João Lanari Bo *
Já se vai pouco mais de um quarto de século desde a queda do muro de Berlim e o desmantelamento da antiga União Soviética. A imagem icônica de Karl Marx, repetida à exaustão em estátuas e estampas nos países socialistas, ainda paira com olhar severo e desaprovador. Uma rápida olhada no site de ofertas e-bay revela que, pelo menos para os artistas chineses, Marx parece mais relaxado. São milhares de estatuetas, de vários tamanhos e procedências, mas sempre com um olhar soberano. E o cidadão Karl Marx? Como resgatar a sua, digamos, humanidade? Depois de um século de entronização fanática, chegou a hora de baixar a bola e encarar Marx, diz o historiador Jonathan Sperber, como um sujeito devotado à família, brilhante e intransigente, afetuoso e irascível, enfim, com contradições e fortalezas. Karl Marx, sublinha, foi uma personalidade do seu tempo, o século 19.
Sim, do século 19. Esse é o mote principal da volumosa biografia escrita por Sperber, publicada ano passado no Brasil pela editora Amarilys. Durante décadas, Marx foi para muitos um pensador do século 20, identificado como uma espécie de entidade onipresente fundadora do Estado, ou de um novo mundo, sem opressões sociais e/ou econômicas. Outros viam nele o representante máximo do dogmatismo político, implacável na consecução de suas convicções, sobretudo aquelas alavancadas pela “luta de classes”.
O indivíduo podia ser “marxista” (os ortodoxos), “marxiano” (simpatizantes) ou “marxólogo” (especialistas no assunto). Sperber procurou despir o personagem de tudo aquilo que lhe foi impingido, seja pelos reacionários de plantão ou pelos burocratas stalinistas. Para começar, lembra que as três “fontes” do pensamento marxista, citadas por não outro do que Lênin, um dos que mais falaram “em nome” de Marx, são típicos fenômenos do século 19: a filosofia alemã, em particular Hegel; a economia política inglesa, com o mestre David Ricardo; e o socialismo francês, com a notável trajetória histórica que começa com a Revolução de 1789 e chega à Comuna de Paris, em 1871.
Paradigmas
A França tem uma presença incontornável, sem dúvida, na vida de Marx. Sua cidade natal, Tréveris, cheia de ruínas romanas e medievais, é colada na fronteira com o país “hexagonal”. Durante séculos, o arcebispo de Tréveris era um dos principais eleitores do Sacro Império Romano Germânico. A região, conhecida como Renânia, foi invadida pelos franceses em 1794 e assimilou à força os paradigmas revolucionários: perseguição anticlerical, introdução do sistema decimal e, principalmente, abolição da anacrônica “sociedade de ordens”, sistema de concessões especiais ao clero católico e nobreza para cobrar tributos feudais dos camponeses (os judeus também pagavam tributos pela prerrogativa de residir no interior dos territórios pertencentes aos “senhores”, de efeito direto para a família Marx — uma longa linha de rabinos inclui-se entre os antepassados paternos de Karl).
Quando nasceu o futuro filósofo, em 1818, os franceses haviam deixado a cidade há três anos, após a derrota de Napoleão e o Congresso de Viena, em 1815. Mas o impacto da nova ordem política fora auspicioso para a família: seu pai beneficiou-se da oportunidade e ascendeu de classe, sendo capaz de pagar estudos em Berlim e Jena para o filho. Claro está que a Revolução Francesa exerceu poderosa influência sobre Marx, até a sua morte. O livro de Sperber teve o grande mérito de ressaltar esse fato.
Ainda hoje é difícil imaginar uma Alemanha semifeudal, fragmentada em pequenos Estados e a Prússia. Marx sempre apostou que a revolução socialista iria se dar nos países mais avançados, inicialmente a França (Paris era o epicentro revolucionário) e depois a industrializada Inglaterra, mas nunca a Prússia e adjacências. Tinha horror à monarquia prussiana, que considerava um “vassalo” da Rússia czarista. Karl completou seu doutorado em filosofia na famosa Universidade de Jena, escrevendo sobre os gregos Epicuro e Demócrito, sob o mantra de Hegel (embora nunca tenha cruzado com o inspirador).
Sem chances para a carreira docente, tornou-se redator-chefe da Gazeta Renana, quando encontrou o amigo absolutamente fiel que foi Engels. Fechado o jornal, em 1842, foi para Paris, conheceu a nata dos revolucionários e socialistas do século 19, casou (com a filha de um barão prussiano) e acabou exilado em Londres, onde viveu décadas até morrer. Uma vida cheia de dívidas financeiras, com períodos desesperadores, salvos pela carreira de jornalista – sua produção é extensíssima, boa parte para o New York Daily Tribune — e por Engels, provedor incansável. Quando o generoso amigo firmou-se como empresário têxtil em Manchester, a dupla, em especial Marx, ganhou fôlego extra para atividades políticas, pesquisas e produção teórica.
