Em seu novo romance, Chico Buarque mergulha em seu próprio drama familiar

'O irmão alemão' conduz o leitor por uma instigante aventura entre os limites entre realidade e ficção

por Lucília Garcez 20/12/2014 00:13
João Wainer/Folhapress
(foto: João Wainer/Folhapress)
Iouri Lotman, em La structure du texte artistique, defende a ideia de que “a arte é a linguagem da vida; graças a ela o real fala de si mesmo”. Patrick Modiano, Prêmio Nobel de Literatura, disse recentemente que o papel do escritor é “revelar” o mistério que se encontra no mais profundo de cada pessoa, como “uma espécie de vidente e mesmo de visionário”. Modiano acrescentou que o escritor confere “mistério aos seres que parecem submersos pela vida cotidiana, às coisas aparentemente banais” de tanto observá-las “com uma atenção persistente e de maneira quase hipnótica”.

Essas posições explicam o que Chico Buarque empreendeu em O irmão alemão. Fatos reais estão no surgimento da ideia do romance, mas o romance em si revela muito mais do que isso. Revela o mundo interior de um personagem de ficção que reflete uma inquietação real do autor: “Paralisado defronte da porta por onde entrará meu irmão alemão, repasso na memória as ideias mais fantasiosas que fiz dele, desde que soube da sua existência. Recordo quantas vezes sonhei com ele, a cada sonho com uma cara diferente, caras que se transfiguravam no aquário do sonho, seres que desvaneciam com a luz da manhã, durante os anos em que ansiei por este encontro. E agora já não quero que a porta se abra, por mim aquela maçaneta poderia girar perpetuamente em falso. Prefiro continuar a ver meu irmão em sonhos, com sua cara ainda sem acabamento. Penso que vê-lo assim, à queima-roupa, com excessiva nitidez, será como ver escancarada na tela de cinema a personagem de um romance que eu vinha adivinhando fia a fio, no tempo da leitura”, escreve o romancista Chico.

Aos 22 anos, por intermédio de um comentário fortuito de Manuel Bandeira, Chico ficou sabendo que o pai, Sérgio Buarque de Hollanda, que vivera em Berlim entre 1929 e 1930, mantivera uma relação amorosa com Anne Ernst, e que como fruto desse romance existia um filho. Mais tarde, o próprio pai confirmaria a Chico esse fato.

Desde então, por cerca de 50 anos, a vontade de conhecer esse meio-irmão mobilizou frustradas buscas por informações mais precisas. Ele queria saber o seu destino, se ele teria morrido nos campos de concentração da Segunda Guerra. Somente em 2013, com a ajuda dos pesquisadores Sidney Chalhoub, João Klug e Dieter Lange, indicados pela editora de Luiz Schwarcz (Companhia das Letras), Chico conseguiria informações exatas: Sérgio Günther nasceu em dezembro de 1930, foi entregue pela mãe à Secretaria da Infância e da Juventude de Berlim e foi adotado por Arthur Günther e Pauline Anna, que lhe deram o nome de Horst Günther.

Por volta dos 22 anos, Horst veio a saber de sua origem e optou pelo prenome de Sergio. Trabalhou na televisão do Estado e era cantor. Morreu de câncer em 1981. Em 2013, Chico foi a Berlim e teve contato com a família de Sergio: a filha, a neta e a ex-mulher.

Esses fatos reais constituem apenas o argumento inicial que desencadeia um intenso e rico processo ficcional. O emprego da primeira pessoa revela que o foco do romance não é a ditadura brasileira, que aparece como pano de fundo, nem o Holocausto, nem qualquer questão histórica ou política. O eixo é composto pelas experiências, emoções, angústias, vivências, expectativas, dúvidas e inquietações do narrador Francisco de Hollander, ou Ciccio, na busca pelo meio-irmão alemão. Os outros personagens vêm apenas para compor o cenário e sustentar o enredo: o admirado e distante pai, Sergio, leitor inveterado, culto e erudito, dono de uma imensa biblioteca; a mãe, Assunta, italiana, sempre à disposição para servir ao pai, procurando livros da biblioteca; o irmão, Domingos/ Mimmo, ignorante e mulherengo sedutor, preferido pelo pai; as namoradas, sempre passageiras; os amigos Thelonious/Ariosto e Udo, más companhias; o professor de piano Henri/ Heinz Beauregard/ Borgart, sua mulher e seu filho, pistas falsas na busca por Anne Ernst.

Com segmentos de narrativa factual, de diálogos, de sonhos, de pesadelos, de conjecturas e de deliciosas especulações sobre possíveis acontecimentos, Chico tece uma trama envolvente em que somos levados a entrelaçar nossos conhecimentos de sua vida pessoal e o universo ficcional que arma com extrema maestria.

A narrativa mescla traduções, como a da carta de Anne, encontrada dentro de um livro na biblioteca do pai, e fac-símiles de documentos (reais ou editados?) e correspondências oficiais solicitando comprovação da origem ariana do menino, para fazer com que o romance se equilibre ambiguamente entre o real e o ficcional. Mas todo romance não é isso? A tentativa de se tornar verossímil e conquistar a adesão do leitor para acreditar na sua “realidade”?

Muitos elementos se aproximam do real, mas com pequenas transformações, até o próprio nome do autor adaptado para o narrador como Francisco Hollander. Tudo isso intensifica a confusão entre realidade e imaginação. Mas prevalece a ficção, sempre eivada de um humor fino e sofisticado: “De processo em processo, de acordo em acordo, incluindo honorários de advogados gananciosos, já tinham lhe mordido boa parte da herança do pai, que no ano passado morrera aos cento e um ainda na ativa, com uma prótese peniana que mandara implantar aos noventa e cinco. E, além de bunda de mulher, o fetiche do velho Heydrich eram relíquias da Segunda Grande Guerra” (p. 199); “com aqueles suspensórios que de relance me lembrariam a cinta-liga de Marlene Dietrich” (p. 225).

Experiência estética extremamente prazerosa, o romance é uma excelente oportunidade para refletir sobre as insondáveis origens das ideias que estão na gênese da ficção, além de ser uma aventura inigualável quanto ao poder da linguagem de recriar e expandir a realidade. Graças à arte, a vida fala de si mesma.

MAIS SOBRE PENSAR