É comum ouvir de estudiosos e admiradores que as músicas de Caymmi parecem obras do povo, uma espécie de domínio público antecipado, como se ele apenas revelasse algo que habita o inconsciente coletivo dos brasileiros. No entanto, a grande força de sua criação é exatamente dar ares de simplicidade a algo construído com grande engenho e inteligência estética. Na música e na letra.
Dorival era um homem culto e capaz da mais difícil das artes: juntar leveza e sofisticação. Na verdade, o algoritmo que explica suas canções é feito exatamente deste aparente paradoxo: quanto mais simples, mais elementos se juntavam para dar à luz a expressão de seu engenho. Não há nada mais simples que a perfeição. No campo musical, seus conhecimentos iam da obra de Bach ao jazz de Gershwin. Tinha um talento especial para a música modal (que vinha dos cantos do candomblé) e uma coragem natural em propor harmonias dissonantes, vindas antes da música impressionista que da bossa nova – que veio depois e deve muito a ele.
A poesia da canção também é devedora do baiano. Se Noel Rosa é o criador da dicção urbana, com letras diretas e coloquiais, pode-se creditar a Dorival uma contribuição que, além de técnica – sobretudo com as canções praieiras – é também ética. Noel, mesmo popular e suburbano, tinha seus preconceitos com as religiões africanas e deixa entrever certo racismo que fazia parte da cultura da época – chega a zombar de um despacho e se orgulha de morar no bairro com nome da princesa Isabel. Em Dorival, o cenário da Bahia aponta outra luz.
Caymmi é solar. O antropólogo Antonio Risério chega a dizer que o baiano é talássico, que o mar circunda sua obra por dentro e por fora. Dá motivo para os versos e embala o ritmo das melodias. A natureza praieira do Rio é relativamente recente. Na Cidade da Bahia, ela se perde no tempo. Quando a bossa viu passar a garota de Ipanema, Salvador já seguia há séculos o balanço das moças a caminho do mar. A própria relação de Dorival Caymmi com a bossa nova é mais importante do que se imagina.
João Gilberto, o criador da bossa ao lado de Tom Jobim, foi responsável pelo que se pode chamar “jeito bossa nova” de cantar. Assim, mais que um gênero, tratava-se de um estilo. Tudo podia ser BN, desde que tocado por João. No entanto, o cantor não precisava alterar em nada as canções de Dorival para aproximá-las de sua maneira de tocar e cantar. A bossa estava nelas, antes mesmo de ser inventada.
Em uma de suas raras entrevistas, João fez questão de reconhecer a inteligência rítmica e harmônica de Rosa morena, de Caymmi, em sua capacidade de mudar os acentos e valorizar a poesia com sua naturalidade. Dorival, que não era bom só de música, mas sabia ser agradável e tinhoso, agradeceu com picardia: “Sem querer bancar o sabichão, que eu não sou, são aquelas esperas de Rosa que ele (João Gilberto) deixa a zona vazia para poder colocar o molho. Dá para fazer 20 rotações de bunda nesse pedaço vazio. João Gilberto é um ourives do espaço vazio”. Tente definição melhor para a bossa nova.
Na praia As canções de Caymmi não foram poucas, foram exatas. E também múltiplas. A primeira face é a do compositor dos sambas praieiros, sincopados e buliçosos. O estilo que marcaria seu primeiro disco, ainda nos anos 1950, se tornou um gênero na avaliação do folclorista Luís da Câmara Cascudo. O disco, Canções praieiras, já apresentava um artista dono de composições como Quem vem pra beira do mar, O mar, O bem do mar, Pescaria, É doce morrer no mar, A jangada voltou só, Lenda do Abaeté e Saudade de Itapoã. Possivelmente, é o disco de estreia da MPB com o maior número de obras-primas irretocáveis e definitivas, que, 60 anos depois, continuam vivas e presentes no repertório.
