Paixão em Buenos Aires

Livro de Mauro Mendes Braga apresenta a história social e cultural do tango argentino. Obra destaca a presença dos negros na origem do gênero e narra a trajetória de Carlos Gardel e Astor Piazzolla

por 23/08/2014 00:13
Daniel Garcia/AFP
None (foto: Daniel Garcia/AFP)
João Paulo



tango é uma música feita de paixão e mistérios. Talvez por isso Mauro Mendes Braga tenha escrito um livro tão importante, Tango – A música de uma cidade, que está sendo lançado pela Editora da UFMG. O autor não é músico nem especialista em história cultural, mas um amador. No melhor sentido: ele ama o tango e transportou seu afeto de muitos anos para sua pesquisa. E de pesquisa ele entende, já que fez sua carreira acadêmica como professor do Departamento de Química da Universidade Federal de Minas Gerais, onde exerceu diversos cargos administrativos até se aposentar.

E é o misto de paixão e dedicação às fontes que valoriza ainda mais o livro, desde já o título brasileiro mais completo sobre o tema. Mauro Braga anuncia, logo na apresentação, que se trata de obra que deve muito aos trabalhos já realizados por especialistas, sobretudo de autores argentinos como José Gobello e Horacio Sallas, que assinam obras canônicas sobre o tango. Mas seu livro passa longe de ser apenas uma síntese cuidadosa.

Entre os méritos de Tango – A música de uma cidade está a estrutura da obra, que articula informações históricas, estéticas e biográficas sobre os principais personagens da trajetória do tango. Além disso, o autor incorpora de forma sutil, mas sempre bem fundamentada, alguns julgamentos que podem servir como guia para quem quer se aventurar na estrada do tango. Por fim, o livro tem ainda um saudável propósito de introduzir o leitor brasileiro, que parece ter virado o rosto em direção ao Atlântico, desprezando as contribuições culturais dos vizinhos da América do Sul.

A relação dos brasileiros com a música argentina, sobretudo com o tango, como salienta o autor, foi marcada pela negação. É possível perceberem-se traços de interesse no começo do século 20, com os “tangos brasileiros” de Ernesto Nazareth (ainda que distantes do formato que depois seria estabelecido para o gênero) e Chiquinha Gonzaga, chegando a composições de Pixinguinha. Até os anos 1940, o intercâmbio ainda se observa, com gravações de Orlando Silva e Francisco Alves, entre outros ídolos da era do rádio.

Dos anos 1960 em diante, o Brasil parece romper com os vizinhos em favor de certa submissão ao mercado da música norte-americana, ainda que os argentinos mantivessem interesse por nossas produções, como sinaliza o sucesso da bossa nova e, em seguida, do pop rock brasileiro em terras portenhas. Ainda hoje há cantores argentinos especializados em repertório de música brasileira, o que não se vê no Brasil em relação aos argentinos. Experimente pedir a alguém que cite um músico de tango no Brasil e, fora Astor Piazzolla, o cenário estará vazio. O livro de Mauro Mendes Braga tem muito a contribuir para mudar essa história.

Cidade

A tese do autor, como explicita o título, é de que o tango é a música de Buenos Aires. Ele não existiria sem a cidade e, além disso, é uma forma de expressar a própria vida portenha e de seus habitantes. Por isso, para conhecer as origens do tango é preciso mergulhar na rica história da cidade. Para comprovar sua afirmação, Mauro Braga – como vai fazer em quase todo o livro – usa as próprias letras dos tangos para mostrar como Buenos Aires está presente na gênese e no desenvolvimento do gênero. Mais que cenário, a cidade é uma musa.

Para dar ainda mais consistência ao seu argumento, o autor oferece ao leitor “breves apontamentos sobre a história de Buenos Aires”, destacando fatos como a dupla fundação da cidade, a constituição do vice-reinado do Rio da Prata, as guerras de independência, a relação de Rosas com os negros e, depois dos embates internos, o estabelecimento da nação argentina, com suas estratégias políticas de unificação e povoamento. Este é um fator que vai interessar muito para a história cultural do país e para o tango em particular.

Em Buenos Aires, tudo parece ocorrer de forma extremamente veloz. A população negra, que foi expressiva na cidade até o começo do século 19, decresce de forma abrupta, por vários motivos: presença nas tropas das campanhas militares; exposição à miséria e suas consequências; queda da taxa de natalidade pela morte de homens nas frentes de batalha, gerando desequilíbrio de gênero; preconceito racial. Os projetos de nação das forças políticas no período não contemplavam a presença de negros e índios, abrindo o país aos estrangeiros brancos. No entanto, a marca cultural ficou para sempre na música popular das periferias da cidade, tanto nos ritmos do candombe e na melancolia das milongas, como na música trazida pelos escravos da África e de Cuba, como a habanera.