Estilo do solavanco
Sua obra é fulgurante, do conciso e agudo 18 do Brumário de Luís Bonaparte ao denso e inovador O capital, passando por uma infinidade de textos, altos e baixos. A instabilidade emocional que vez por outra o acudia, entretanto, impediu um resultado final coerente e supostamente sólido (em certo sentido, o biografado não seria o que foi se fosse apenas um “pesquisador de bibliotecas”). Marx escrevia aos solavancos, informa Sperber, em meio a dificuldades de articular politicamente seus correligionários, problemas de dinheiro e penúrias crescentes de saúde. Malgrado todos obstáculos, em especial na economia doméstica, sempre contou com o determinado suporte da esposa Jenny, com quem consolidou um lar a um só tempo burguês, conservador nos costumes (com as filhas) e conectado a movimentos revolucionários por toda a Europa.
Tragédias pessoais povoaram esse percurso: três filhos faleceram em idade infantil, um deles aos oito anos, o pequeno Edgar, em 1855, instalando uma comoção devastadora no casal e neutralizando a produção de Marx por dois anos e meio. Poucos anos antes, em 1851, a fiel empregada da casa, Lenchen, havia dado a luz um menino, cuja paternidade muitos (inclusive Sperber) atribuem a Karl Marx. O igualmente fiel Engels foi quem assumiu o filho, levado a seguir para um abrigo de operários. Quando morreu Lenchen foi enterrada ao lado da esposa Jenny, por desejo desta.
Frederick Engels dividiu autorias e foi o principal editor de Marx, após a morte do amigo, em 1883. O segundo e terceiro volume do Capital foram coligidos por ele. Jonathan Sperber credita a Engels a construção de um Marx “positivista”, ou seja, fiador de um sistema científico que contempla a evolução histórica como sucessão de etapas em direção a uma utopia, a uma sociedade sem classes. Lenin e os soviéticos compraram essa ideia e promoveram a noção de “ditadura do proletariado”, sobre a qual o velho Marx não teve tempo de opinar. Sperber sugere que as dúvidas de Marx sobre o positivismo, fundamentadas na filosofia hegeliana, foram ignoradas por Engels. Uma frase de Epicuro que Marx gostava de repetir, até o fim, é elucidativa: “a morte não é infortúnio para quem morre, mas para quem fica”.
* JOÃO LANARI BO é professor de cinema da Universidade de Brasília
Já se vai pouco mais de um quarto de século desde a queda do muro de Berlim e o desmantelamento da antiga União Soviética. A imagem icônica de Karl Marx, repetida à exaustão em estátuas e estampas nos países socialistas, ainda paira com olhar severo e desaprovador. Uma rápida olhada no site de ofertas e-bay revela que, pelo menos para os artistas chineses, Marx parece mais relaxado. São milhares de estatuetas, de vários tamanhos e procedências, mas sempre com um olhar soberano. E o cidadão Karl Marx? Como resgatar a sua, digamos, humanidade? Depois de um século de entronização fanática, chegou a hora de baixar a bola e encarar Marx, diz o historiador Jonathan Sperber, como um sujeito devotado à família, brilhante e intransigente, afetuoso e irascível, enfim, com contradições e fortalezas. Karl Marx, sublinha, foi uma personalidade do seu tempo, o século 19.
Sim, do século 19. Esse é o mote principal da volumosa biografia escrita por Sperber, publicada ano passado no Brasil pela editora Amarilys. Durante décadas, Marx foi para muitos um pensador do século 20, identificado como uma espécie de entidade onipresente fundadora do Estado, ou de um novo mundo, sem opressões sociais e/ou econômicas. Outros viam nele o representante máximo do dogmatismo político, implacável na consecução de suas convicções, sobretudo aquelas alavancadas pela “luta de classes”.
O indivíduo podia ser “marxista” (os ortodoxos), “marxiano” (simpatizantes) ou “marxólogo” (especialistas no assunto). Sperber procurou despir o personagem de tudo aquilo que lhe foi impingido, seja pelos reacionários de plantão ou pelos burocratas stalinistas. Para começar, lembra que as três “fontes” do pensamento marxista, citadas por não outro do que Lênin, um dos que mais falaram “em nome” de Marx, são típicos fenômenos do século 19: a filosofia alemã, em particular Hegel; a economia política inglesa, com o mestre David Ricardo; e o socialismo francês, com a notável trajetória histórica que começa com a Revolução de 1789 e chega à Comuna de Paris, em 1871.