Dorival seguiria em outras vertentes, como a do samba-canção, que ajudou a consolidar com músicas como Só louco, Não tem solução, Nem eu e Marina. O estilo, que se casava com um imaginário em tudo distante das canções solares, era feito para o clima das boates do Rio de Janeiro, para onde o compositor se mudou. No entanto, mesmo com a ambiência urbana e certo ar de bolero, Dorival imprime no samba-canção um jeito mais intimista, menos vitimizador e, sobretudo, menos machista. O homem que gostava de mulheres parece que desejava que elas fossem felizes, mesmo que para isso eles precisassem confessar que eram loucos e tinham corações insensatos.
Outro campo de criação de Dorival foram os retratos de mulher, como destaca Francisco Bosco em seu livro sobre Caymmi. Sensual no jeito de cantar e olhar, Dorival parece sempre seguir na imaginação o andar de uma mulher (“a vizinha quando passa”, “Dora pra lá, Dora pra cá”). Ele sabe, e ensinou a todo mundo, que é dengo que a nega tem. Há uma certa malemolência que esvazia o caráter propriamente erótico do samba carioca ou do sofrimento do samba-canção à la Lupicínio Rodrigues. As demandas da sensualidade são menos pesadas e talvez por isso mais prazerosas. Gente como Marina, Dora, Doralice e Rosa fazem parte de nossa memória de dengos.
Além disso, a feminilidade do samba baiano está também na incorporação da religiosidade, de um certo senso de mistério da vida. Como definiu Antônio Risério em seu livro Caymmi, uma utopia de lugar, “o misticismo baiano não tira o chão de ninguém”. E é essa imanência, essa força grudada na vida, que caracteriza bem o lado feminino das músicas do compositor. E tem mais: as mulheres de Caymmi são alegres e trazem felicidade. O compositor gostava muito das mulheres a ponto de fazer um tipo de samba especialmente para elas. Algo que, na falta de nome melhor, Aldir Blanc chamou de “samba Caymmi”.
Personagem Autor popularíssimo, destes que todos sabem de cor, Dorival Caymmi foi também compositor de compositores. Homenagem afetiva tocante, Caymmi se tornou personagem da história da música brasileira, habitando canções de colegas. É o caso de Paratodos, de Chico Buarque: “Contra fel, moléstia, crime, use Dorival Caymmi”; ou Toquinho e Vinicius em Tarde em Itapoã: “Depois na praça Caymmi, sentir preguiça no corpo”. Ou ainda na bela celebração de João Bosco, Aldir Blanc e Paulo Emílio, em Nação: “Dorival Caymmi falou pra Oxum, com Silas estou em boa companhia, o céu abraça a terra, deságua o Rio na Bahia”. E, também, em dois sambas de Gilberto Gil, Buda nagô: “Dorival é um Buda nagô, filho da casa real da inspiração. Como príncipe, principiou a nova idade de ouro da canção”; e na recente Gilbertos: “Foi Dorival Caymmi quem nos deu a noção da canção como um liceu”.
Dorival atravessou o século 20 brasileiro, com suas mudanças políticas e sociais. É possível que, além de afetado pela roda da história, ele tenha ajudado a dar a dimensão de nosso processo civilizatório. O compositor nos ensinou a valorizar a cultura popular (sem nunca ter sido etnomusicólogo, mas um criador de novos universos a partir da tradição), a respeitar as mulheres (com sua saudável e sensual relação com as personagens de suas canções), e a dar à música urbana brasileira uma dimensão de modernidade que depois seria resgatada pela bossa nova.
Mas sua relação com a Bahia e o mar talvez sejam as mais expressivas marcas de sua vida e de nossa incompetência em preservar as belezas que ele nomeou e musicou. Não se sabe se a Bahia está viva ainda lá, em meio ao artificialismo do turismo e da cultura para inglês ver; nem se o mar quando quebra na praia ainda é bonito, no monturo da poluição e da especulação imobiliária. Dorival, como se vê, não é referência do que passou, mas do que nos cabe fazer para continuar a merecer suas canções.