O branqueamento portenho também seguiu ritmo acelerado. Logo Buenos Aires era uma cidade com mais estrangeiros que nativos. Como informa o autor, no período entre 1855 e 1914, quando começa a Primeira Guerra Mundial, a cidade receberia quase 5 milhões de imigrantes, dos quais cerca de 50% permaneceriam definitivamente no país. Entre esses, se destacavam os italianos, espanhóis e franceses, além de ingleses e judeus da Europa Central. Além da grande cidade, a política de imigração garantiu terras na Patagônia e nos pampas para os estrangeiros, por meio de política de expulsão de seus ocupantes nativos. Empurrados para a periferia de Buenos Aires, os gaúchos ajudariam também a compor o caldeirão cultural da metrópole em expansão.

É com essa base que o cenário do tango começa a ser desenhado. A música sopra das periferias, evidencia uma mescla de culturas, se desenvolve em academias, perindiguines e bordéis, estabelece sua cultura boêmia e marginal. Além do local e das pessoas, se alimenta de uma linguagem peculiar, o lunfardo, gíria de malandros que ganha a poesia popular e as letras dos tangos, como mostra o autor com vários exemplos. É o universo do guapo, do gil e das pupilas (pela ordem, o gaúcho valente, o otário e as prostitutas que moram no bordel). O tango ganha ainda a contribuição musical do bandoneon, com sua possível origem nobre (instrumento para cultos em pequenas igrejas alemãs), que se torna a alma sonora da cultura portenha.

Misoginia

Depois de estabelecer as bases históricas, demográficas e estéticas do tango, Mauro Braga leva o leitor para o universo propriamente dito da música. Analisa as polêmicas em torno de sua origem (inclusive o embate moral, religioso e de classe), estuda a origem da palavra (em dicionários clássicos, com sua inegável má vontade com a cultura popular), analisa a presença da ascendência negra fundamental na história do tango e até a misoginia do estilo (com suas danças entre dois homens).

A história cultural do tango propriamente dita começa com a identificação das guardia vieja e da guardia nueva, apresentando nomes como Canaro, Agustín Bardi, Osvaldo Fresedo, Julio Caro e Enrique Delfino, até chegar no tango canção, a forma por excelência do estilo, com análise do clássico La cumparsita.

O autor apresenta ainda a obra de outros compositores e poetas, como Osvaldo Pugliese, Enrique Santos Discépolo, Alfredo Le Pera, José Maria Contursi e Horacio Ferrer, para chegar aos dois grandes nomes do tango, o mito Carlos Gardel e, mais recentemente, Astor Piazzolla. O mais conhecido dos autores contemporâneos do tango, Piazzolla é apresentado por meio de sua obra, ideias políticas e dramas humanos. Mas o grande personagem desta história é mesmo Carlos Gardel.

O capítulo dedicado ao cantor, nascido na França e que viveu apenas 45 anos, morto num inacreditável acidente entre dois aviões no solo, parece uma história tanguera, cheia de paixão. A vida de Gardel teve de tudo: da infância pobre às dúvidas sobre sua origem (há quem defenda que ele era uruguaio). O menino que nasceu na França para se tornar o símbolo maior da cultura portenha (como nossa Carmen Miranda, a portuguesa que se tornaria marca de brasilidade). Um homem envolto em mistérios, que brilhou em Hollywood, e teve relações conturbadas com várias mulheres.

Que teve como maior parceiro musical o brasileiro Alfredo Le Pera, com quem compôs Cuesta abajo e El día que me quieras, entre 30 músicas, “quase 20 são pérolas da canção universal”, avalia Mauro Mendes Braga). Um viciado em turfe, que perdeu fortunas com os cavalos, vítima de um acidente até hoje inexplicado (há quem diga que foi um crime ou vingança, com tiros disparados na cabine antes da colisão fatal dos aviões) e que deixou um testamento contestado.

Depois de um balanço sobre o tango contemporâneo, o autor oferece ao interessado (e nesse ponto serão muitos), uma seleção dos 100 tangos essenciais para se compor uma discoteca, com uma pequena síntese da importância de cada canção e indicação de suas gravações mais importantes. O livro, como obra de referência, merecia da Editora UFMG, sempre tão cuidadosa, um índice onomástico e de tangos citados, bem como traduções dos trechos das canções, que carregam expressões em lunfardo, que os leitores brasileiros dificilmente dominarão. Um pequeno acerto que fica para uma segunda edição.

TANGO – A MÚSICA DE UMA CIDADE
. De Mauro Mendes Braga
. Editora UFMG, 500 páginas

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