Paradigmas
A França tem uma presença incontornável, sem dúvida, na vida de Marx. Sua cidade natal, Tréveris, cheia de ruínas romanas e medievais, é colada na fronteira com o país “hexagonal”. Durante séculos, o arcebispo de Tréveris era um dos principais eleitores do Sacro Império Romano Germânico. A região, conhecida como Renânia, foi invadida pelos franceses em 1794 e assimilou à força os paradigmas revolucionários: perseguição anticlerical, introdução do sistema decimal e, principalmente, abolição da anacrônica “sociedade de ordens”, sistema de concessões especiais ao clero católico e nobreza para cobrar tributos feudais dos camponeses (os judeus também pagavam tributos pela prerrogativa de residir no interior dos territórios pertencentes aos “senhores”, de efeito direto para a família Marx — uma longa linha de rabinos inclui-se entre os antepassados paternos de Karl).
Quando nasceu o futuro filósofo, em 1818, os franceses haviam deixado a cidade há três anos, após a derrota de Napoleão e o Congresso de Viena, em 1815. Mas o impacto da nova ordem política fora auspicioso para a família: seu pai beneficiou-se da oportunidade e ascendeu de classe, sendo capaz de pagar estudos em Berlim e Jena para o filho. Claro está que a Revolução Francesa exerceu poderosa influência sobre Marx, até a sua morte. O livro de Sperber teve o grande mérito de ressaltar esse fato.
Ainda hoje é difícil imaginar uma Alemanha semifeudal, fragmentada em pequenos Estados e a Prússia. Marx sempre apostou que a revolução socialista iria se dar nos países mais avançados, inicialmente a França (Paris era o epicentro revolucionário) e depois a industrializada Inglaterra, mas nunca a Prússia e adjacências. Tinha horror à monarquia prussiana, que considerava um “vassalo” da Rússia czarista. Karl completou seu doutorado em filosofia na famosa Universidade de Jena, escrevendo sobre os gregos Epicuro e Demócrito, sob o mantra de Hegel (embora nunca tenha cruzado com o inspirador).
Sem chances para a carreira docente, tornou-se redator-chefe da Gazeta Renana, quando encontrou o amigo absolutamente fiel que foi Engels. Fechado o jornal, em 1842, foi para Paris, conheceu a nata dos revolucionários e socialistas do século 19, casou (com a filha de um barão prussiano) e acabou exilado em Londres, onde viveu décadas até morrer. Uma vida cheia de dívidas financeiras, com períodos desesperadores, salvos pela carreira de jornalista – sua produção é extensíssima, boa parte para o New York Daily Tribune — e por Engels, provedor incansável. Quando o generoso amigo firmou-se como empresário têxtil em Manchester, a dupla, em especial Marx, ganhou fôlego extra para atividades políticas, pesquisas e produção teórica.
Estilo do solavanco
Sua obra é fulgurante, do conciso e agudo 18 do Brumário de Luís Bonaparte ao denso e inovador O capital, passando por uma infinidade de textos, altos e baixos. A instabilidade emocional que vez por outra o acudia, entretanto, impediu um resultado final coerente e supostamente sólido (em certo sentido, o biografado não seria o que foi se fosse apenas um “pesquisador de bibliotecas”). Marx escrevia aos solavancos, informa Sperber, em meio a dificuldades de articular politicamente seus correligionários, problemas de dinheiro e penúrias crescentes de saúde. Malgrado todos obstáculos, em especial na economia doméstica, sempre contou com o determinado suporte da esposa Jenny, com quem consolidou um lar a um só tempo burguês, conservador nos costumes (com as filhas) e conectado a movimentos revolucionários por toda a Europa.
Tragédias pessoais povoaram esse percurso: três filhos faleceram em idade infantil, um deles aos oito anos, o pequeno Edgar, em 1855, instalando uma comoção devastadora no casal e neutralizando a produção de Marx por dois anos e meio. Poucos anos antes, em 1851, a fiel empregada da casa, Lenchen, havia dado a luz um menino, cuja paternidade muitos (inclusive Sperber) atribuem a Karl Marx. O igualmente fiel Engels foi quem assumiu o filho, levado a seguir para um abrigo de operários. Quando morreu Lenchen foi enterrada ao lado da esposa Jenny, por desejo desta.
Frederick Engels dividiu autorias e foi o principal editor de Marx, após a morte do amigo, em 1883. O segundo e terceiro volume do Capital foram coligidos por ele. Jonathan Sperber credita a Engels a construção de um Marx “positivista”, ou seja, fiador de um sistema científico que contempla a evolução histórica como sucessão de etapas em direção a uma utopia, a uma sociedade sem classes. Lenin e os soviéticos compraram essa ideia e promoveram a noção de “ditadura do proletariado”, sobre a qual o velho Marx não teve tempo de opinar. Sperber sugere que as dúvidas de Marx sobre o positivismo, fundamentadas na filosofia hegeliana, foram ignoradas por Engels. Uma frase de Epicuro que Marx gostava de repetir, até o fim, é elucidativa: “a morte não é infortúnio para quem morre, mas para quem fica”.
* JOÃO LANARI BO é professor de cinema da Universidade de Brasília