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Chico Buarque lê trecho de seu novo livro, 'O irmão alemão', em vídeo: assistaChico Buarque anuncia data de lançamento de livroDesde então, por cerca de 50 anos, a vontade de conhecer esse meio-irmão mobilizou frustradas buscas por informações mais precisas. Ele queria saber o seu destino, se ele teria morrido nos campos de concentração da Segunda Guerra. Somente em 2013, com a ajuda dos pesquisadores Sidney Chalhoub, João Klug e Dieter Lange, indicados pela editora de Luiz Schwarcz (Companhia das Letras), Chico conseguiria informações exatas: Sérgio Günther nasceu em dezembro de 1930, foi entregue pela mãe à Secretaria da Infância e da Juventude de Berlim e foi adotado por Arthur Günther e Pauline Anna, que lhe deram o nome de Horst Günther.
Por volta dos 22 anos, Horst veio a saber de sua origem e optou pelo prenome de Sergio. Trabalhou na televisão do Estado e era cantor. Morreu de câncer em 1981. Em 2013, Chico foi a Berlim e teve contato com a família de Sergio: a filha, a neta e a ex-mulher.
Esses fatos reais constituem apenas o argumento inicial que desencadeia um intenso e rico processo ficcional. O emprego da primeira pessoa revela que o foco do romance não é a ditadura brasileira, que aparece como pano de fundo, nem o Holocausto, nem qualquer questão histórica ou política. O eixo é composto pelas experiências, emoções, angústias, vivências, expectativas, dúvidas e inquietações do narrador Francisco de Hollander, ou Ciccio, na busca pelo meio-irmão alemão. Os outros personagens vêm apenas para compor o cenário e sustentar o enredo: o admirado e distante pai, Sergio, leitor inveterado, culto e erudito, dono de uma imensa biblioteca; a mãe, Assunta, italiana, sempre à disposição para servir ao pai, procurando livros da biblioteca; o irmão, Domingos/ Mimmo, ignorante e mulherengo sedutor, preferido pelo pai; as namoradas, sempre passageiras; os amigos Thelonious/Ariosto e Udo, más companhias; o professor de piano Henri/ Heinz Beauregard/ Borgart, sua mulher e seu filho, pistas falsas na busca por Anne Ernst.
Com segmentos de narrativa factual, de diálogos, de sonhos, de pesadelos, de conjecturas e de deliciosas especulações sobre possíveis acontecimentos, Chico tece uma trama envolvente em que somos levados a entrelaçar nossos conhecimentos de sua vida pessoal e o universo ficcional que arma com extrema maestria.
A narrativa mescla traduções, como a da carta de Anne, encontrada dentro de um livro na biblioteca do pai, e fac-símiles de documentos (reais ou editados?) e correspondências oficiais solicitando comprovação da origem ariana do menino, para fazer com que o romance se equilibre ambiguamente entre o real e o ficcional. Mas todo romance não é isso? A tentativa de se tornar verossímil e conquistar a adesão do leitor para acreditar na sua “realidade”?
Muitos elementos se aproximam do real, mas com pequenas transformações, até o próprio nome do autor adaptado para o narrador como Francisco Hollander. Tudo isso intensifica a confusão entre realidade e imaginação. Mas prevalece a ficção, sempre eivada de um humor fino e sofisticado: “De processo em processo, de acordo em acordo, incluindo honorários de advogados gananciosos, já tinham lhe mordido boa parte da herança do pai, que no ano passado morrera aos cento e um ainda na ativa, com uma prótese peniana que mandara implantar aos noventa e cinco. E, além de bunda de mulher, o fetiche do velho Heydrich eram relíquias da Segunda Grande Guerra” (p. 199); “com aqueles suspensórios que de relance me lembrariam a cinta-liga de Marlene Dietrich” (p. 225).
Experiência estética extremamente prazerosa, o romance é uma excelente oportunidade para refletir sobre as insondáveis origens das ideias que estão na gênese da ficção, além de ser uma aventura inigualável quanto ao poder da linguagem de recriar e expandir a realidade. Graças à arte, a vida fala de si mesma.