fundamentais, e dou neles o trato irônico que me caracteriza até, embora isso seja um perigo. Mas o jogo mesmo é na linguagem. Fico dias ruminando uma palavra bonita. Se ela couber bem no poema, sinto-me realizada.
Se é que ela existe, qual a função da poesia e dos poetas?
Perturbar. Perturbam porque escrevem textos sem papas na língua; perturbam porque usam a língua de um jeito desinibido; perturbam porque parecem difíceis de entender; perturbam porque insistem e persistem, sendo poetas; perturbam porque morrem e deixam leitores que não morrerão nunca; perturbam porque dizem o que muitos não querem ouvir; perturbam porque desdizem; perturbam porque mexem em vespeiros, mesmo meio sem querer; perturbam porque dizem o que as pessoas evitam, fingem ter vergonhas; perturbam porque podem constranger; perturbam porque dizem o que muita gente gostaria de ter tido a chance de dizer; perturbam porque revelam, descobrem; perturbam porque causam alguma reação; perturbam porque registram, com cores peculiares; perturbam porque espantam; perturbam porque fazem lembrar esquecimentos oportunos; perturbam porque mostram o calibre das palavras. Poesia é um negócio ladino. Mesmo se queimarem os livros, ela sobreviverá, mesmo que fragmentada, nas memórias, nas vozes, nos corpos das pessoas. Você extermina as pessoas que gostam de poesia, mas a poesia ressurge na forma de panfletos, pichações, tatuagens, saraus clandestinos. O lance é a palavra.
OBRA POÉTICA
Poesinha (1997)
Perversa – Ciência do acidente (2002)
Fresta por onde olhar, InterDitado (2008)
Anzol de pescar infernos (2013)
Xadrez (2015)
Poema de amor
O perdão está dado;
O traidor está curado;
O amor sentou-se
de pernas abertas
diante de mim.
Vem cá, morena.
Ele é brega.
Vá, são todos iguais,
mas uns são mais.
Lamento,
mas, se virar poema,
já é vantagem.
Melhor que virar
pura bobagem.
XADREZ
. De Ana Elisa Ribeiro
. Editora Scriptum
. 72 páginas, R$ 35
. Lançamento hoje, das 11h30 às 15h, na Livraria Scriptum (Rua Fernandes Tourinho, 99, Savassi)