O alemão é um idioma que poucos dominam no Brasil. Por isso mesmo, são sempre bem-vindas as traduções em português de grandes autores que escreveram nessa língua (como Goethe, Nietzsche, Thomas Mann etc.). O poeta nascido em Praga (República Tcheca) Rainer Maria Rilke (1875-1926), um dos mais importantes do século 20, é um desses autores de língua alemã dos quais já contamos com diversas traduções no Brasil: Dora Ferreira da Silva, Geir Campos e José Paulo Paes já se aventuraram por sua poesia; Cecília Meireles, Paulo Rónai e outros mais traduziram sua prosa – cartas, diários e ensaios.
No ano passado, Augusto de Campos lançou Coisas e anjos de Rilke, com 130 poemas traduzidos (Editora Perspectiva). A seleção de Augusto visou à parte da obra de Rilke influenciada pelo pintor Cézanne e pelo escultor Rodin (o poeta foi seu secretário, tendo vivido muitos anos em Paris); inclui textos dos Novos poemas, do Livro de imagens, dos Sonetos a Orfeu e mais alguns poemas esparsos e pouco divulgados.
Poeta, ensaísta e tradutor, Augusto já recriou em português desde as canções dos trovadores provençais (com destaque para Arnaut Daniel) até as obras de vanguarda de Pound, Maiakóvski, Joyce, Gertrude Stein e John Cage, no século 20 – passando pelos poetas metafísicos (John Donne e Hopkins), pelos românticos ingleses (Byron e Keats) e pelos simbolistas franceses (Mallarmé, Rimbaud, Corbière etc.). Incluindo ainda Emily Dickinson (1830-1886) e Paul Valéry (1871-1945).
O trabalho de Augusto sobre os originais alemães de Rilke traz a sua marca pessoal, ou seja, a da tradução-arte ou recriação (ou ainda “transcriação”, como preferia definir seu irmão Haroldo de Campos, também poeta e tradutor). Não são meras traduções literais ou informais, que se guiam apenas pela fidelidade semântica ao texto. Procuram dar conta de todo o arcabouço sonoro-sintático e formal do poema original, tentando dessa maneira chegar à alma-âmago do mesmo, sem destoar de seu tom e de sua marca própria.
Em entrevista ao Pensar, Augusto não fala sobre as traduções anteriores de Rilke (“por uma questão de ética”; das que ele conhece, destaca apenas as de Manuel Bandeira – “Torso de Apolo” – e de Décio Pignatari – “Abisag”). Mas fala sobre vários aspectos da obra e da importância de Rilke para a poesia contemporânea. Aborda também a língua alemã e anuncia suas novas traduções de Maiakóvski, diretas do russo (uma delas reproduzida nesta página), ainda inéditas em livro. Vamos ao papo com Augusto sobre Rilke.
Num inusitado livro em que estuda Rilke, Pound e Neruda juntos, o ensaísta chileno José Miguel Ibáñez Langlois observa que “de um ponto de vista formal, Rilke foi em seus dias mais um anacrônico que um precursor. No fundo um poeta do romantismo alemão plantado na época de Apollinaire, de Dada e do surrealismo nascente”. O que pensa sobre isso?
É parcialmente verdade, embora a comparação me pareça, ela mesma, ressentir-se de algum anacronismo. Dez anos separam o nascimento de Rilke (1875) do de Pound, em 1885. E se é verdade que Rilke nunca foi um “modernista”, é verdade também que os textos poéticos dos Neue Gedichte (Novos poemas), que Rilke publicou entre 1907/1908, sob a influência de Cézanne e de Rodin, eram muito menos anacrônicos do que os que Pound publicou em A lume spento (1908). Rilke morreu prematuramente em 1926, com 50 anos, quando Pound havia apenas começado a publicar os seus Cantos definitivos, nos quais radicalizou o seu método ideogrâmico, de colagens e montagens, aos 40 anos. Sim, Rilke não foi um poeta “de vanguarda”. Mas os seus Novos poemas – os chamados “Ding-Gedichte” ou “poemas-coisa“ – privilegiados em Coisas e anjos de Rilke, a minha “re/visão” do poeta – apresentam aspectos relevantes para a modernidade da linguagem poética, além de ser grandes poemas. À luz de Cezanne, Rilke constrói textos, nem sempre em versos regulares, em que rompe com as constrições tradicionais ao abordar um tema-objeto, sob várias perspectivas e vários ângulos, atacando o verso em sucessivas fraturas e fissuras sintáticas e ao mesmo tempo alongando a frase por todo o texto, num audacioso jogo entre o espaço e o tempo escriturais. Vejam-se poemas, como o que traduzi do ciclo “Os tzares”, ainda do Livro das imagens, que precedeu os Novos poemas, mas escrito já por volta de 1907, contemporâneo destes. O texto, recortado por sucessivas imagens imprevistas, pareceria sugerir as famosas montagens eisenstenianas de Ivan, o Terrível, que também foi o inspirador do poema de Rilke.
