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Manifesto gráfico

HQ do britânico Woodrow Phoenix convida o leitor a repensar sua relação com o automóvel, a velocidade e a ilusão da onipotência

Valf

Em 1950, Walt Disney lança uma animação com pouco mais de seis minutos chamada Motor mania. Nela, somos apresentados a Mr. Walker, tranquilo e virtuoso morador do subúrbio. Porém, assim como na clássica obra de Robert Louis Stevenson, o lado sombrio do personagem aflora. O pacato Mr. Walker, tomado pela sensação de poder, esquece todos os seus valores e se transforma em um odioso motorista quando entra em sua armadura de quatro rodas. Como o Dr. Jekyll depois de beber a sua fórmula, Mr. Walker se transfigura, tornando-se o terrível Mr. Wheeler, o motorista. Inebriado pela loucura automotiva, despreza todas as regras de conduta social e de trânsito. Passa a ser, literalmente, o predador das estradas.
Motor mania continua atual. É usado até hoje em campanhas de conscientização de trânsito e em aulas de autoescolas. Com a paródia de O médico e o monstro, tratou-se o tema com humor, dando um tom de leveza ao assunto. Triste, porém, é perceber que bem mais de meio século se passou e o ponto central da discussão continua ainda mais presente. O britânico Woodrow Phoenix retoma essa questão no que prefere chamar de manifesto gráfico. E levanta a bandeira da reflexão sobre a sociedade cada dia mais dependente e, ao mesmo tempo, ameaçada pelo automóvel.

Woodrow Phoenix é um artista versátil. Trabalhou em várias áreas, como animação, histórias em quadrinhos e livros infantis, sempre com mudanças significativas de estilo. Na recém-lançada HQ Autocracia, ele se afasta da linguagem sequencial clássica e opta pelo design gráfico. Seus quadrinhos, na verdade, são grandes painéis: registros em preto, branco e gris do universo automotivo, ilustrados por estradas, sinais de trânsito e faixas de pedestre. Conjugando essa opção estética com o texto ácido, cheio de referências e estatísticas, Woodrow constrói, de forma bem clara, seu manifesto.

Logo nas primeiras páginas vemos uma cidade e, em suas ruas, a sequência de enormes pianos suspensos apenas por cordas. O autor faz uma curiosa analogia, comparando instrumentos musicais a carros. As cordas representam o frágil comando do motorista sobre tudo o que envolve o ato de dirigir. Com isso, o autor questiona o controle que abrange uma série de interligações, da perícia na condução do carro ao simples momento de distração do motorista. Extremamente subjetivo, Woodrow sugere que uma tênue linha separa dirigir com segurança do grande desastre. Se por qualquer motivo a corda escapar do controle, o piano cairá sobre qualquer um: pedestre, motorista ou carona. Pouco importa, piano ou carro. Massa versus velocidade sempre gera impacto. E isso tem sérias consequências.

O texto pode parecer alarmista, mas o discurso de Woodrow se baseia em estatísticas. Números são frios e mostram a crescente quantidade de acidentes e fatalidades: anualmente, são mais de 1,2 milhão de mortes mundo afora. Autocracia traz cerca de 20 páginas desenhadas para a versão nacional da HQ, com cenários em Brasília, Rio de Janeiro e São Paulo. Na verdade, esse fato isoladamente pouco acrescentaria, não fossem algumas linhas do posfácio que tratam de nosso país trazendo uma constatação ainda pior. Na Inglaterra, três de cada 100 mil habitantes morrem no trânsito por ano. No Brasil, foram 21,5 vítimas em 2010. O autor cita matérias jornalísticas para criticar a absurda impunidade de motoristas causadores de tragédias. Chama a atenção para a fantasiosa busca pelo melhor, maior e mais rápido que domina a sociedade contemporânea.

Curioso notar que em nenhuma das quase 200 páginas o personagem central apareça. A representação do carro inexiste nesta história. Nenhum automóvel é desenhado, tampouco pessoas. Os indivíduos, de forma minimalista, são desprovidos de sua condição e da representação naturalista, convertidos apenas em pictogramas de semáforos e de sinalização. Tais dissociações causam grande impacto e estranheza. Imponentes rodovias que estariam repletas de automóveis a qualquer hora do dia surgem totalmente vazias. Gigantescos estacionamentos, com faixas pintadas no chão (agora sem mais função), são apenas registros de uma paisagem desolada.

A perda de vários amigos e de uma irmã devido à violência do trânsito, somada ao acidente sofrido pelo próprio autor, que poderia ter tido consequências bem mais graves, funciona como catalisador da concepção desta obra, que convida a repensar urgentemente a importância do carro na sociedade. É preciso repensar também a fragilidade, muitas vezes esquecida por condutores “protegidos” por suas couraças de aço.

Rumble strip é o título da obra original. O termo se refere às ranhuras paralelas em relevo instaladas nas estradas, conhecidas no Brasil como sonorizadores. Quando o carro passa, o contato dos pneus e do asfalto produz som similar a um zumbido. A função disso, segundo a norma técnica, é “induzir condutores a reduzir a velocidade, além de alertar sobre algum perigo ou obstáculo à frente”. Sim, sinalizadores servem como alerta. Como a obra de Woodrow Phoenix.


Valf é ilustrador


AUTOCRACIA
• De Woodrow Phoenix
• Editora Veneta
• 192 páginas, R$ 44,90