Desta vez, Joana d’Arc apagou a fogueira. Nossa “heroína”, no caso, não nasceu na França nem se meteu em guerra, mas salvou do fogo um pequeno capítulo da história dos mineiros. Ao impedir que o sogro, Otávio, queimasse a velha papelada do pai, a professora e escritora Joana d’Arc Torres de Assis resgatou precioso acervo, caro não só à gente de Santa Maria de Itabira, município da Região Central do estado. Afinal de contas, o dono dos guardados, Francisco de Assis Gonçalves (1847-1926), o Sô Cotta, foi guardião de um pedaço dos séculos 19 e 20 que agora nos chega. Cuidadosamente, esse fazendeiro, comerciante, político e rábula (advogado sem diploma, de muita serventia aos conterrâneos) juntou 12,4 mil manuscritos e impressos com registros da economia, dos costumes e da cultura de seu arraial.
O gosto de contar histórias fez com que Joana d’Arc tirasse a papelada da gaveta – ou melhor, das 19 caixas que a abrigam. A montanha de documentos, bem socadinha, alcança impressionantes três metros de altura. Ali estão cartas pessoais, notas sobre a vida social do clã de Sô Cotta, circulares com pedidos de votos, petições, espólios e inventários, além de correspondência comercial e relativa a impostos, empréstimo de dinheiro. Francisco de Assis Gonçalves – um primor de arquivista, que envolvia rolos de documentos com fitas de algodão – não mantinha apenas os documentos de suas firmas Pio Gonçalves & Irmão e A Primavera. Protegia cuidadosamente flores e folhas enviadas por suas crianças, guardava o papelório dos antepassados.
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Aquele arraial não era um ponto fora da curva, como se diz. Pelo contrário: a papelada de Sô Cotta registra a labuta do povoado (vizinho de Itabira) para plantar algodão e café; testemunha a saga dos tropeiros; informa sobre a luta para fazer sal, tecidos, louças e artigos finos chegarem à Minas profunda; explica também como se fazia para transportar café, gado e produtos da região até o Rio de Janeiro. Autora de vários títulos – boa parte deles remete a seu rincão –, Joana Torres não é historiadora e nem escreveu propriamente um livro de história. Ancorada em farta documentação, ela tece o que chama de “miúda contação”, garimpando pepitas entre as memórias de sua gente.
Se o boom do ouro foi breve no estado, limitando-se a poucos anos do século 18, esse livro, por meio das anotações e documentos de Sô Cotta, mostra que o pequeno povoado sempre tratou de cuidar de seu “mercado interno”. Seja plantando algodão ou café, procurando pedras preciosas (vem de lá a famosa água-marinha Santa Maria), cuidando de bois e porcos. Interessante notar a força do comércio, que, de acordo com a autora, está no DNA dos santa-marienses. Sô Cotta e A Primavera não negociavam apenas com Itabira ou Sabará, mas com firmas de Juiz de Fora, Carangola, Sete Lagoas, Ponte Nova, Ouro Preto, Mariana, Conceição do Mato Dentro e, claro, Rio de Janeiro. No século 19, havia 18 empresas no pequeno povoado vendendo pano, armarinho, louça, chapéu, ferragens, calçados, ferro de passar – várias delas ofereciam também pasto para a tropa ou acomodações para os chamados cometas, caixeiros-viajantes.
Famílias
Se boa parte do livro é centrada nos filhos da terra e no “cipoal” de famílias que lá se radicaram e se entrelaçaram – entre Drummonds, Lages, Alvarengas, Guerras, Bretas, Andrades, Sampaios, Rosas, etc –, várias passagens decerto atrairão os leitores “forasteiros”. Joana d’Arc busca valorizar o patrimônio oral de sua gente. Por meio de causos, ficamos sabendo do impacto das guerras mundiais na pequena cidade, do apreço do povo pela educação – Santa Maria de Itabira, aliás, é a terra da professora Beatriz Alvarenga, que ensinou física a gerações de mineiros. Diferentemente de cidades que pouca atenção davam à mulher, ali elas aprendiam a ler e escrever. Em 1828, uma escola já funcionava por lá. Quando Sô Cotta abriu a sua, pertinho da loja, havia apenas dois garotos no meio das meninas.
Os escravos também fizeram a história de Santa Maria de Itabira. Joana informa que desde os anos 1700 eles marcam presença na região, onde fica a comunidade quilombola de Barro Preto. Abrigava-se ali o único grupo de negros com autonomia para armazenar e vender a colheita de sua roça, fato raro na época. “Tobias, Joaquim Evaristo, Gustavo, Ana Domingas e Mariano: chegaram até nós bem poucos nomes”, anota a autora. “Subsistir em unidade, como o Barro Preto alcançou fazer em dois séculos, requer tutano e músculo”, resume ela.
Com 14 capítulos, 624 páginas e belo projeto gráfico de Marcelo Drummond e Marconi Drummond que reproduz documentos de época, Na lavra do tempo... é um “quase romance histórico” conduzido pelos papéis de Sô Cotta, que decerto interessarão a pesquisadores, historiadores e economistas. O projeto, com detalhada descrição do acervo, bem poderia inspirar gente de outras cidades a reviver sua própria saga.
O mutirão histórico-afetivo mobilizou o Grupo São Francisco, da família Bretas, patrocinador da obra por meio da Fundação Francisco de Assis, e vários conterrâneos da autora, que puxaram pela memória para construir essa trama. A lista de parceiros é imensa. Entre eles estão a professora Beatriz Alvarenga e o crítico de arte Márcio Sampaio (autor do prefácio), além de instituições como os museus de Artes e Ofícios, Mineiro, de Arte da Pampulha, Abílio Barreto e de História Natural, além do Arquivo Público Mineiro e o Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico (Iepha).
Outro ilustre colaborador de Joana era aparentado de Sô Cotta, filho de um primo dele chamado Carlos de Paula Andrade. Por 10 anos, a autora correspondeu-se com Carlos Drummond de Andrade, itabirano interessadíssimo nos papéis de Francisco Assis Gonçalves – batizado de Acervo FAG. Ela deu ao poeta de presente três cartas escritas pelo pai, além de um tesouro – caro à poesia brasileira: o comprovante de compra de três compoteiras de cristal, adquiridas por Carlos de Paula Andrade na loja A Primavera.
Quando era pequeno, Drummond ficava hipnotizado por aquelas finas peças – e não por causa do sagrado pecado da gula. É que o trio, ao acolher os raios solares, fazia a sala explodir em cores. Mais tarde, ele escreveu: “Quero três compoteiras (...) Não é para pôr doce/ em nenhuma das três./ É para pôr o sol”.
SANTA MARIA DE ITABIRA: NA LAVRA DO TEMPO
De Joana d’Arc Torres de Assis
Fundação Francisco de Assis, 624 páginas