Tome-se o poema “São Sebastião”, no qual inverte a direção das flechas e desdobra a posição do corpo da vítima. Ou “A pantera”, com a clivagem dos seus closes abruptos. Há, em embrião, nesses e muitos outros casos, algo do cubismo analítico e seu multiperspectivismo. Um protocubismo. Aliás, foram esses poemas que assinalaram a “reconciliação” de João Cabral com Rilke: “Preferir a pantera ao anjo/ condensar o vago em preciso,/ neste livro se inconfessou” (“Rilke nos Novos poemas”, em Museu de tudo). Em suma, de alguma forma, o poeta respondia, ainda que até certo ponto em formas menos disruptivas, às desconstruções cézannianas que levariam ao cubismo. Outra dimensão menos conhecida dos poemas de Rilke, e também apreciável, indutora do expressionismo, é a satírica, presente nos violentos retratos de deformidades e infelicidades que traduzi do Livro das imagens. Poucas vezes li versos tão contundentes como os do ciclo “As vozes”. A voz do Suicida frustrado: “Permitam-me que eu me vomite”. Ou a do Leproso repudiado: “Tento não assustar os animais”. Rasgos de humor negro atravessam os Novos poemas em “Morgue “ e “Lavagem dos cadáveres”, ou nos retratos grotescos dos reis leprosos e no belo-horrível da descrição protoexpressionista do "Nascimento de Vênus”: “O mar pariu.” E chega a ser um mistério, talvez tão grande como o de Rimbaud ao compor, adolescente, os versos perfeitos do “Barco bêbado”, a perfeição com que Rilke foi capaz de criar, em duas semanas, os textos impecáveis de Sonetos a Orfeu. A poesia do nobelizado Neruda, que nasceu em 1904, 20 anos depois de Rilke, encontrou, sem dúvida, uma linguagem própria, mas até certo ponto pronta, para os seus versos modernos. Mas ele nunca foi um inventor de formas e – para mim – não chega aos pés nem de Rilke nem de Pound. Uma comparação mais justa e adequada situaria a poesia de Rilke como precursora da linguagem moderna, ao lado da criação poética dos também grandes Aleksandr Blok e William Butler Yeats, que influenciaram e foram influenciados por Maiakóvski e Pound, respectivamente.
O ensaísta e tradutor mineiro Cristiano Martins, no seu pioneiro ensaio “Rilke – O poeta e a poesia”, de 1949, observa: “A sua originalidade, e profundamente original foi ele, não residia nos aspectos exteriores da forma, nem na novidade e no ineditismo dos temas, mas no próprio modo de ser, na maneira pessoalíssima com que sabia extrair das coisas e sentimentos suas virtualidades líricas”. Concorda com essa visão de Cristiano?
Respeitável como seja, Cristiano Martins não é um bom conselheiro para a poesia. Domina razoavelmente a métrica e o verso, mas sem maior brilho. Não é poeta. Ao contrário do que ele afirma, Rilke se preocupava profundamente com a forma de seus poemas. “Forma” não é “fôrma”, aspecto exterior, casca epidérmica. O “conteúdo” tem que se impregnar dela, densificar-se com ela. Sem forma, Rilke não seria o grande poeta que foi, e sim um pregador-confidente, o visionário abstrato e místico que, nos anos 40, quiseram nos impingir. E foi por não perceber a profundidade do sentido da “forma” em Dante, derivada do trovador Arnaut Daniel, considerado pelo criador da Divina Comédia como “o “maior artífice da língua materna’, é que Cristiano Martins a traduziu apenas medianamente. Meritória, pelo esforço louvável de traduzir toda a Comédia, sua tradução, vista de perto, exibe “terzinas” metrificadas e rimadas como casca, mas sem “corpus” literário suficientemente denso e, portanto, sem “anima” poética. A forma é essencial na Divina Comédia, que é uma catedral linguística de forma e alma, e não uma igreja literato-convencional com métrica penosa e rimas de ouropel.
Rilke escreveu parte de sua obra poética diretamente em francês. Como classifica os “poèmes français” dele? Estão à altura de seus versos em alemão?
Para mim, não guardam a mesma tensão e a mesma originalidade dos textos em língua alemã, e salvo um ou outro caso, me soam como um Rilke aguado.
Por que traduzir Rilke hoje? Ainda há lugar e espaço para uma poesia com o “tom” dele no mundo atual?
Sempre há lugar para a poesia de todos os tempos, quando o poeta chega às alturas a que chegou Rilke. Considero os “poemas-coisa”, que emergiram nos Novos poemas, uma experiência fundamental para que se compreenda a unidade matérica do aparente dualismo forma-conteúdo em poesia. O rigor, a concisão, “a precisão do indeciso” (como queria o melhor Verlaine), especialmente desses poemas, têm muito a ensinar sobre como fazer poesia e não apenas redigir versos.
Além de Rilhe, você está traduzindo ou pretende traduzir mais algum outro poeta de língua alemã? Considera o idioma alemão também sonoro como o francês e “plástico” como o inglês?
Sim, a nós, brasileiros, à primeira audição, o alemão parece soar cacofônico ou excessivamente consonantal. Mas, bem assimilado, o idioma tem grandes belezas e achados, apesar das dificuldades linguísticas e gramaticais que dele nos separam. Volto de vez em quando a ele, e se pudesse traduziria todos os Novos poemas, mas é empreendimento árduo e meu interesse poético é onívoro. Não gosto de me especializar e no meu horizonte não estão as “obras completas” de ninguém, porque duvido muito das incumbências por atacado e dos “trabalhos forçados” em tradução poética criativa. Nem tudo é bem traduzível. Prefiro traduzir, de cada poeta, só aqueles textos em que julgo ter encontrado “um poema” em português. Mas para não dizer que não falei de flores germânicas, dou aqui este dístico de Goethe:
Uns Wien der Mens. in seiner Quall verstummt,
Gab mir ein Got zu sagen wie ich leide.
E quando um ser que sofre cala o seu clamor,
Um deus me deu o dom de dizer minha dor.
O caso de Arnaut Daniel é uma exceção e só me foi possível traduzi-lo integralmente porque do trovador restaram apenas 18 poemas. Mas não tornei a me embrenhar em obras de autores de língua alemã. Voltei a estudar um pouco de russo, que é ainda mais difícil que o alemão. Minhas últimas traduções, publicadas na internet, no portal da revista eletrônica Zunai, porque não tenho mais espaço nos cadernos literários, são de poemas do jovem Maiakóvski, escritos por volta de 1913. Dedico-as a Décio Pignatari, vertendo o título de um dos textos maiakovskianos com o pignatariano “Tó pra vocês”.
Carlos Ávila é poeta e jornalista. Publicou, entre outros, Bissexto sentido e Área de risco (poesia) e Poesia pensada (crítica). Foi, por quatro anos, editor do Suplemento Literário de Minas Gerais.
Amor
Maiakóvski, tradução de Augusto de Campos
A moça entrou no brejo com cuidado, as rãs amplificaram seus tristes estribilhos, um vulto ruivacento bamboleou nos trilhos e os trens curvetearam com ar de enfado.
No véu das nuvens, por entre o sol-carvão, se infiltraram as mazurcas de um vento louco, e eu estou aqui – trottoir do verão onde mulheres atiram beijos-tocos.
Pobres idiotas, deixem suas casas! Venham, nus, ao sol, sem preconceitos, versar vinhos vorazes em odres-peitos e chuva-beijos em faces-brasas.
1913